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A passagem do ano nos torna filosóficos. Incita-nos a pensar na morte, no tempo, em Deus. Uma das frases que mais me impressionaram na a...



A passagem do ano nos torna filosóficos. Incita-nos a pensar na morte, no tempo, em Deus.

Uma das frases que mais me impressionaram na adolescência foi: “Nunca alcancei a graça do ateísmo perfeito”. Quem a escreveu foi Carlinhos Oliveira, cronista do Jornal do Brasil e boêmio carioca. Carlinhos morreu de pancreatite alcoólica e viveu torturado por angústias metafísicas. De dia negava Deus, de noite tinha medo do escuro e O chamava.

A frase dele me marcou por me abrir os olhos para esta verdade profunda: tanto a crença como a descrença em Deus independem da nossa vontade. Nesse delicado terreno do espírito não escolhemos, somos escolhidos. Assim como existe uma “graça” no sentido positivo, que afirma Deus, existe outra no sentido oposto, que O nega.

É tão difícil merecer a primeira como a segunda. Talvez para esta última se necessite até de mais sofrimento e grandeza. Ninguém risca Deus da vida sem substituir a confortável ilusão que ele representa por um senso ético profundo.

Talvez o drama de Carlinhos viesse de ele ainda perseguir tal senso e, ao mesmo tempo, não poder mais regredir às fantasias que lhe alimentavam a crença. Acabou órfão de Deus e de si mesmo.

Essa história aconteceu no tempo do ronca. Conta-se que um mancebo sem eira nem beira propendia a namorar uma donzela de truz. Para isso u...



Essa história aconteceu no tempo do ronca. Conta-se que um mancebo sem eira nem beira propendia a namorar uma donzela de truz. Para isso usava toda a sua léria, mas o pai da moça se opunha por achar que ele era um mandrião. Não se ocupava em nada que lhe trouxesse algum tipo de estipêndio.
O moço intentava convolar de estado civil — mas como, se mais parecia um mequetrefe?
O pai então lhe lançou um repto: ele casaria com a sua filha se jungisse a tal desiderato a demonstração de que não era um soez.
— E o que devo fazer? — quis saber o rapaz.
— Deves dar-me a prova de que tens futuro.
Em meio a tão escorchante desafio, o moço foi aos poucos sentindo gorarem-se-lhe as pretensões. Não era nenhum abilolado e percebeu que o queriam apartar da contenda. Caminhou a esmo na noite até que, esfalfado, resolveu tomar um pifão. Quando a ebriedade lhe turvou o bestunto, dirigiu-se à casa da moça.
Postado em frente à alcova onde ela dormia, encetou uma elocução: ”Não tenho prebenda, mas não sou nenhum sorrelfa. Juntos, viveríamos com parcimônia, mas não à míngua. Juro-to.
A moça, já adormecida, despertou num sobressalto. Colocou furibunda o corselete, que preferia ao califom, e foi até a janela:
— Arreda-te, doidivanas. Não vês que nada ganhas com tais ululações? Além disso, tiraste-me dos braços de Morfeu.
— Morfeu?! Então tens outro… Por que não me falaste? — gorgolejou o rapaz, já pensando em cascar a marreta. Mas logo tirou da cabeça essa ideia, pois no fundo era um poltrão.
— Se não sabes quem é Morfeu, com isso apenas provas a tua estultice. E dás razão a meu pai… – observou a moça. Dito isso, fechou com estrépito a janela.
O rapaz foi embora achando-se um alarve. Ao mesmo tempo, sentia-se ditoso por haver descoberto a traição. Melhor saber-se guampudo agora do que depois.

As palavras, como as pessoas, nascem e morrem. A diferença entre elas e nós é que podem ressuscitar. Um dia, quando menos esperamos, depar...



As palavras, como as pessoas, nascem e morrem. A diferença entre elas e nós é que podem ressuscitar. Um dia, quando menos esperamos, deparamo-nos com um arcaísmo que nos faz voltar à infância (esse “deparamo-nos”, com o pronome enclítico, já não seria um?).

Outro dia eu estava listando uns termos que ouvia quando era menino e que hoje praticamente não se dizem mais. Alguns se tornaram esquisitos; outros preservam um sabor que nos desperta o desejo de resgatá-los.

Hoje se diz de alguém convencido e presunçoso que é esnobe. Antigamente, uma pessoa desse tipo “só queria ser as pregas”. Por que as pregas? Pedi a ajuda da minha mulher, que logo matou a charada: na roupa feminina, as pregas são o que dá mais trabalho. Constituem um requinte, uma marca de distinção.

Pirralho mal-educado a gente tratava “no cascudo”. Ou no “cocorote”. Levei vários deles, por sinal, e nem por isso fiquei ruim da cabeça. Ruim da cabeça? Naquele tempo ninguém falava assim. Dizia-se “leso”, “abilolado”. Os cascudos eram para mostrar que a criança tinha de obedecer aos pais “sem tugir nem mugir”, eu seja, sem murmúrio nem grito.

Homem usava “brilhantina”. Mulher, “laquê”. Cheguei a acompanhar meus pais a alguns bailes em que os cabelos dos homens eram um lustre só. Ainda não entrara em cena o xampu com a sua variedade de nutrientes que se ajustam aos vários tipos de fios. Fossem os cabelos secos, oleosos, lisos, encaracolados, louros, pretos ou brancos, a inevitável brilhantina os untava da mesma forma e impedia, se fosse o caso, que se revolvessem no atropelo da dança (mas que risco para isso as dolentes valsas podiam representar?).

Nesses bailes, por sinal, chamava-se a mulher para dançar pedindo-lhe que “concedesse uma parte”. Ela nem sempre se dispunha a saracotear com o “janota”, que achava “espeto” receber a negativa. “Espeto” se aplicava a pessoa ou situação difícil de suportar. Surgiu, certamente, por analogia com o objeto perfurante encontrado hoje nos rodízios de carne, peixe, pizza. A rejeição da mulher era mesmo um golpe, um furo na autoestima do cavalheiro, que tinha vontade de por causa disso provocar um “sururu”.

Mas ele nem sempre se dava por vencido, e às vezes conseguia se vingar. Dando uma “rabiçaca” em quem o rechaçou, por exemplo, ou esfregando-lhe na cara um “pedaço de mau caminho”. Isso: uma garota boazuda, fornida, “de fechar o comércio”, que fazia a outra se sentir um “sibito baleado”.

E os nomes? Naquele tempo os homens se chamavam Anfilófio, Eleutério Salustiano. As mulheres: Eudóxia, Escolástica, Alaor. E os utensílios? Como nos quartos não havia banheiro, fazia-se xixi no “urinol”, que após o uso era pudicamente colocado embaixo da cama. Comida se guardava no “petisqueiro”, e no guarda-roupa se amontoavam sapatos ao lado de roupas. Algumas, para o gosto de hoje, muito “ababecadas”.