Era uma referência no canto da pracinha recentemente construída. Engraçado que flagrantemente seca, já morta, ainda era majestosa como deveria ter sido quando muitas folhas em tantos galhos. Deve ter abrigado muitos ninhos, servido de casa para centenas de soldadinhos, certamente foi frondosa, de muito verde, ainda mais pela posição de destaque.
Parado em busca de um transporte que pare e o leve. Inicialmente, acredita ser enviado ao futuro num ônibus com uma placa qualquer com um número e um nome indicativos de um destino previsível. De fato, um caminho feito em ritmo de dejá-vu, uma volta ao mesmo lugar, uma revolta ao ponto inicial. E um veículo se aproxima. Braço esticado, velocidade reduzida, embarca, senta, respira, transpira.
O voo
Soltar-se as asas
Espécie de levantar âncoras
Ser em sustento pelas batidas
Tantas, tantas repetidas
Abaixo o olho mira, fantasia
De Ícaro em voo de seda
Magistral equilíbrio, penas
Que a si próprio não sustenta
Ao pássaro, o próprio voo inventa
Obstáculos cria e desvia, cruza
Dribla fiação, joga a rota
Vento, equilíbrio, mágica torta
Eis que junho sorri para o inverno e esquenta o coração nordestino. As temperaturas timidamente caem na marcação do termômetro e alivia da secura os sertões de cada alma. É mês que nunca chega só, traz com ele novos-velhos dias no calendário, momentos enamorados, santos brincantes, alegres, que saboreiam milho e até festas pagãs com fogos e fogueiras. Junino é tempo diferente, é saudade de trem antes nunca andado, é passeio pela própria mente.
Saudações para o poeta e cantador popular que traz junho. Pois é mês de passagem pelo meio do tempo, figura que pelas bandas nordestinas é dividida entre duas únicas estações explícitas: verão e inverno, terra seca e molhada, vegetação de tons marrons acinzentados e verdinho vivo ressuscitado na campina. O meio do ano é só no encontro de junho/julho, mas o sexto mês dá a sensação que a temporada já virou pela metade.
É verdade. Para o sertanejo a invernada chega ainda em janeiro com o aguaceiro tão esperado e esperançoso, mas para os litorâneos ela avisa que está vindo em maio e despenca em junho. Ou seria apenas impressão que não é feita no papel ou no tecido? Talvez sim, talvez não, pois chuva exprime lágrimas de todas as formas em gotículas de água e fica impressa na roupa molhada, no papel desbotado e na pele tocada com mais sensibilidade no período junino.
Junho, mês que tem gosto. Sabor de lembranças, de pamonha e canjica, de meninice. E vem junto o inverno, tornando o junino mês da nação Nordeste colorido de bandeirolas e balões no céu das casas, terraços, ruas e arraiais. É pôr vida em todo canto ao som dos tocadores de hinos com sanfonas, triângulos, zabumbas e pandeiros. Tempo de vestir roupa boa para seguir para a festança e esquentar o corpo na fogueirinha no terreiro ou na calçada.
Tantos junhos colecionados nas marcações do tempo, que o corpo pressente sua chegada, a alma alegra-se com trombeteio dos céus que se desarma sobre tenras terras molhadas. Mês de dengo, preguiçoso, de aconchego, deitar na rede, de cheiro perfumado, amanhecer orvalhado, friozinho encabulado.
Ser junino, é assim. Junho é rever nascimento, contentamento, fartura, assombramento, descobrimento. Reencontrar-se no meio do ano para perder-se em pensamentos. Ou seria o inverso?
A página aberta num branco em formato ofício que já não é mais palpável como em tempos idos, assim como a caneta que rabiscaria palavras desconexas conectadas ao interior do ser. Em breve, apenas uma bolinha amassada de confissões desimportantes para o mundo, onde diálogos imaginados e nunca realizáveis eram montados, palavra a palavra, peça a peça, quebra-cabeça da própria mente.
Quando as ruelas já quase nem são caminhos, é impossível lembrar a última vez que certas portas e janelas foram abertas ou fechadas. Antes remédios irremediáveis do brilho diurno e segurança do mundo noturno, muitas delas perderam os sentidos, deixaram de proteger a si mesmas e não guardam mais que vazios de amontoados de restos e lembranças, cada vez mais distantes e raras. Por vezes e sorte, poucas se tornaram telas de artistas improváveis em grafites que trazem algo sobre vivência.
Pela grade fechada com dois cadeados e correntes vejo duas borboletas fazendo uma ronda no gramado da praça. Parecem voar aleatoriamente, um par de surfistas naturais pela onda verdinha. Mas, na verdade, a natureza é mais que perfeita para fazer as coisas sem um propósito. E logo questiono-me em qual missão estarão as duas ex-lagartas que se metamorfosearam de seres rastejantes para espécies de vôos disformes e ao mesmo tempo brincalhões. Talvez seja encantar, feito fadas de uma manhã, e não digo apenas, porque encantar é uma arte.
A efemeridade e a eternidade da vida em pingos. Na porção unitária acumulada em pontas de folhas, em beiral de tetos, na frieza de ferros de portões. Sim, aquela gota d´água que desce do céu, escorrega feito criança bricante pelos galhos das plantas, pelas rochas, pela pele dos animais de todas as espécies.E brilha feito joia em contraluz, espelha o cenário ao redor, triunfa no seu momento de maior grandeza.
A visita noturna, indesejada, inoportuna e impostora, porém, infalível. Ao penetrar a madrugada, ela desperta e bate à porta, esmurra a janela, como pedrinhas indiscretas, como pancada de chuvarada. Por esses tempos, nem é tão fria, mas arrepia a alma que pede coberta para o corpo. De mansinho retira o sono da cabeça, coloca mil coisas ao perfurar o crânio. São sonhos irrealizáveis, concretos na abstração da escuridão madrugável, exercício inútil de alterar fatos, mover corpos, montar sorrisos.
Ritual de abril
Em dia de chuva, somos pingos
soltos sem para-quedas, libertos
rumo ao abraço, concreto
na atração do beijo, do cheiro
da terra molhada, do espelho
no uniforme ballet sem ensaio
apenas céu em despejo
sobre o nada e o tudo
somos multidão de água dividida em indivíduos
da nuvem à poça, ao copo, ao corpo
ritual de abril, de novo
Perceptível pequeno mundo gigante onde muitas vezes ignoramos sua existência. Passamos ao seu lado, por cima dele, inacreditavelmente nem reparamos sua grandeza e beleza. E perdemos a oportunidades de conhecer mais o nosso próprio habitat, de encontrarmos um pouco de poesia, de descobrirmos que somos grandíssimas miniaturas. Ali, tão perto, atingível, tocável, penetrável...
A mão rabisca contornos impróprios de um especialista. Rascunhos dos galhos, filtros do clarão, da luz com bordas amareladas que desmergulha na linha horizontal da água ou dos entornos de terras distantes, das planícies ou das irregulares elevações. Desenho grafitado em preto e branco, inicialmente superficial, mas com tantos detalhes guardados que adentram aos olhos, estremecem o coração, arrepiam o corpo em saltos diante de visível belezura e mistério. Espasmos de contentamento, fragmentos de todos os tempos.
Era um gosto diferente, a sensação do experimentar, a descoberta traduzida em paladar... em sabor de fruta. O olhar admirado da aprovação diante daquele novo, o cheiro conquistador dos galhos, do chão de tapete de fruto caído e montado naturalmente. E o menino, como num ritual, descobria que fruta madura retirada da árvore brotada no meio do mato tem mais encanto, é mais saborosa. Cajus, mangas, oliveiras, siriguelas, goiabas, jambos, etc.
Juntar a turma, vestir a melhor roupa, contar os trocados para pagar a meia entrada de estudante, entrar na fila, passar na roleta e correr para conseguir um bom lugar, torcendo para não sentar desavisadamente em um chiclete. Ah! Como era bom um cineminha de domingo nos antigos cinemas de João Pessoa (não tão antigos como os pioneiros Metrópole, Santo Antônio ou Brasil). Cito especialmente Municipal e Plaza. Um programa com cheiro de adolescência.
Uma pecinha, duas pecinhas, três pecinhas... E temos as respostas para preencher uma palavra-cruzada, montar um quebra-cabeça, uma vida, uma sociedade. Uma peça só, não faz muito sentido, é um barco à deriva na imensidão do mar. Duas delas indicam um caminho a seguir, uma possibilidade de algo maior. E por aí vai. Todas juntas desordenadas, em conflito é, digamos, um engarrafamento, uma indefinição, um amontoado. Unidades ligadas talvez façam mais sentido, ou algum sentido, ou percam os sentidos.
Embarcados
“Remamos mal, ficamos quase sempre à deriva”
Pois, tudo sempre é um grande risco
Que se trace a rota, passe ao largo às calmarias
Venham ventos! Inflem as velas!
Soem o sino, a partida, a âncora levantada
Que se contorcem em mares, que se contornem as ilhas
E o cabo revolto, amante dos mares furiosos
náufragos do mesmo medo, gritos do mesmo silêncio
E onde ancorar? Proteção ou perdição?
Era o futuro, um espaço imenso que se abriu aos meus olhos. E fui transportado involuntariamente, levado, diferente de antes, quando eu desejei a viagem. Sim, eu estava à frente do tempo, digo, temporalmente, na verdade, paralelamente. Eu conseguia ver o que ainda estava por vir, mas não saíra também do presente. Eu flutuava entre o advir e o agora.
Quando os pássaros ficaram enfileirados na fiação, observando o movimento da rua, era como se estivessem hipnotizados, em uma catarse ao inverso, psicose coletiva. Fixos, em guarda, mas em frenesi mental, feito espectadores diante de uma grande tela, sentados, porém inquietos com os movimentos lançados à sua frente, assistiam a um novo mundo normal. E sim, preparavam de uma janela indiscreta o ataque.
Sentado um instante, corpo inerte enquanto a mente acelerada pensava mil e uma coisas, nem todas com a utilidade de um Bombril, várias inservíveis, distrações cerebrais. E nem percebia que o mundo ao redor observava o distraído corpo que sustentava a cabeça feita uma metralhadora giratória.
Senhoras e senhores... Hoje tem espetáculo. Tem, sim senhor!
Sob a velha lona rasgada, mais trapos que proteção, ou embaixo de uma reluzente cobertura com listras e estrelas, parecendo uma bandeira americana novinha em folha, a alegria estava garantida. E tábuas, cordas... e mastros erguidos. Uma casa de festa, emoção e felicidade. Espetáculo garantido.