NOVA MÚSICA AQUÁTICA
Ó rio Doce, quanto da tua lama
são lágrimas de quem te ama!
Valeu a pena o verso de Pessoa?
De Drummond, o aviso-poema?
Nada vale nada se a alma é pequena.
Reside remota esperança
nas histórias de toda infância.
Existem urgentes cuidados
nos temas da nossa sinfônica.
Rápido reúnam músicos exímios
em Linhares, Colatina, Baixo Guandu
para tocarem peças clássicas
e de nós afastarem os rejeitos da cobiça,
palavras gastas e omissas,
a negligência feita com pesados metais.
Em Linhares toquem Villa-Lobos, Guarnieri,
Guerra Peixe para relembrarmos os antepassados
vindos de terras portuguesas, de campos africanos,
das matas daqui mesmo e que resistiram a tudo.
Nós também resistiremos!
No programa em Colatina incluam
o Concerto de Varsóvia de Addinsell
para homenagear os bravos poloneses
que resistiram em Águia Branca.
Também resistiremos!
Em Baixo Guandu não se esqueçam de Handel, Verdi,
Wagner para celebrarmos brasileiros, italianos, alemães
desbravadores de selvas
e que a tudo resistiram.
Sim, também resistiremos!
O mundo todo marcou um encontro no Rio Doce.
Os sons da orquestra capixaba combaterão a lama
percorrerão o imenso vale, animando as pessoas
para as lutas que virão. A chama
da vida retornará aos poucos,
trazida por cordas, sopros, percussão.
A todos chegará o apelo musical –
aos peixes mortos, às algas desmilinguidas,
às avermelhadas pedras, aos pássaros caídos...
Haverá lagostins novamente
nas rochas submersas em Mascarenhas.
Os cascudos voltarão às suas locas
na altura de Barbados.
E em Regência Augusta, perto do mar, águas limpas
verão de novo os pulos dos robalos.
Resistiremos.
Resistiremos sempre.
Como a pureza resiste dentro da gente.
Como o futuro resiste em cada criança.
NÃO ESTAVA LÁ
Não estive lá, mas é como se lá estivesse.
A fumaça subindo, o rubro das chamas,
pequenas explosões amareladas,
o prédio inteiro iluminado pela última vez.
Não estive lá, mas é como se lá estivesse.
Por que nos agarramos a objetos,
recordações, memórias?
Como escrever poemas depois de Auschwitz?
Não estive lá, mas é como se lá estivesse.
Para que fazer poemas depois do Museu Nacional
incendiado ao vivo e a cores?
Não estive lá...
Um ponto existiu no universo,
num tempo do universo, e dele
fumaça e cinzas subiram,
foram aos céus
qual miúdo sol se derretendo
num sacrifício a Ninguém.
Devem ter chorado por todas essas cinzas,
chorado por toda essa fumaça.
Muitos talvez ainda não saibam:
perdemos um parente,
perdemos pessoa querida,
acabou-se o que era doce juventude.
Foi-se para sempre um pedaço nosso,
dissipado na fogueira desesperada.
Mas tudo bem, a vida continua,
o incêndio será extinto, o calor da hora passará.
Tudo passa, tudo se acaba nesta vida.
Mas precisava ser assim?
Precisava ser tão rápido?
Numa das salas do museu,
a diretora Heloísa Alberto Torres
combinou com o cientista Mello Leitão
uma forma de contratar o jovem Augusto Ruschi
que iniciava suas pesquisas de fauna e flora
em Santa Teresa do Espírito Santo.
Tantas histórias pra contar...
Vi uma vitrine com imenso caranguejo do Alasca,
vi o meteorito Bendegó, caído na Bahia,
vi uns vidros com nove fetos humanos,
mostrando cada mês da gestação.
Respirei sofisticadas culturas indígenas.
Ouvi o ronco das múmias do Egito,
paradas aqui por engano
porque iam pra Argentina e o Império as comprou.
O que mais experimentei?
Mostruários de insetos, de pedras e ossos.
Muitos ossos, até os da preguiça gigante,
quem sabe megatério de Cachoeiro de Itapemirim
antes dos capixabas existirem?
Examinemos o meteorito Bendegó.
Para ele o incêndio não foi nada:
já suportou temperaturas bem mais altas, o Bendegó.
Não seria o caso de fazer nas ruínas
plataforma de lançamento e mandar
o meteorito girar no espaço de novo?
Nós não o merecemos.
Não merecemos mais nada depois dessa fornalha.
Sim, estamos de luto, e falamos as palavras convencionais
quando morre alguém da família ou do círculo de amizades.
E repetimos a expressão:
Esta é uma tragédia anunciada.
Anunciada somente?
É tragédia elaborada pouco a pouco, ano a ano
por nossa incompetência,
por nossa imprudência, nossa imperícia.
Nós os humanos somos todos
urdidores dessas dores, dessas fumaças que subiram
das chaminés de fornos crematórios,
e que agora se elevaram dos restos do Museu Nacional
na Quinta da Boa Vista, Cidade Maravilhosa, Brasil.
Não estava em Auschwitz,
mas é como se lá estivesse.
Não estávamos na Quinta da Boa Vista
mas é como se estivéssemos todos lá
desde as nossas infâncias curiosas.
O que vamos falar pros netos?
Dizer que as fumaças se dissiparam
da mesma forma em Auschwitz
e no crematório do Museu Nacional?
Garantir que as duas tragédias se assemelham
por terem matado pessoas?
No nosso caso, destruíram numa só fornada
o passado e o futuro de muita gente.
Holocaustos não se fazem por acaso:
nossa maldade os constrói.
O que as cinzas do velho museu adubarão?
Se pudesse, o próprio Bendegó deixaria a Terra
depois desse horror.
CULINÁRIA ANTIGA
Tu que tens a ilusão
de tudo dominar, humilha-te.
Do trigo fazes pão e da uva, vinho.
Conservas o leite por mais tempo,
ao transformá-lo em queijo.
Em um animal juntas carne
e o chamas carneiro.
No boi reúnes mais carne,
por gostares muito dela.
Da mandioca brava tiras farinha:
do mal arrancas algum bem.
Mas por que cultivas o horror?
Ele sempre integra tua história, o horror.
Subjuga-te, tu que convertes em aço
o ferro e o carvão.
Eles sumirão se os dissipares.
Nada substitui o original,
até no mundo dos minérios.
E é bom mesmo conservares
sementes em abrigos seguros:
se morrerem os germens das batatas,
todas elas acabarão.
Também entre os vegetais,
nada substitui o original.
Ajoelha-te, tu que aos poucos
conheces as leis da natureza
apenas para lhes obedecer.
Nenhuma tu crias ou revogas.
E és desobediente por natureza.
Para teu bel-prazer, queres tudo amestrar.
Tens animais em cativeiro para repasto teu,
mas esqueces: eles não te pertencem.
No reino onde existem,
nada substitui o original.
Ó povo rude, curva-te.
Domaste poucas aves dos céus.
Submeteste alguns seres das águas.
Selecionaste bichos e plantas
para te servirem assim ou assado.
Erras se pensas que és
o topo da cadeia alimentar.
Acima tem outra besta-fera
que de ti se nutre:
tu mesmo, em teus desvarios.
Nada substitui o original.
Nem teus novos pecados.
Levanta o rosto para responder:
Quem te sujeita?
Quem te amansa, infeliz?
( )
E aí? Continuas mudo?
Guardas a boca somente para comer
o feijão com arroz de todo dia?
Isso até evitaria muita desavença...
Até quando criarás o horror?
Será isto, fabricar o horror,
a tua natureza original?
Verga-te então sob tua própria pequenez.
Nada domesticaste, nem sequer a ti.
E entre borboletas feitas
com pão de forma e manteiga,
igual à Lagarta Azul interrogando Alice
naquele desenho animado do Disney,
convém perguntar ao estranho que te habita:
– Quem és tu?