Uma lenda é sussurrada há quase um século pelas ruas e casas de Paris. Até agora, só as mulheres a conheciam. Contavam para as filhas e net...

A canção das palavras bordadas

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Uma lenda é sussurrada há quase um século pelas ruas e casas de Paris. Até agora, só as mulheres a conheciam. Contavam para as filhas e netas, fazendo-as jurar segredo. Conto-lhe agora, mas não a repasse para os descrentes ou os que duvidam das coisas puras que ainda existem no mundo. A dúvida quebra o encanto e a história se perde. Pois bem, agora que está avisado, sente-se aqui ao meu lado e ouça.

Nos idos de 1920, numa Paris que fervia de arte e cultura, Sophia Verlaine descobriu que a melhor forma de ser feliz era tornar-se escritora. Os livros que lia, portais para lugares impossíveis, eram sua catarse, alívio e graça. E se os escrevesse ela mesma?
E se aquele sentimento que lhe sorria na alma de repente surgisse no mundo, a contar histórias e aliviar a dor que ela escondia tão bem?

Ser mulher jamais foi fácil – em nenhum lugar ou momento da história deste mundo. Sophia sabia disso muito bem. Também sabia que o mundo da literatura era um universo masculino cujas barreiras poucas mulheres conseguiam quebrar naquela época.

Dia e noite ela escrevia. Aprendeu a materializar os próprios sonhos sob a forma de palavras que eram curativo e redenção. Mas queria companhia e por isso tentou escrever para os escritores que publicavam crônicas nos jornais. Sonhava que, com um deles, trocaria segredos sobre a arte de flertar com o verbo. Já se via escrevendo cartas para o parceiro imaginário, nas quais falaria dos segredos que habitavam os livros. Ele lhe daria sinceras opiniões sobre seus livros e um dia, lá no futuro que não se via, as pessoas falariam sobre as cartas dos dois amigos que amavam a escrita.

O desejo é pai da frustração. Recebeu algumas respostas polidas e foi só. Nenhum deles se interessou por ela e seus escritos. Estavam imersos em seus próprios mundos. Ela compreendeu, mas não desistiu. Sophia não era de desistir.

Meses depois, colocou um anúncio no jornal: “Clube de Leitura e Escrita”. O texto curto e simples pedia que apenas mulheres respondessem. De imediato recebeu onze respostas. Vinham em envelopes perfumados, assinados com letras caprichadas. Leu os nomes: Fabiane, Florence, Marie, Rose, Johanna, Valentine, Marianne, Zahra, Camille, Anne e Penélope.

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Abriu cada carta com o coração aos pulos. As onze queriam fazer parte do clube, que logo passou a funcionar numa casinha escondida em meio à grande metrópole.

Agora eram doze, como os discípulos, os meses do ano e as horas desenhadas no grande relógio de parede.

Nesses instantes, admiravam-se dos poetas sem perceber que também elas dançavam com a imaginação.
Doze mulheres tão diferentes, unidas pelo amor aos livros. Mal se conheciam, mas não se importaram: mulheres têm um fio delicado e invisível que as une quando elas assim desejam. Logo estavam escrevendo juntas, trocando receitas e falando sobre tudo. Liam os textos umas das outras, davam palpites e percebiam que o fio que as unia servia para bordar afetos e palavras.

Chegaram todas com sorrisos no rosto, mas de vez em quando uma delas deixava cair uma lágrima sentida. A gota transparente lhe escorria pelo rosto e encontrava onze dedos indicadores encostados no queixo, prontos a recolhê-la.

Ao menor som de soluço, todas paravam o que estavam fazendo e apuravam os ouvidos. Sentavam-se, então, muito quietas, a escutar. E seus olhos transbordavam compreensão. Por vezes respondiam coisas bonitas e estendiam mãos de perfume. Nos dias mais difíceis, serviam chá.
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A receita, muito antiga, era feita de rosas desidratadas, bolo de mãe e meias quentinhas. Tinha sabor de luar e de caminhos floridos. Levavam as finas xícaras aos lábios e sorriam umas para as outras, num entendimento ancestral dos que se reconhecem.

Quando liam juntas, era belo de se ver. Encostavam as cabeleiras – loiras, morenas, de fios lisos e finos, ondulados, grossos e cheios, curtos como a infância ou longos como os caminhos da terra – e recitavam poemas, histórias velhas como o tempo. Nesses instantes, admiravam-se dos poetas sem perceber que também elas dançavam com a imaginação.

Por vezes riam sem pejo ou medida. Risadas de liberdade, gargalhadas gostosas, que sacudiam o corpo inteiro. Riam-se de maridos, de filhos, de receitas falsas, de animais contrabandeados às escondidas para os quintais, na calada da noite.

Ao voltarem para casa, encontravam a família e lhes abriam grandes sorrisos. Retornavam mais fortes e ágeis, cheirando a bolo e café. E enquanto caminhavam pela rua, todos viam as borboletas pousadas nos fios de prata que lhes seguiam os vestidos.

Muitos meses se passaram antes de notarem que o fio prateado ganhara vida própria. Numa tarde de sol e chuva, ao abrirem a porta da casa secreta, viram sobre a mesa um manuscrito. Estava bordado de vida, de beijos, sonhos, altares ancestrais e encontros felizes.
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Tinha pontos em cruz e também marcas de choro, mas mesmo estes exalavam uma suave beleza que encantava os olhos de quem os via.

Tão espantadas ficaram que só lhes restou uma coisa a fazer. Pintaram juntas uma tabuleta e a penduraram na porta. Nela se lia, em grandes letras caprichadas: “Clube de Escrita, Livros e Bordados”, embora nunca se tivesse levado ao clube uma só agulha ou linha.

O manuscrito chegou até os dias de hoje – diz a lenda. Traz receitas de família, poemas sobre fotografias, histórias de bisavós, sonhos quebrados e refeitos, histórias de circo, solidão e crianças sardentas. Só consegue lê-lo quem usa óculos especiais, que não estão à venda nos mercados. E estes, muito raros, também conseguem fazer ver a tabuleta, que jamais foi retirada.

Dizem que o Clube ainda funciona em alguma viela de Paris. Se num dia qualquer você o avistar, por favor não diga aos outros. Não faça qualquer ruído. Desligue o seu telefone, respire muito devagar e, bem na ponta dos pés, aproxime o ouvido da porta. Ouça então a canção das palavras bordadas que ainda vivem no lugar.


Sonia Zaghetto é jornalista e escritora

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  1. Maravilha! Quanta beleza Sônia Zaghetto, me transportei nas suas palavras.

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