A efemeridade e a eternidade da vida em pingos. Na porção unitária acumulada em pontas de folhas, em beiral de tetos, na frieza de ferros de portões. Sim, aquela gota d´água que desce do céu, escorrega feito criança bricante pelos galhos das plantas, pelas rochas, pela pele dos animais de todas as espécies.E brilha feito joia em contraluz, espelha o cenário ao redor, triunfa no seu momento de maior grandeza.
A visita noturna, indesejada, inoportuna e impostora, porém, infalível. Ao penetrar a madrugada, ela desperta e bate à porta, esmurra a janela, como pedrinhas indiscretas, como pancada de chuvarada. Por esses tempos, nem é tão fria, mas arrepia a alma que pede coberta para o corpo. De mansinho retira o sono da cabeça, coloca mil coisas ao perfurar o crânio. São sonhos irrealizáveis, concretos na abstração da escuridão madrugável, exercício inútil de alterar fatos, mover corpos, montar sorrisos.
Ritual de abril
Em dia de chuva, somos pingos
soltos sem para-quedas, libertos
rumo ao abraço, concreto
na atração do beijo, do cheiro
da terra molhada, do espelho
no uniforme ballet sem ensaio
apenas céu em despejo
sobre o nada e o tudo
somos multidão de água dividida em indivíduos
da nuvem à poça, ao copo, ao corpo
ritual de abril, de novo
Perceptível pequeno mundo gigante onde muitas vezes ignoramos sua existência. Passamos ao seu lado, por cima dele, inacreditavelmente nem reparamos sua grandeza e beleza. E perdemos a oportunidades de conhecer mais o nosso próprio habitat, de encontrarmos um pouco de poesia, de descobrirmos que somos grandíssimas miniaturas. Ali, tão perto, atingível, tocável, penetrável...
A mão rabisca contornos impróprios de um especialista. Rascunhos dos galhos, filtros do clarão, da luz com bordas amareladas que desmergulha na linha horizontal da água ou dos entornos de terras distantes, das planícies ou das irregulares elevações. Desenho grafitado em preto e branco, inicialmente superficial, mas com tantos detalhes guardados que adentram aos olhos, estremecem o coração, arrepiam o corpo em saltos diante de visível belezura e mistério. Espasmos de contentamento, fragmentos de todos os tempos.
Era um gosto diferente, a sensação do experimentar, a descoberta traduzida em paladar... em sabor de fruta. O olhar admirado da aprovação diante daquele novo, o cheiro conquistador dos galhos, do chão de tapete de fruto caído e montado naturalmente. E o menino, como num ritual, descobria que fruta madura retirada da árvore brotada no meio do mato tem mais encanto, é mais saborosa. Cajus, mangas, oliveiras, siriguelas, goiabas, jambos, etc.
Juntar a turma, vestir a melhor roupa, contar os trocados para pagar a meia entrada de estudante, entrar na fila, passar na roleta e correr para conseguir um bom lugar, torcendo para não sentar desavisadamente em um chiclete. Ah! Como era bom um cineminha de domingo nos antigos cinemas de João Pessoa (não tão antigos como os pioneiros Metrópole, Santo Antônio ou Brasil). Cito especialmente Municipal e Plaza. Um programa com cheiro de adolescência.
Uma pecinha, duas pecinhas, três pecinhas... E temos as respostas para preencher uma palavra-cruzada, montar um quebra-cabeça, uma vida, uma sociedade. Uma peça só, não faz muito sentido, é um barco à deriva na imensidão do mar. Duas delas indicam um caminho a seguir, uma possibilidade de algo maior. E por aí vai. Todas juntas desordenadas, em conflito é, digamos, um engarrafamento, uma indefinição, um amontoado. Unidades ligadas talvez façam mais sentido, ou algum sentido, ou percam os sentidos.
Embarcados
“Remamos mal, ficamos quase sempre à deriva”
Pois, tudo sempre é um grande risco
Que se trace a rota, passe ao largo às calmarias
Venham ventos! Inflem as velas!
Soem o sino, a partida, a âncora levantada
Que se contorcem em mares, que se contornem as ilhas
E o cabo revolto, amante dos mares furiosos
náufragos do mesmo medo, gritos do mesmo silêncio
E onde ancorar? Proteção ou perdição?
Era o futuro, um espaço imenso que se abriu aos meus olhos. E fui transportado involuntariamente, levado, diferente de antes, quando eu desejei a viagem. Sim, eu estava à frente do tempo, digo, temporalmente, na verdade, paralelamente. Eu conseguia ver o que ainda estava por vir, mas não saíra também do presente. Eu flutuava entre o advir e o agora.
Quando os pássaros ficaram enfileirados na fiação, observando o movimento da rua, era como se estivessem hipnotizados, em uma catarse ao inverso, psicose coletiva. Fixos, em guarda, mas em frenesi mental, feito espectadores diante de uma grande tela, sentados, porém inquietos com os movimentos lançados à sua frente, assistiam a um novo mundo normal. E sim, preparavam de uma janela indiscreta o ataque.
Sentado um instante, corpo inerte enquanto a mente acelerada pensava mil e uma coisas, nem todas com a utilidade de um Bombril, várias inservíveis, distrações cerebrais. E nem percebia que o mundo ao redor observava o distraído corpo que sustentava a cabeça feita uma metralhadora giratória.
Senhoras e senhores... Hoje tem espetáculo. Tem, sim senhor!
Sob a velha lona rasgada, mais trapos que proteção, ou embaixo de uma reluzente cobertura com listras e estrelas, parecendo uma bandeira americana novinha em folha, a alegria estava garantida. E tábuas, cordas... e mastros erguidos. Uma casa de festa, emoção e felicidade. Espetáculo garantido.
A terra batida surge margeada por canteiros de onde se espalham pés de meio mundo de matos e plantas e flores, espinhentos e secos ou meio verdes em pleno início de verão, por vezes de sombras e até milagreiros, afora os pequenos aclives e pedras plásticas em monumentais esculturas, pinceladas ao longe por montanhas de suavidade crua. A terra, as pedras e a vegetação enfeitam os olhos de um lado e de outro da estrada irregular. No encontro do ocaso do Sol com o esplendor lunar ou o contrário da madrugada de onde se inicia um novo dia, o Sertão ganha ares de telas pintadas por mãos divinas. É hora de sentir o vento no rosto e liberar o espírito.
Choveu pela manhã... Uma água leve, pequenas gotas que se derramavam no asfalto, nem chegavam a ser suficientes para banhar a cidade. Era início do verão natalino, cheio de sóis, calores e luzes noturnas artificiais multicoloridas em prédios, plantas, varandas e variantes humanas que se multiplicavam na tentativa de sinalizar caminhos feito como o entrelaçamento de Saturno e Júpiter, tão próximos, tão distantes.
Carros, calor, asfalto e logo ali há uma flor, num cantinho de muro, nos canteiros do meio-fio. Ela se abre em amarelo e branco durante poucos instantes da manhã para em seguida se disfarçar de mato. Por entre recantos, ao largo de pneus, de pés em sapatos apressados, de bancas de ambulantes, detalhes urbanos.
Espelhar rio
Espalhar silhuetas pela lâmina matinal
adocicada no fio líquido perene
bebida de fonte esguia na mata
que vagueia pelo relevo em invisível desnível
Eis que amanhece um certo dia parecendo junho. Nuvens escuras enfeitam o céu que o sol tímido teima em aparecer, a terra e as plantas molhadas e a água empoçada pelos desníveis das ruas denunciam o desaguar noturno. Cajus e mangas feitos luzes ornamentam árvores pelos matos e casas, e os jambeiros dão o tom arroxeado ao chão de muitos terreiros e calçadas de moradas. Sinais natalinos de novembros e dezembros por estas terras abaixo do Equador. E feito loop temporal desembarcamos em outros tempos juninos, novembrinos e dezembrinos.
Matam vidas, mas não assassinam a História. São João e Silvas brasileiros, filhos de pais e mães que dão o suor e o sangue do pão nosso de cada dia para lubrificar como óleo e garantir as engrenagens sempre funcionando. São milhões de anônimos, mundo afora. E negam tais mortes, numa pseudo sociedade autodeclarada tolerante, multicultural, que, contudo, distribui convites contados para a repartição da ceia no banquete do lucro. E o critério é a cor, o sexo, o credo, num ritual de exclusão auto-alimentado.