O mito é elemento fulcral no mundo dos clássicos greco-latinos, e, para adentrar esse espaço, é preciso ser iniciado, a fim de comp...

Os mitos em Clarice Lispector

mitologia odisseia clarice lispector
O mito é elemento fulcral no mundo dos clássicos greco-latinos, e, para adentrar esse espaço, é preciso ser iniciado, a fim de compreender, gradativamente, a ética, os valores, as práticas religiosas, os papeis e os sentidos desse universo múltiplo denominado Antiguidade Clássica.

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Clarice Lispector (1920–1977), escritora de origem russo-judaica, naturalizada brasileira, autora dos romances Perto do Coração Selvagem (1943), A Paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) e A Hora da Estrela (1977).
Nesse sentido, compreender o mito, principalmente a sua dinâmica funcional como peça fundamental e arquetípica, é imprescindível para apreendê-lo também com o olhar voltado para o ontem e para o hoje, na medida do possível. Trata-se de algo que Clarice Lispector, no âmbito da ficção, faz primorosamente através das vozes ficcionais dos personagens e do narrador de terceira pessoa em seu romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

No âmago da história estão, subliminarmente, Penélope e Odisseus, personagens da Odisseia, de Homero, poema épico que trata do périplo que durou dez anos, do herói Odisseus – Ulisses na tradição latina – ao voltar para casa após a destruição de Troia. Penélope, sua esposa, espera pelo seu regresso durante vinte anos, uma vez que o herói passara dez anos na guerra entre gregos e troianos. Ela guarda e protege o lar dos pretendentes à sua mão, invasores do seu palácio, que almejam tomar o lugar de Odisseus. Na narrativa épica, Penélope pode ser vista como o duplo de Odisseus, pois apresenta as mesmas características do marido, tais quais a astúcia e a inteligência.

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Penélope e os pretendentes ▪ Arte: John William Waterhouse, 1912 ▪ Galeria de Arte de Aberdeen, Escócia.
No romance lispectoriano, há uma troca de papeis em relação à narrativa mítica. Loreley, personagem principal da trama, é quem fará o périplo, uma vez que passa por um processo de aprendizagem que se configura como um verdadeiro rito de passagem, assim como o herói da Odisseia. Ulisses, com quem faz par, espera contidamente por ela, pois diferentemente dos outros homens com quem Lóri se relacionou, ele quer que ela se vincule inteiramente a ele, de corpo e de alma. Assim como Penélope, Ulisses aguarda, até que Lóri esteja pronta para o real encontro, que se dará na cama, como ocorre com Odisseus e Penélope no poema grego.
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Lembrando que Ulisses é o nome de Odisseus na tradição latina. O prazer, como dor de ser, permeia a aprendizagem de Lóri, entretanto, metamorfoseia-se à medida que ela prossegue. Sua aprendizagem consiste em humanizar-se, assim como a de Odisseus no épico grego, processo que ocorre em etapas sucessivas de um rito, nas quais perpassam vários elementos míticos.

Além da intertextualidade com a Odisseia, é possível identificar traços de outros mitos em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Na própria estrutura da narrativa, que denota o percurso de um ciclo marcado pelas estações do ano, a começar no verão e a findar na primavera, vê-se a presença do mito do rapto de Prosérpina (OVÍDIO, Metamorfoses, Livro V, versos 341- 408), que explica o surgimento das estações do ano, reguladoras da produção da terra, da sua fertilidade, a fim de que o homem possa sobreviver. Em um movimento cíclico, denota o tempo mítico, não cronológico, cujo início sempre retorna ao princípio, a fim de configurar um novo começo, e esse processo é o que ocorre com a personagem. A história se fecha exatamente um ano depois de iniciada, principiando um novo ciclo, em que Lóri, após o processo de constituição de si mesma a partir da percepção da alteridade, alcança a maturidade.

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O rapto de Prosérpina (Perséfone) ▪ Arte: Alessandro Allori, 1570 ▪ Getty Center, Los Angeles, EUA.
É perceptível, também, a presença do mito do nascimento da deusa Afrodite, presente na Teogonia, de Hesíodo, quando Lóri, já tendo sido iniciada em seu processo de aprendizagem, vai à praia. E no encontro dessas duas forças, desses dois mundos incognoscíveis, o mar – a mais inteligível das inteligências não humanas – e a mulher – o mais inteligível dos seres vivos – ocorre a grande transformação. Lóri é fertilizada pela água do mar ao banhar-se e dela beber. Ela é fertilizada, assim como Afrodite é fruto da fertilização do mar pelo sêmen caído dos órgãos genitais de Urano ao ser decepado pelo filho Cronos. A deusa, nascida apenas do elemento masculino, nascida do pênis, é a própria personificação da fecundidade. Mãe de Eros, ela faz brotar tudo que existe, sendo ela mesma o elemento propulsor da vida.

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O nascimento de Afrodite (Vênus) ▪ Arte: Sandro Botticelli, c.1485 ▪ Galleria degli Uffizi, Florença, Itália.
Tamanha é a fecundidade do romance quanto à presença dos mitos, que seria possível discorrer longamente sobre o assunto, afinal, mitologia e literatura são dois universos que se entrelaçam, considerando que foi através dela, principalmente, que as narrativas míticas chegaram até nós.

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  1. Alcione Albertim6/12/25 22:25

    Obrigada, Germano, por mais essa publicação!🌷

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  2. Lendo e aprendendo com o olhar arguto dos mestres. Parabéns, Alcione. Francisco Gil Messias.

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