Mendelssohn escreveu canções sem usar palavra alguma. Foram mais de 40, descritas apenas com o piano e o alfabeto das colcheias. Assim também fez em alguns poemas sinfônicos, entre eles “Sonhos de uma noite de Verão” e “A Gruta de Fingal”.
No primeiro, após se entusiasmar com a leitura shakespeariana, o compositor retratou-o nas melodias que remontam à mitologia greco-romana, em meio a florestas cheias de elfos, fadas e duendes. Na segunda obra, também chamada de “As Hébridas”, ele descreve com a mais cristalina e eloquente fidelidade o ecos sonoros emitidos pela caverna marinha, em resposta aos vigorosos afagos com que as ondas do mar revolto abraçam aquelas misteriosas e impressionantes formações basálticas na desabitada ilha escocesa homônima.

Dois anos depois, Mendelssohn quis rever o escritor e, dessa vez, Goethe fustigou-o tentando tirar-lhe poesia e filosofia das pontas dos dedos, ao convidá-lo a tocar novamente: “Vem aqui e me faz reviver os espíritos adormecidos neste piano!” - como relatou o escritor e crítico de arte francês, Henri Blaze de Bury, outro que fez da música e das letras a arte de viver, no livro “Goethe e Beethoven”.
Música e literatura sempre se imiscuíram em uma ligação, às vezes tão intrínseca, que podem ser fundidas semiótica e simbioticamente desfocando a tênue linha que as separa. Isso provocou grandes afinidades humanas entre artistas como, por exemplo, Beethoven e Goethe. Apesar de efêmera, a amizade deixou marcas de admiração profunda em ambos, nos idos de Weimar.
Muitos compositores eruditos transcreveram para a partitura não somente cenas do drama, da tragédia, das paixões humanas, tanto quanto paisagens e fenômenos da natureza. Desde a Gavota “para as flores e os zéfiros”, em que Rameau reflete o doce bucolismo das pétalas ao vento, à idílica visão de Richard Strauss nos poemas “Assim falou Zaratrusta” e suas estonteantes visões das montanhas da “Sinfonia Alpina”, nas quais as paisagens do mundo e da mente estão nitidamente espelhadas pela linguagem harmônica dos sons.
Assim como há artistas capazes de interlaçar diferentes expressões, como música e literatura, rompendo os limites que as definem, fundindo as formas de linguagem e transcrevendo-as em nova concepção, há os pintores que conseguem fazer soar de suas telas toda a essência da música, da natureza, da poesia, do drama, do romance, dos conflitos e da história da humanidade.
Flávio Tavares é um perfeito exemplo do que tento aqui dizer. Sua obra canta, declama, grita, dança, fala, ecoa tanto com a grandeza sinfônica de um Bruckner e de um Berlioz, como na delicadeza impressionista de Satie e Debussy. Ora pontilhada com o lirismo de Camões, ora nos lançando à Pasárgada de Bandeira.
Com a mesma bravura dramática dos grandes mestres universais, Flávio faz de sua vida uma incansável e vitoriosa epopeia capaz de moldar a monumental encíclica que reúne toda a saga humana em cores e formas. Os romances descritos em suas composições possuem figuras, objetos, olhares, cantos e recantos que têm voz própria e individual, mas dialogam entre si varando séculos de lendas e histórias, explícitas, implícitas, conhecidas ou desconhecidas. Como na trama polifônica composta por Bach, onde vozes e planos diversos se justapõem com a precisão aritmética que a arte do contraponto exige, na obra de Flávio cada detalhe é posto sábia e milimetricamente no lugar certo.

Certa vez, saímos de uma visita à casa de Rembrandt, na Holanda, e mencionei aos familiares que comigo estavam: “Pela primeira vez consegui ver cores em desenhos preto-e-branco”. Os bicos de pena daquele mestre tinham nuances tão ricamente bem dosadas em efeitos sutis de luz, sombra e profundidade que os tornavam coloridos, ainda que com as cores da mais pura emoção. Nos desenhos de Flávio dá-se o mesmo. Todo o arco-íris de sua profícua imaginação pode ser retratado no preto que se multiplica sobre o branco infinitamente colorido.
Ah, Flávio, que orgulho a Paraíba tem de ti no mundo afora. Emparelha-te com Villa-Lobos, Nelson Freire, Pedro Américo e outros nobres que sideram orbitando além do oceano, desenvoltos que nos honram. Conseguiste, como Villa, embutir na tua obra a Amazônia inteira. E de sobra, o romantismo tão latino-americano. Tuas palmas e palmeiras se enroscam à nossa história. Bem contada, te fizeram imortal das pinceladas com o que há de mais telúrico. De um pincel de que poucas letras ousaram chegar perto.
Germano Romero é arquiteto e bacharel em música