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Após a reforma no calendário romano, realizada por Júlio César, com a ajuda do astrônomo grego Sosígenes , em 46 a. C., o mês de fevereiro,...

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Após a reforma no calendário romano, realizada por Júlio César, com a ajuda do astrônomo grego Sosígenes, em 46 a. C., o mês de fevereiro, a cada 4 anos, passou a ter 29 dias, de modo a completar com perfeição a órbita da terra ao redor do sol (na época pensava-se o contrário, óbvio). No entanto, mesmo depois do calendário juliano e enquanto permaneceu a contagem tradicional dos dias pelos romanos, nunca existiu o dia 29 de fevereiro.

Natacha Rostóva, na sua ingenuidade de criança, aliada a uma vida fátua de aristocrata, embora em franca decadência, apaixonava-se com faci...

Milton Marques Júnior Guerra e Paz Ambiente de Leitura Carlos Romero

Natacha Rostóva, na sua ingenuidade de criança, aliada a uma vida fátua de aristocrata, embora em franca decadência, apaixonava-se com facilidade. Uma de suas paixões foi pelo príncipe Andrei Bolkónski, com quem chega a ter um compromisso de noivado. Instado pelo pai, Andrei propõe que eles esperem um ano, dando total liberdade a Natacha, durante esse período, até de ela se apaixonar por outro. Se, passado um ano, Natacha mantiver firme a sua decisão, eles se casarão. Por mais que seja duro para ela, Natacha aceita a situação, não sem lamentos.

Pierre Bezúkhov é o conde; Andrei Bolkónski é o príncipe. Oriundos de duas famílias ricas, importantes e respeitáveis, são dois amigos com ...

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Pierre Bezúkhov é o conde; Andrei Bolkónski é o príncipe. Oriundos de duas famílias ricas, importantes e respeitáveis, são dois amigos com trajetórias de vida diferentes, mas que, em um determinado momento, se encontram e se afinam de maneira admirável.

A batalha de Borodinó foi um duro golpe no império Napoleônico. Ferido de morte, naquele dia 26 de agosto de 1812, Napoleão viu desmoronar ...

milton marques ambiente de leitura carlos romero

A batalha de Borodinó foi um duro golpe no império Napoleônico. Ferido de morte, naquele dia 26 de agosto de 1812, Napoleão viu desmoronar com a campanha da Rússia o seu poderoso exército e suas pretensões de ter a Europa sob o seu comando. É Tolstói quem nos conta isso em Guerra e Paz, analisando os fatos de modo contrário ao método histórico utilizado posteriormente para construir uma genialidade de Bonaparte, que o escritor nega, e para explicar as razões da guerra. O romancista defende a tese de que a guerra não se faz por causa da vontade de governantes que se veem como inimigos, mas por milhares de fatos miúdos que se congregam para aquele resultado. Diz ainda que os historiadores jamais entenderão esse fenômeno e qualquer outro, enquanto se debruçarem sobre fatos descontínuos e sobre as ações de imperadores, reis, governantes, ministros, generais, deixando de lado o continuum das ações e dos movimentos das massas – “a unidade histórica escolhida é sempre arbitrária” (Tomo III, Terceira Parte, Capítulo I).

Cultura é uma palavra interessante. Já pararam para pensar no que ela diz e no que ela representa? Sabiam que “colono” e “inquilino” provêm...


Cultura é uma palavra interessante. Já pararam para pensar no que ela diz e no que ela representa? Sabiam que “colono” e “inquilino” provêm da mesma raiz? Conhecem aquele bairro de Roma, onde se encontra a estação Termini e em que morou o poeta Marcial, o Esquilino, situado na colina do mesmo nome, a mais alta das sete que compõem o traçado da Cidade Eterna? Pois é, essa denominação também possui a mesma origem.

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O termo cultura é oriundo do mundo rural, proveniente do verbo latino “Colo”, “Colĕre”. Quando essa forma verbal surge, ela tem o sentido de cultivar a terra e também os deuses que protegem aquele lugar, agora escolhido como morada. Daí que colĕre tanto pode ser cultivar, quanto habitar. Eis a sua relação com “colono”, o que habita e cultiva uma determinada terra, e com “inquilino”, aquele que habita em algum lugar, sem que necessariamente venha a cultivá-lo.

No que diz respeito ao bairro romano, no traçado original da cidade, feito por Rômulo, o Esquilino se situava na parte externa do reino, vindo a ser incorporado bem mais tarde. Hoje, integra-se perfeitamente ao perfil de Roma, abrigando a Basílica de Santa Maria Maior, uma das suas sete maiores igrejas.

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Basílica Sta Mª Maggiore
Com o passar do tempo, o verbo amplia o seu sentido de cultivar a terra e os deuses que a protegem, e de habitá-la, para o sentido de cultuar a memória e a tradição, de modo a repassá-la às gerações seguintes. Assim, o substantivo “culto”, forma deverbal proveniente do supino “cultum”, tem o significado de “ação de cultivar”, passando a designar também um cuidado com as coisas do espírito, que devem ser preservadas. Embora possa parecer que os termos são muito diferentes – cultivar, colono, inquilino –, eles guardam em comum uma mesma raiz primitiva, em que constam os fonemas “kl”.

Cultura é, portanto, o que se cultiva ou cultua, materialmente ou no espírito; numa relação com a divindade ou por necessidades pessoais e do intelecto. Responder à questão que dá título a este texto é fácil. Todos temos cultura. Qualquer intervenção do homem feita na natureza, modificando-a, é um ato de cultura. Questão mais complexa é, como ouvi num debate na televisão, se há pessoas com mais cultura do que outras. Eu diria que, quanto maior o desenvolvimento tecnológico e humanístico, mais a cultura se expande. Há pessoas com mais cultura do que outras, então? Não tenho certeza, pois todos, particularmente, possuímos saberes que outros não têm. Mas posso afirmar que, decididamente, há mais pessoas com acesso aos bens culturais do que outras. Incluindo aí tanto o saneamento, quanto as bibliotecas...


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor e escritor

Admiro-me com a reação exacerbada das pessoas diante da morte, como se ela não fosse parte da vida. Não deveríamos nos surpreender com a “I...

preparacao para morte

Admiro-me com a reação exacerbada das pessoas diante da morte, como se ela não fosse parte da vida. Não deveríamos nos surpreender com a “Indesejada das Gentes” ou a “Iniludível”, como a chamou Manuel Bandeira, fazendo jus a sua característica maior.

Para quem acredita que só há uma vida, a da materialidade, o normal seria que a pessoa se preparasse para morrer, gozando o máximo possível da sua efêmera existência e fazendo de tudo para estendê-la até o seu limite. Para os que acreditam na imortalidade do espírito, há pelo menos duas possibilidades de lidar com a morte. A primeira é que só morremos uma vez e teremos uma vida depois de consumada a nossa pequena permanência na terra. A segunda é a de que morreremos muitas vezes, porque viveremos tantas vidas quantas forem necessárias para aprendermos o caminho para a espiritualidade maior, que consiste na iluminação. Em suma, devemos nos preparar para a morte, não importa qual seja a nossa concepção de vida.

O suicida não tem a mínima ideia das dores que vai encontrar
Em qualquer das possibilidades apresentadas, a morte será sempre uma passagem: para o aniquilamento, para uma vida posterior ou para novas vidas de aprendizagem. Nesse último caso, uma aprendizagem que terá como Mestre, no mais das vezes, a dor, que deverá nos preparar para as outras vidas que teremos. Se formos bons alunos, aprenderemos depressa e diminuiremos a nossa frequência de vidas e de mortes. Se formos maus alunos, nos atrasaremos e aumentaremos os nossos encargos, cujas responsabilidades negligenciaremos, além de acusarmos os outros por escolhas que são nossas.

Não é que não possamos nos lamentar diante da morte, principalmente, de um ente querido, mas devemos ter a consciência de que ela é apenas um estágio para o nada, e não há o que temer ou lamentar, se a vida tiver sido bem aproveitada; para a espiritualidade, o que significa, no mínimo, uma nova chance de aprender, de mudar e de seguir adiante, em direção à iluminação.

Lamento mesmo, deveríamos expressar não por alguém que morreu, mas por alguém que se matou. Se em nada acreditava, o suicida trouxe dor para a família, crendo libertar-se do sofrimento de viver; se acreditava em uma vida espiritual, ele não tem a mínima ideia das dores que vai encontrar até que lhe seja dada a oportunidade de viver nova existência material. 

De qualquer forma, a julgar pelo que venho acompanhando nas redes sociais, quando morre alguém, constato que não é que as pessoas não estejam se preparando para a morte, elas não estão preparadas é para a vida.


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor e escritor

Tolstói escreveu em uma de suas cartas que “a história seria algo excelente, se fosse verdadeira”, afirma Rubens Figueiredo, tradutor de Gu...


Tolstói escreveu em uma de suas cartas que “a história seria algo excelente, se fosse verdadeira”, afirma Rubens Figueiredo, tradutor de Guerra e Paz.

Não sei se na grade curricular do curso de História existem disciplinas como Filosofia da História ou Pensamento Crítico e História. Não sei, portanto, se há uma discussão sobre como se faz a história e, principalmente, a sua falibilidade. Digo isto porque o que mais vejo são posições inflexíveis, inamovíveis, sobre a certeza da história. Nada mais enganador.

guerra e paz tolstoi
Léon Tolstoi
A referência a Tolstói, no início deste texto, não foi apenas para cutucar a onça com vara curta ou deixar no ar uma afirmação cujo contexto desconheço e que, no mínimo, se pode chamar de provocativa. Referi-me ao escritor russo, porque considero brilhante o Capítulo I, da Primeira Parte do Tomo Três, de Guerra e Paz. Texto que deveria frequentar as aulas de História, para uma reflexão sobre essa ciência.

Como se sabe, esse romance de Tolstói trata, a um só tempo, da vida cheia de intrigas dos salões aristocráticos russos e das guerras napoleônicas, travadas entre 1805 e 1812, envolvendo a Prússia (Alemanha), Áustria, Polônia e Rússia, cujo ponto alto é exatamente a campanha contra a Rússia, uma das mais amargas derrotas sofridas pelo general e imperador corso.

guerra e paz tolstoi
O escritor russo começa o referido capítulo tratando do início dessa guerra contra a Rússia, num emblemático dia 12 de junho de 1812. Na sua definição, e não podia ser mais exato, Tolstói diz que a guerra começada, com a travessia do rio Niemen por Napoleão, rio que fazia a fronteira entre a Polônia e a Rússia, era “um acontecimento contrário à razão humana e a toda natureza humana”. Napoleão, portanto, teve também o seu Rubicão. A guerra aparece ao romancista em uma palavra precisa e sem eufemismo – um crime:

“Milhões de pessoas praticaram, umas contra as outras, uma quantidade tão inumerável de crimes, embustes, traições, roubos, fraudes, falsificações de dinheiro, pilhagens, incêndios e assassinatos, como não se encontram nos autos de todos os tribunais do mundo em séculos inteiros, e, naquele período, as pessoas que agiam assim não consideravam que nada disso fosse um crime.”

Sondando as causas para tão “extraordinário acontecimento”, Tolstói conclui que a História não tem como abarcar toda a miríade de fatos que levam à insanidade da guerra e que levaram a essa guerra, em particular. O que se apresenta como explicação e justificativa lhe parece sempre insuficiente e incapaz de ser apreendido, por qualquer pessoa que tenha um mínimo de bom-senso:

“Para nós, não é compreensível que milhões de pessoas cristãs tenham matado e martirizado uma às outras porque Napoleão era ambicioso, Alexandre era obstinado, a política da Inglaterra era astuta e o duque de Oldenburg fora ultrajado.”

A crítica que Tosltoi faz à História, como ciência que não se pode tomar por infalível, mostra, na prática o que é Guerra e Paz
Há, para Tolstói, muitos “se”, que deveriam ser analisados dentro da imensidão de fatos que concorreram para essa guerra e outras existirem. Todos os “se” são condições que se acumulam para desaguar em uma ocorrência ruinosa como a guerra e não podem ser deixados de lado, pois eles compõem as “bilhões de causas” que “coincidiram para produzir o que ocorreu”. Dentre os “se” apontados como causal, não como casual, está a Revolução Francesa, que podemos dizer ser a mãe de Napoleão:

“Tampouco poderia ter ocorrido a guerra [...] se não tivessem acontecido a Revolução Francesa, a ditadura e o império subsequente, bem como tudo aquilo que decorreu da Revolução Francesa [leia-se aqui um reforço à ascensão meteórica e fulminante de Napoleão, impondo derrotas acachapantes à Europa], e assim por diante. [...] E por consequência nada foi a causa exclusiva do acontecimento, e um acontecimento tem de ocorrer apenas porque tem de ocorrer.”

O irônico é que Tolstói recorreu aos documentos históricos, sobre os quais se debruçou por 5 anos, para poder escrever o seu livro e tê-lo pronto em 1869. A crítica que ele faz à História, como ciência que não se pode tomar por infalível, mostra, na prática o que é Guerra e Paz: um livro em que os acontecimentos históricos banais (a vida da aristocracia russa e seus enfadonhos e empoados salões de bailes) e aqueles mais decisivos para o destino da humanidade (as guerras que destroçam vidas, de modo irreparável, para jamais) mostram uma escolha entre tantas possíveis, realizadas não num compêndio maçante, que se quer a visão objetiva da realidade, mas em um vibrante texto literário em que a ficção, como nunca, se mostra mais plausível do que qualquer relato histórico.


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor e escritor

– Tudo isto que o senhor vê, é meu, sim senhor. De cima do muro do cemitério, de onde procurava divisar alguns túmulos, eu escutava o que...


– Tudo isto que o senhor vê, é meu, sim senhor.

De cima do muro do cemitério, de onde procurava divisar alguns túmulos, eu escutava o que dizia a velhota com um sotaque lusitano carregado da gente do Norte, ao casal que procurava informações sobre a família.

– Todas estas fruteiras, continuava a velhota, fui eu que plantei, junto com meu marido – que Deus o tenha! Algumas tive que mudar da beira da estrada para cá, mais para cima, porque me roubavam as frutas. Outras, eu mesma enxertei.

Juntei-me ao casal, pois a velhota, uma personagem do século XVIII ou XIX, perdida naquelas paragens, no cimo de uma serra portuguesa, em pleno século XXI, chamava-nos para conhecer a sua casa. Gente da cidade, acostumada à vida sedentária e ao deslocamento em automóvel, subíamos o caminho um tanto íngreme da casa da senhora com um bocado de esforço. Ela, apesar da idade, não menos de setenta anos, sequer arfava. Pelo caminho, ela colhia frutas – ameixas, figos, peras, maçãs – que nos ia oferecendo com uma grande satisfação. Veio-me, de súbito, à mente a história de Joãozinho e Maria. A boa velhinha parecia-me uma bruxa que nos atraía, com sua aparência de bondade e desprendimento, a um covil, onde nós seríamos, por fim, assados e comidos. Mas subíamos, instados pela velha. Sozinha, viúva, idade avançada, filhos distantes, sua única distração era a plantação e a missa aos domingos. Quando chegamos a sua casa, a idéia de covil se cristalizou diante de mim, sobretudo por existir uma toca fechada, onde um cão arfava e gania.

– Ah, este é o meu cãozito. É quem me faz companhia.

Tive a sensação de que era mais uma maneira de a velhota nos enganar. A qualquer instante sairia daquela toca um ogro que a ajudaria a nos devorar. Aberta a porta, saiu um cãozinho carinhoso, que logo aproximou-se de nós, balançando o rabo e querendo nos cheirar e lamber. Já demorávamos bastante ali, sem ter conseguido saber nada a respeito da família do casal, uns Sebadelhes que haviam migrado há muito tempo para o Brasil. Saímos, não antes de batermos umas fotos com a velhota, sorridente, apesar de seus únicos dois dentes. Na sua solidão e abandono, tendo, naquele instante, pessoas que a escutavam, ela insistia para que ficássemos, pois nos daria um pouquito de pão. O sol, no entanto, já andava no meio-dia e ainda teríamos que ir a Terrenho, vilarejo de Trancoso, ali pertinho de Sebadelhe da Serra, onde nos alojamos.

Descemos um pouco a serra, chegamos em Corças, onde encontramos uma mulher que nos apontou um caminho melhor para Terrenho. Pelo mapa, deveríamos fazer todo o caminho de volta, pois Terrenho ficava paralela a Sebadelhe da Serra. A mulher disse haver uma ligação por cima da serra, que tornaria o caminho mais curto. Voltamos e fizemos o caminho pelo topo da Serra, aproveitando a visão do vale verde, todo plantado de uvas e azeitonas, com o rio Douro, caudaloso, abaixo, aproveitado em barragem. À primeira vista, Terrenho não nos pareceu grande coisa, pois ficava ao largo da estreita rodovia. Não nos demos conta de que deveríamos entrar pelas vielas estreitas e inclinadas para chegar ao coração da freguesia.

– Bom dia, senhores. Qual o caminho para a igreja? O grupo de três operários nos olhou com certa desconfiança e nos indicou o caminho, único, sem erro.

Uma igrejinha modesta, sombreada por várias árvores frondosas, parecia fechada. Em frente à igreja, um pequeno comércio que funcionava a um só tempo, como mercado, posto telefônico e correio. Uma senhora idosa, que não parecia nos compreender veio saber o que nós queríamos, mas foi a moça do pequeno comércio que nos ajudou. Nova na região, não sabia dizer nada, não senhor, mas sua tia talvez soubesse, pois vivera ali toda a sua vida.

– Tia Agustinha, Ó tia Agustinha! Está cá um moço que quer ter com a senhora, gritava ela para um sobradinho.

Da janela do sobradinho, tia Agustinha disse lembrar-se, sim, dos Sebadelhes e da menina Emília, que ali vivera e até deixara uma casita fraquita, pois sim. Mas quem se lembrava realmente e poderia ajudar era o senhor Amado que conviveu com eles. Descemos em direção à casa do senhor Amado para saber alguma informação da família do casal. Havia indícios, mais do que fortes de que a família teria vivido ali em Terrenho, antes de partir para o Brasil. Com um ar de desconfiança, sentado em sua cadeira de rodas, o senhor Amado nos recebeu, conduzidos que fomos pela sua afilhada, Dona Justina.

– Sou sobrinho-neto de Emília Pereira... tentou dizer o senhor Sebadelhe, que procurava rastrear as origens da família.

– Impossível, cortou o velho, ela não teve filhos.

– O senhor não entendeu. Eu sou neto do irmão mais velho de Emília Pereira, José Augusto Sebadelhe. Sou, portanto, sobrinho-neto de Emília Pereira.

O velho ainda nos olhava com desconfiança, como quem quisesse nos pegar em alguma contradição. O Senhor Sebadelhe disse que seu avô tinha partido para o Brasil, ainda jovem e lá tinha constituído família. Emília Pereira tinha ido ao Brasil para ficar com o irmão, mas por causa de desentendimento com a cunhada teria voltado para Portugal. Ele queria saber se o senhor Amado os conhecia, se tinha sido amigo de Emília, de quem ele não tinha tido mais notícias...
– Amigo, não, apressou-se a dizer o velho, amigo de amizade, sim.

– Sim, amigo, no sentido brasileiro do termo, é amigo de amizade. O senhor, então a conheceu?

– Sim, conheci todos. José Augusto, António Augusto, Teresa, Filomena, Joaquim e Emília. Filomena ainda vive? Perguntou o velho visivelmente emocionado.

– Eu perdi contato com ela, não sei lhe dizer. Não sei nem mesmo notícia da filha dela...
– Telma, disse o velho.
– Sim, Telma. Pelo visto o senhor a conheceu também.

O velho, então, começou a falar de toda a família. Do avô e dos pais de Augusto Sebadelhe, dos irmãos deste. Haviam, em criança e na adolescência, convivido. Depois da partida para o Brasil, apenas mantivera o contato com Emília, que ali morrera e deixara alguma coisa, que ele mandara para Filomena e até hoje não sabia se ela recebera. A cada palavra, a cada recordação, o velho se emocionava e tinha que buscar ar para poder continuar a narrativa, muitas vezes atrapalhadas pela Dona Justina, sobretudo quando se tratava de falar de bens ou de algum documento da família. O senhor Sebadelhe, também emocionado dizia do bem que o senhor Amado lhe fizera, ao proporcionar-lhe um reencontro com a família, mesmo que fosse à base de recordações. Não tinha qualquer interesse material, mas sentimental nesse reencontro. Agora podia dizer com certeza onde vivera seu avô, ali estivera e pudera reencontrar as raízes.

Valera a pena sair de tão longe na incerteza de encontrar algo e subir uma serra de curvas estreitas para encontrar o passado personificado em um velho numa cadeira de rodas.

Quando pegávamos o carro de volta para Salamanca, cruzamos com o padre que levava a comunhão ao senhor Amado, e ainda ouvimos a voz esganiçada da moça do pequeno comércio.

– Tia Agustinha! Ó tia Agustinha!

(episódio vivido nas Serras do Norte de Portugal, fim de verão, início de outono de 2002)


Milton Marques Júnior é professor, escritor e membro da APL
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A meu sobrinho Johnny Formiga, professor como eu, diante da pergunta impertinente e descabida que lhe fizeram – “Para que serve ser índio?”...


A meu sobrinho Johnny Formiga, professor como eu, diante da pergunta impertinente e descabida que lhe fizeram – “Para que serve ser índio?”

Um dos momentos sublimes da Literatura Universal é a parte VIII do poema “I-Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias. Desconheço outro texto – é possível que haja –, em que um pai se dirige a um filho amado com uma fala mais violenta e mais infamante do que esta. O que nos impacta não é a diatribe do discurso, de que a literatura está cheia. O impacto é causado pela beleza da emoção, em defesa da dignidade. O ritmo do poema, um eneassílabo bem marcado, com pausas na terceira, sexta e nona sílabas, faz reverberar dentro do filho o poder da invectiva do pai, como se um chicote um açoitasse numa frequência inalterável, expressando uma homologia inquestionável entre fundo e forma.

Motivado por um suposto acovardamento do filho diante do sacrifício antropofágico, o velho Tupi, alquebrado pelos anos e cego, faz questão de saber o porquê de o filho ter chegado à sua presença com todos os sinais da preparação para o sacrifício, percebido pelo toque das suas mãos no corpo do filho – cabeça raspada, muçurana atada do colo à cintura, corpo pintado com a pintura sacrificial, canitar cingindo a cabeça, enduape à cintura...

Em chegando às terras inimigas, embora com dificuldade, diante do chefe Tupi, o velho tem notícia de que o filho chorou e implorou para ser poupado, tendo sido libertado por sua covardia – “Não queremos/Com carne vil enfraquecer os fortes” (Parte V). A história do filho não bate com a dos Timbiras: o filho pediu pelo velho pai e voltaria para o sacrifício, após a sua morte; os Timbiras o consideram apenas um covarde que chorara diante da morte:

“É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto.” (Parte VII)

A resposta do chefe Timbira é um duro golpe para um pai que quer ver no filho a continuidade do seu próprio heroísmo. O discurso não poderia ser outro, a ética guerreira exige o cumprimento do ritual antropofágico, para exaltação do valor do herói.

O poema, porém, vai mais além do que o heroísmo individual. A negação ao sacrifício, assim entendida pelos Timbiras e pelo velho pai, não fere apenas a dignidade de um homem, fere a dignidade de uma nação, que se empenhou em mais do que se dizer digna, provar-se digna. Não são as palavras que nos definem, mas as nossas ações e a distância ou a proximidade que elas apresentam com relação às nossas palavras.

Eis a beleza da poesia. Quando pensamos que Gonçalves Dias está apenas tratando dos valores indígenas e nos mostrando a sua cultura, ele com o poder da criação poética (perdoem-me e aceitem o pleonasmo enfático, por favor!) está falando da dignidade humana, de que não devemos abrir mão, mesmo em prejuízo próprio. O prejuízo aparente de hoje será o ganho moral de amanhã, com que construímos a virtude e a justiça. Somos uma só espécie e só teremos respeito mútuo, quando os valores começarem a ser reconhecidos e cumpridos.

Fiquem com o poema e a com a grandeza poética de Gonçalves Dias, celebrando a dignidade humana.

VIII
"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de via Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas com asco e terror!

"Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."


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A palavra de ordem, no mundo atual, é pandemia. Esta palavra inclusive se ajusta à expressão “mundo atual”, pois, formada por pan e demos,...



A palavra de ordem, no mundo atual, é pandemia. Esta palavra inclusive se ajusta à expressão “mundo atual”, pois, formada por pan e demos, significa, literalmente, no grego, “o povo inteiro”, acossada que se encontra a Terra com o coronavírus. Certamente, a pandemia acabou por nos provocar uma pándeima, ou pavor completo, devido ao número grande de informações e desinformações desencontradas e disseminadas, muitas sem critério, pela imprensa e pelas redes sociais. Diga-se, em favor da palavra pandemia que, na sua origem, ela não tem qualquer relação com doença, significado que se desenvolveu após as várias pestes que se alastraram pela humanidade, desde o final do século XVI, a partir de 1580. Nesse período, uma doença oriunda da Ásia, em seis meses se espalhou pelos continentes africano, europeu e pela América do Norte. Registre-se que, nesse momento, a língua grega, assim como a latina, circulava nos meios eruditos e científicos, como uma espécie de coiné, língua comum aos frequentadores desses círculos.

Deixemos de lado a pandemia e vamos nos concentrar em pandêmia, palavra da mesma etimologia, cujo sentido, bem semelhante ao anterior, significa “comum ao povo inteiro”. Este segundo termo vem de Platão e se encontra no famoso diálogo Simpósio, mais conhecido como O Banquete. Em realidade, o título grego Symposion condiz mais com a situação encontrada no diálogo platônico: os convivas se reúnem para beber e conversar, mais do que para comer. Há até uma vã tentativa, no início da reunião, por parte do médico Eryxímaco, de se fazer um pacto para que se beba menos, tendo em vista que a embriaguez é um mal aos homens, e os que ali se encontram, inclusive ele próprio, não têm fôlego para bebida. Exceto Sócrates...

A festividade ocorre em casa do tragediógrafo Agáthon, que comemora, na oportunidade, a vitória de sua primeira tragédia, no concurso oferecido anualmente em Atenas. Toda discussão deve girar em torno de um elogio sobre o Amor, proposta feita pelo mesmo Eryxímaco, de modo a preencher uma lacuna deixada pelos poetas. Tendo sido aceita a proposta, Fedro é o primeiro a fazer o elogio ao Amor, construindo-o a partir de Hesíodo, vendo-o, portanto, como o mais antigo, mais honrado e mais senhorial dos deuses, cujo objetivo é conduzir os homens à virtude, areté, e à felicidade, eudaimonia, durante a vida e depois da morte.

O segundo discurso é de Pausânias que, de pronto, quer saber sobre qual Amor se deve fazer o elogio, porque ele divisa dois, na figura de Afrodite: a Afrodite Urânia, de origem hesiódica, que não tem mãe e é filha de Uranos, o Céu, e a outra, a Afrodite Pandêmia, de origem homérica, filha de Zeus e de Dione.

A diferença entre elas consiste em que todo Amor só é belo e digno de elogio, quando se ama para o bem, como o Amor da alma. O que ama mais o corpo do que a alma, ama só o macho e a fêmea. Se a Afrodite Pandêmia é um amor vulgar, por amar só o corpo, a Afrodite Urânia desconhece o impulso brutal que leva ao sexo pelo sexo. Pausânias estabelece, então, que o que faz o Amor belo são as práticas belas; o que faz o Amor feio, são as práticas feias, devendo o homem amar para a virtude, para o bem e para a justiça, tudo devidamente regido pela Afrodite Urânia. Jamais devemos buscar o Amor por interesse monetário ou por poder político, o que, por si só, é vergonhoso. É perfeitamente belo ceder ao Amor, quando se faz isto por virtude. Os Amores fora dessa beleza são da ordem da Afrodite Pandêmia, baseados na vulgaridade e na baixeza dos instintos, que nada trazem para a elevação da alma.

É quando a pandemia se encontra com a Pandêmia.



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Não é de hoje ou por ser moderninho que faço serviços domésticos. Filho de uma família grande, somos nove irmãos, fomos educados por min...



Não é de hoje ou por ser moderninho que faço serviços domésticos. Filho de uma família grande, somos nove irmãos, fomos educados por minha mãe e por meu pai na responsabilidade. Minha mãe nos legava as tarefas domésticas e o cuidado com a profilaxia, palavra que, desde eu menino, como diria o poeta, aprendi com ela. Nosso pai nos impunha levar as encomendas de seu açougue aos  fregueses, bem como lavar o açougue no domingo pela manhã, para começar a semana limpo. De quebra, aprendemos a aritmética do troco, já devidamente calejados pelo aprendizado, literalmente doído, da taboada, com a nossa mãe…

Lavar louça, varrer casa, ajeitar o quarto, tirar o lixo, fazer comida, tudo isso se tornou um hábito para mim. Até hoje, faço comida para 20 pessoas, como feijoada ou cozido, e deixo a cozinha limpa como se ninguém tivesse passado por ali.

Digo estas coisas porque neste período de quarentena, as tarefas de casa se multiplicam, principalmente as de cozinha.

Há quem tenha comparado a tarefa de lidar com a cozinha com o suplício de Sísifo. Trata-se de má comparação. Sísifo, quando descia a encosta da montanha, tinha tempo de pensar em um modo de colocar a pedra no topo e, assim, livrar -se do suplício. Se era um trabalho sem fim, o de Sísifo, ao menos lhe dava, em algum momento, tempo para refletir sobre a sua situação.

Comparo o trabalho de cozinha com o suplício das Danaides, cuja continuidade, normalmente, não dá tempo para a reflexão. As 49 irmãs, filhas de Danaos, foram condenadas, pelo assassinato de seus maridos, na noite de núpcias, a encher, no Hades, um tonel sem fundo, carregando água numa peneira. O derramamento de sangue parental, pois os maridos eram seus primos, é que acarretou em suplício tão requintado.

Apesar de ser infindável o serviço de cozinha, além de pouco produtivo, não reclamo. Seja pelo hábito de fazê-lo, seja por fazer passar o tempo do confinamento, seja porque acabei descobrindo uma utilidade: refletir sobre a paciência e remoer algum texto na memória.

A vida nos ensina de diversas maneiras.

* Milton Marques Júnior, Professor de Literatura, escritor, critico e ensaísta paraibano

No capítulo 5 do Evangelho de João, versículos 1-16, Jesus cura um paralítico que há 38 anos sofria com a sua doença. Ele se queixava de nin...



No capítulo 5 do Evangelho de João, versículos 1-16, Jesus cura um paralítico que há 38 anos sofria com a sua doença. Ele se queixava de ninguém o levar à piscina (kolumbétra, em grego) de Betesda, no momento propício para a cura, quando a água se agitava. Havia sempre algum que se antecipava a ele e descia nas águas curativas. Jesus pergunta-lhe se ele quer ser curado, o paralítico conta-lhe a sua história e Jesus diz: – “Levanta-te, toma o teu grabato e anda!” E assim se dá.

A frase ainda se repete mais duas vezes. Uma, pelo próprio paralítico; outra, pelos judeus que, por ser sábado, recriminam o homem por carregar o seu grabato, não observando as regras do Shabbat.

A palavra grabato, no grego krábatos (esta palavra origina também o francês grabat), apesar de significar um leito miserável, enxerga, catre, é de fundamental importância no episódio.

Quando Jesus entra em contato com o paralítico, apenas pergunta se ele quer tornar-se sadio (hugiés, em grego), diante da lamentação do paralítico por não alcançar a tempo as águas da piscina de Betesda. Jesus o cura, sem sequer tocá-lo, sem dizer-lhe quem é.

Duas coisas podemos afirmar: o homem é curado pela sua fé; não há qualquer milagre no fato, mas a força da energia do bem que emana do Cristo é que curou o enfermo, do mesmo modo que cura a hemorragia de anos da mulher que toca, com fé, a fímbria de sua túnica e ele sente sair de si um poder (dúnamim, em grego – Lucas, 8,46).

Por outro lado, por que Jesus dir-lhe-ia para se levantar, pegar o grabato e andar? Por que não se omitir a ação de pegar o grabato? Não seria apenas para que o paralítico deixasse ali a sua enxerga, ou porque viesse a precisar dela.

O propósito maior de Jesus pedir-lhe para, uma vez curado, pegar o seu grabato é para que ele, o paralítico pudesse se lembrar de seu sofrimento. O grabato é a lembrança viva dos 38 anos de sofrimento em cima de uma enxerga.

Cada um de nós devia se lembrar de nosso grabato e carregá-lo, não nas costas, mas na mente, como lembrança do que sofremos por nossas próprias ações.

Jesus nos ajuda a curar, mas precisamos querer e ter fé para que isto aconteça. Estamos sendo curados, lentamente, a cada encarnação e podemos apressar a nossa cura, desde que aprendamos a lição, que se encontra nas últimas palavras que Jesus dirige ao paralítico, quando o encontra no templo: – “Ficaste curado, não cometas mais erros, (mekéti hamartáne, em grego) para que não te suceda coisa ainda pior”.

Não sabemos o que aconteceu ao paralítico, mas sabemos que ele disse aos judeus quem o curou e eles perseguiram Jesus. Assim fazemos nós: esquecemos as bênçãos que recebemos, deixamos de lado o nosso grabato, olvidando as dores por que passamos, e ainda demonstramos a nossa ingratidão vituperando quem nos enche de graça.

É preciso não esquecermos a nossa enxerga!

"(...) tendo partido para as esferas espirituais, tenho certeza de que aqueles que se lembrarem de mim, o farão me chamando de professo...


"(...) tendo partido para as esferas espirituais, tenho certeza de que aqueles que se lembrarem de mim, o farão me chamando de professor, (...) não como “o eco particular do meu Destino”, mas com as obras plantadas pelos exemplos colhidos no curso vida e da profissão.



Discurso de Posse do Professor Milton Marques Júnior na APL

Os Professores e a Academia: Plantando as Sementes do Saber e da Criação

A Chegada

Chego a esta Casa. Aqui me encontro diante de todos vós. O desafio de chegar até aqui foi grande, mas não se resume a chegar. Chegar é só um passo dado diante do significado de ser acadêmico. A partir de agora, novos desafios acontecerão, pois cabe a todos os que fazemos esta entidade trabalhar em prol do conhecimento e revertê-lo à sociedade que a abriga. Assim, concebeu Platão a sua academia.

A Academia de Platão

A Academia de Platão foi fundada no século IV a. C., por volta do ano de 384, num bosque a noroeste de Atenas, e consistia numa associação exclusiva para aqueles que ali eram admitidos, ainda que não se pagasse nada para a sua admissão. O nome academia (a)kadh/meia) é proveniente do mitológico personagem, Academos ( )Aka/dhmoj), que teria indicado a Castor e Pólux, os Dióscuros, onde Helena se encontrava, depois de sequestrada por Teseu. Tendo resgatado a irmã, os dois irmãos e seus companheiros espartanos decidiram não incendiar o bosque, que passou a ser conhecido como “O Jardim de Academos”.

O objetivo da Academia de Platão era o ensinamento da ética e da justiça, segundo nos afirma Giovanni Reale, em sua História da Filosofia Antiga, volume III. Mais importante do que a sistematização de um saber científico, Platão vislumbrava a necessidade de se constatar a impossibilidade de a alma reconhecer a justiça sem ela mesma ser justa. Só com a alma constituída de bem, pela sua alta espiritualidade, é que se pode compartilhar esse conhecimento iluminado, diz Giovanni Reale, citando uma carta da velhice de Platão. Não é por outro motivo que, na República, a sua obra maior, Platão afirmar ser a justiça a virtude da alma (a)reth/n yuxh=j ei=nai dikaiosu/nhn, 353e).

Sim. A academia platônica era movida pela necessidade de saber, vez que o filósofo, como definia Sócrates, é aquele que ama saber, não aquele que ama o saber. Para Giovanni Reale, a academia platônica é o núcleo do que hoje se constituíram as universidades, local que deveria ser, por excelência, onde se realiza a busca do saber. As discussões na academia platônica variavam, abrangendo todos os temas: ética, política, astronomia, matemática, linguagem, literatura, natureza da alma, mas todos voltados para um único caminho – dikaiosu/nh, a prática da justiça –, sem a qual a sociedade tenderia a sucumbir. Como não ver por exemplo a discussão sobre o amor e a natureza da alma, no Fedro, ou a recusa de Sócrates de escapar da sentença de morte, por acreditar nos princípios éticos e no destemor da morte, sem os quais o filósofo não existiria, nem estaria no topo da reencarnação, como podemos ver no Críton e no Fédon? Como não entender a visão ética sobre a criação poética, que Platão definia como imitação, e que deveria ser cuidadosamente encarada quando levada às crianças, na República, cuidado que confundiu as pessoas, achando que Sócrates estava expulsando os poetas da cidade ideal que criava, quando na realidade estava salvaguardando a educação, paidei/a, sadia para as crianças, num Estado que deveria ser são? Como não considerar as discussões sobre inspiração e técnica, no fazer poético, que abrem espaço para as primeiras reflexões sobre a diferença entre doxa (do/ca), a opinião, e episteme (e)pisth/mh) o conhecimento, conforme se encontra no Íon?

Eis o espírito de uma Academia. Procurar amar saber, buscá-lo, investigá-lo, colocá-lo na ordem do dia e das discussões, para, a partir dele, pensar em uma sociedade justa. Esta é a ideia que encontramos embutida no brasão desta Casa – Decus et Opus, Honra e Obra. É através das obras que realizamos, que mostramos o que é a honra, virtude inseparável da justiça, que está na base da academia platônica, formalizada de modo inquestionável na Alegoria da Caverna: o saber afasta as sombras da aparência, ofuscando inicialmente quem vive nas trevas e exigindo um esforço de quem se propõe subir o íngreme caminho até a luz. Uma vez acostumado à luz, aquele que se coloca diante do saber tem a responsabilidade de fazer a descida para tentar resgatar os que ainda estão sob a opressão e as impressões das sombras. Esta nossa obra, esta nossa honra.

Meus Antecessores

Cabe-me, neste momento, dar uma palavra sobre os meus antecessores, nesta Cadeira de número 40, que logo passarei a ocupar.

O Patrono Cândido Firmino de Mello Leitão

Cândido Firmino de Mello Leitão é o patrono da Cadeira. Cientista, botânico e zoólogo, com ênfase na entomologia, mais especificamente nos aracnídeos, ordem da qual descobriu, nomeou e classificou perto de 70 espécies, como a Lasiodora Parahybana, tarântula descoberta em Campina Grande, em 1917. Professor e taxonomista, “um gigante que pode ser visto por diversos ângulos, como professor, conferencista, pesquisador, escritor de livros didáticos, historiador, biogeógrafo, escritor e quase poeta”. É o que diz Lauro Pires Xavier, no seu discurso de posse, ocasião em que se tornava fundador da Cadeira de número 40 (publicado em plaquete, em 1972, p. 20, acervo da APL). No mesmo discurso Lauro Pires Xavier o aponta como menino prodígio, tendo recebido o diploma de Doutor em Medicina, com a tese Da Polistease Visceral (p. 21).

Mello Leitão foi um dos criadores do Horto Botânico da Escola Normal de Niterói, por compreender que o ensino da História Natural deveria ser feito a partir de espécimes vivos (p. 23). Precursor da Ecologia, como um dos ramos da Botânica, em 1924, quando a palavra sequer havia sido dicionarizada, no Brasil – só o foi em 1928. (p. 24). Orgulho-me, portanto, de estar ocupando a mesma cadeira de Mello Leitão, professor do Museu Nacional, taxonomista respeitado no Brasil e no exterior, pelos seus estudos e descobertas.

O Fundador Lauro Xavier

Professor e ecologista “avant la lettre”, Lauro Xavier ocupou a Cadeira de número 40, de 1972 a 1991. Agrônomo, em 1933, pela Escola Superior de Agronomia e Medicina Veterinária do Ministério da Agricultura, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, ele foi um dos fundadores da APAN – Associação Paraibana dos Amigos da Natureza –, e um dos pioneiros na luta pela preservação da Mata do Buraquinho e das palmeiras imperiais da Lagoa.

Lauro Xavier não era só botânico, era sobretudo ambientalista, com vários títulos e artigos publicados. Desta Academia, pelo seu trabalho, ele recebeu a comenda “Ad Immortalitem”, em 1991.
Em seu discurso de posse nesta Casa, onde chega no ano de 1972, Lauro Xavier, a associa, de modo definitivo e inquestionável a si mesmo e Cândido Firmino de Mello Leitão, o patrono da cadeira que ora passava a ocupar, e seu professor na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária do Rio de Janeiro:

“Quero dizer que tudo nesta casa, desde o nome Academia, significa ou simboliza a vida vegetal, pois sua origem vem do Jardim de Akademus” (p. 47).

No discurso de saudação, Osias Nacre Gomes afirma ser Lauro Xavier “feroz amante das árvores, das quais, com aplauso geral, se improvisou em Perpétuo Defensor” (p. 58). Trata-se de uma afirmação que transcende a mera retórica habitual nesses momentos; trata-se de fato inquestionável, devidamente documentado pelo nosso querido Gonzaga Rodrigues, numa crônica intitulada “A Falta que Lauro Faz”. Ali, Gonzaga lembra que Lauro Pires Xavier era professor que “não se limitava à sala de aula, ou melhor, não limitava a sala de aula às paredes de Areia ou do campus central. Exercia o ofício através das colunas que o jornal lhe franqueava. Estava sempre atento.”

Foi assim que a CHESF, diante do combate sem trégua de Lauro Pires Xavier, teve que contornar a Mata do Buraquinho, no momento da ampliação de sua rede de energia, quando o intuito era cortar a mata, “devastá-la pelo meio”, como diz Gonzaga, “para não gastar muito”. Arremata Gonzaga:

“Só a autoridade de Lauro, respaldada de todos os respeitos, demoveria a Saelpa de um general a mudar seus planos. Ele transferiu sua cátedra, sua pregação missionária para os jornais e rádios de então, e quem subir o Rangel, roçando a mata a sua esquerda, ainda pode ver a curva que a rede da Chesf descreveu para não tocar nesse marco que ainda distingue a cidade no cenário urbano mundial”.

Antônio de Souza Sobrinho, o mais recente ocupante

Antônio de Souza Sobrinho, professor, sociólogo, reitor da UFPB, realizou um a um os sonhos de seu tio Antônio de Souza, o “Titonho”, de quem carrega o nome, acrescido do epíteto “Sobrinho”: foi padre, estudou em Roma – Colégio Pio Brasileiro e Universidade Gregoriana –, foi professor e reitor, escreveu livros e entrou para a Academia Paraibana de Letras, ocupando esta Cadeira de número 40, sendo empossado em 1992, onde permaneceu até o ano passado, quando de sua partida para as esferas espirituais.

Professor de casa cheia, Antônio de Souza Sobrinho encantava o seu alunado com os seus conhecimentos de Sociologia e das experiências vividas ao longo do tempo. Perspicaz, via sempre na frente. Para dar exemplo de sua acuidade crítica, citarei uma passagem retirada de seu discurso de posse. Antônio de Souza Sobrinho, de modo sutil, ironiza o ativismo da Igreja Católica, proveniente do próprio Brasil e ganhando eco no exterior, com relação às queimadas da Amazônia. Tendo morado na Itália, ele acompanhou de perto, pelos jornais locais, as queimadas que se faziam na península, chegando à conclusão de que, com relação a seu tamanho, a Itália queimava mais matas do que o Brasil:

“Se você fizer os cálculos, medir o tamanho da Itália e a imensidão da Amazônia, o que eles ainda têm (pouquíssimo) e o que a Amazônia tem de sobra, verá que a Itália acaba queimando mais do que nós. Espero que o Papa leia também o jornal deles; porque os nossos – com nossas dores, erros, desastres, pecados e lágrima – a CNBB sempre se encarregou de traduzir e mandar no primeiro telex (hoje, “fax, diz Sobrinho) matinal” (Revista da Academia Paraibana de Letras, ano XLVI, nº 11, 09/1994, p. 188).

Eu diria que hoje, as notícias são enviadas pelo primeiro twiter matinal...

Em outro momento, Sobrinho critica “a apropriação e manipulação” de nossos recursos naturais, por parte dos estrangeiros, “a título de ‘AJUDA DESINTERESSADA’ (em caixa alta e entre aspas), por países detentores de tecnologia moderna, que vêm ameaçando patentear e lucrar com o monopólio de tal conhecimento” (id., ib., p. 190).

É isto que faz o professor. É esta visão que complementa o homem no professor, não se deixando levar pela razão de uma suposta autoridade.

É óbvio que aqui estou chamando a atenção para a acuidade crítica do professor Antônio de Souza Sobrinho, cujo discurso está longe de autorizar o menoscabo, o desprezo ou a destruição de nosso patrimônio ambiental. Como bom sacerdote que foi e como administrador de uma instituição importante, como a UFPB, ele constatou que é mais fácil observar o argueiro no olho do outro do que a trava no seu próprio olho. Acuidade crítica, repito, que o faz atual, mesmo passados 28 anos. Que o diga, como bem lembrou nosso confrade José Octávio de Arruda Mello, no discurso póstumo ao meu antecessor, a criação do Forum Universitário, no reitorado de Sobrinho, permitindo a discussão de importantes temas brasileiros e mundiais, trazendo à UFPB expressões ilustres da política e da sociedade brasileira, oriundas de vários cantos do país. Um professor, ainda citando José Octávio, a quem ser professor era o único título que lhe bastava.

Ser Professor e a Semeadura do Conhecimento e da Criação

Caríssimas Confreiras, Caríssimos Confrades, Minha Senhoras, Meus Senhores,
Quem são, pois, aqueles com quem tenho a honra de partilhar esta Cadeira de número 40? Dois biólogos, ambientalistas e ecologistas, e um sociólogo, cuja preocupação com o meio-ambiente também era uma de suas missões. Cada um dos meus antecessores nesta Casa, pertenceram antes a uma academia. Academias de ensino regular, como o são as universidades. Todos eram professores e a eles me junto, orgulhoso de minha profissão. Profissão que me moldou para chegar até aqui.

O convite para a minha posse nesta Casa acentua a minha condição de escritor. Sinto-me lisonjeado com esta deferência. No entanto, e meu caríssimo Damião Ramos Cavalcanti, presidente desta entidade não tome como crítica, sinto-me mais à vontade com ser reconhecido como professor. É nesta condição que entro neste sagrado recinto, como professor que sou e que serei, ainda que me aposente. É esta a condição essencial da minha vida, tudo o mais é transitório. Ter escrito alguns livros faz parte dessa condição essencial.

Digamos que o escritor seja uma consequência do trabalho que desenvolvi nos últimos 43 anos e que me concedeu o lastro para ser aceito por aqueles que sufragaram o meu nome, quando da ocasião da eleição para a Cadeira de número 40. Cadeira que passarei a ocupar como muito orgulho e com muita responsabilidade, por vir de um professor que conheci pessoalmente, e de mais outros dois de cuja existência tomei conhecimento.

Entro nesta Casa, sob os auspícios também de dois outros grandes professores, Coriolano de Medeiros, e o seu maior integrante, sem demérito para ninguém, o poeta Augusto dos Anjos.

Foi criança, com 11 anos, em 1968, que, pela primeira vez, entrei em uma Casa fundada por Coriolano de Medeiros, a Escola Industrial Federal da Paraíba, antes Escola industrial Coriolano de Medeiros. Escola que foi uma segunda casa para mim. Hoje, aos 63 anos adentro em outra casa fundada por Coriolano de Medeiros, em 1941; esta veneranda Academia Paraibana de Letras, que, como lembrou a professora Ângela Bezerra de Castro, que há de fazer a minha saudação, abriga 4 egressos da antiga Escola Industrial: o seu fundador, o já citado Coriolano de Medeiros; o seu diretor, Itapuan Botto Targino; uma de suas mais dedicadas professoras, a própria Ângela Bezerra de Castro, e um de seus alunos, no caso eu. Como não me orgulhar de ser professor e de pertencer a esta Academia se, quando olho para trás, vejo o perfil altaneiro dos que aqui chegaram antes de mim? Não é à toa que o verbo respicio, em latim, significa olhar para trás ou olhar de novo. A palavra respeito, respectum, supino desse verbo, significa exatamente isto: olhar para trás e considerar o que lá existe e que há de nos servir de lição.

Quando, há dois meses, fui entrevistado pelo meu querido confrade Abelardo Jurema Filho, levei alguns livros de minha autoria para mostrar-lhe. Um deles era um livro de epigramas, poemas irônicos e satíricos, curtos e incisivos. Na ocasião, Abelardo me perguntou se eu também me considerava um poeta. Respondi-lhe que não. No máximo, era um versejador irônico. Poderia ter dito, se não estivesse premido pelo tempo: a única coisa que me define é ser professor e foi na Escola Industrial que tive a consciência de que não queria ser mais nada a não ser professor.

O segundo professor, sob cuja inspiração ligo-me definitivamente a esta Casa é, como já falei, o poeta Augusto dos Anjos. Augusto é, sem nenhum favor, o maior poeta brasileiro e um dos maiores do mundo, sem desdouro para os demais. Apenas precisa ser mais lido e menos maltratado. Esta casa, que se situa no entorno de onde o poeta morou – “Número centro e três. Rua Direita”, como diz o verso inicial de “Noite de um Visionário” –, deveria ser, por excelência, o lugar de sua veneração. Assim como na pequena cidade de Aix-en-Provence, no sul da França, os passos de Paul Cézanne estão eternizados no bronze fixado nas ruas e calçadas por onde passou, assim deveríamos fazer com o nosso poeta; assim como Cézanne pintou exaustivamente a montanha de Santa Vitória e a eternizou em quadros disputados a peso de ouro pelos marchands e museus, assim a obra do poeta deveria ser avidamente procurada e estudada. Infelizmente, para muitos seus passos estão apagados, ainda que ele tenha morado no entorno desta Academia; sua obra, por outro lado, não se encontra com facilidade nas livrarias. Que livraria francesa não disporá dos livros de Victor Hugo? De que livraria portuguesa Camões estará banido? Como não encontrar Cervantes, na Espanha ou Dante, na Itália?

Tenho, no entanto, a convicção de que poderei, juntamente com os minhas futuras confreiras e futuros confrades, trabalhar para a imortalidade do poeta, não a imortalidade fátua, mas a da sua lembrança perene e sempre renovada, através da leitura e do estudo de seus poemas. É este o sentido maior da Academia, de cuja cadeira número 1 o poeta Augusto dos Anjos é o patrono: lutar para que a Morte exerça um ódio vão contra a Arte, para que os sáxeos prédios não sejam tortos, para que não mais tenham o aspecto de edifícios mortos, para que, enfim, não se decomponham desde os seus alicerces, conforme antevê o poeta em “Os Doentes” (versos 415-418).

A Semente do Tamarindo de Augusto

Todos vós haveis de estar vos perguntando o que faz este vaso com uma singela planta na mesa de cerimônia desta posse. É um tamarindo. Ainda frágil, mas não é um tamarindo qualquer. É um tamarindo que brotou de uma semente de uma vagem colhida embaixo do tamarindo de Augusto dos Anjos, na casa em que o poeta nasceu e morou, e debaixo de cujos galhos, “como uma vela fúnebre de cera”, compôs a beleza jamais inigualada do Eu e os demais poemas. Que a “paleontologia dos carvalhos” aqui remoçada em novo broto cumpra a profecia do poeta. Quando o poeta junta o carvalho de seu sobrenome com o da planta de que o tamarindo é irmã, numa taxonomia cara a Cândido Firmino de Mello Leitão, não se trata de puro jogo de palavras como alguém poderia supor, mas de uma consciência ecológica, que certamente agradaria a Lauro Xavier, e, mais do que isso, a consciência da evolução das espécies. Somos todos – animais, vegetais, seres humanos, a química das rochas – parte de um uno, saídos da “evolução orgânica da argila” (“As Cismas do Destino”, verso 380), que só se divide para compor o mundo, mas que não pode ser ignorada em suas partes. Como pensava Lauro Xavier, agredir o meio ambiente é agredir a nós mesmos. O poeta pensava igual, no respeito que nutria pela natureza e pelos homens.

Trazer uma muda de tamarindo para ser plantada nesta Academia Paraibana de Letras é, para mim, de uma simbologia inefável. Não é só uma árvore a mais que se planta. É a reencarnação do poeta na sua germinação e floração, nos dizendo para como homens não sermos aquela “árvore sem fruto”, de que ele nos fala em “As Cismas do Destino”. Esta Casa tem a missão de plantar e disseminar a cultura, lembrando que o verbo colĕre, de que provém a palavra cultura é, no latim, de origem agrícola, passando logo a seguir a significar todo o tipo de cultivo: do campo, dos deuses, da amizade, do espírito, da intelectualidade. Assim, com este tamarindo, estamos plantando, simbolicamente, a cultura e a humanização, de cujas sementes sairão o nutriente das futuras gerações, que não deixarão morrer o poeta e o que ele representa para nós. A paleontologia dos carvalhos une, portanto, Augusto e o tamarindo, e nós a eles. Com a floração desse novo tamarindo, que deverá crescer nesta Casa, e as ações que deveremos fazer para a sua perpetuidade, cumprir-se-á a profecia do poeta: “Não morrerão, porém, tuas sementes, por que depois da morte ainda teremos filhos”.

Conclusão

Assim, Caríssimas Confreiras, Caríssimos Confrades, Minhas Senhoras, Meus Senhores, não foi a transitoriedade que me pôs aqui – sic tansit gloria mundi, dizia o poeta mantuano, autor da Eneida –, mas a minha condição definitiva, escolha ainda criança, dessa que considero a profissão mais importante de nossas vidas – ser professor. Vivo, sou chamado de professor; tendo partido para as esferas espirituais, tenho certeza de que aqueles que se lembrarem de mim, o farão me chamando de professor, não de escritor, fazendo-me permanente pela memória. Não como “o eco particular do meu Destino” (“As Cismas do Destino”, verso 248), mas com as obras plantadas pelos exemplos colhidos no curso vida e da profissão, “A minha sombra há de ficar aqui!” (“Debaixo do Tamarindo”).

Muito obrigado.


Cristo era socialista. Cristo era comunista. Cristo andava com os pobres. Daqui a pouco vão dizer que Cristo era cristão. Se alguém quer f...



Cristo era socialista. Cristo era comunista. Cristo andava com os pobres. Daqui a pouco vão dizer que Cristo era cristão. Se alguém quer falar do Cristo que fale como deve ser. Cristo foi enviado pelo seu pai, Deus, para a remissão dos pecados daqueles que cressem em Suas palavras, que eram as palavras de Deus. Cristo não pertencia a qualquer seita, partido ou seja lá o que houvesse naquela época. Ele veio em nome de um reino espiritual e não de um reino material. Para quem não entendeu o “meu reino não é deste mundo”, está na hora de entender.

Cristo andava com os pobres? Cristo andava com quem queria andar com ele e seguir os Seus ensinamentos. Entre os que o acompanhavam havia prostituta, adúltera, doente, deficiente, pescador, coletor de impostos, médico e, depois, um doutor das leis, fariseu respeitado no poderoso sinédrio, que se não O acompanhou fisicamente, devido à diferença cronológica, acompanhou-O espiritualmente, trazendo-O consigo no coração, na palavra e ajudando, como nenhum outro, a edificar a Sua Igreja. Igreja imaterial que se erige onde houver duas ou mais pessoas falando em Seu nome.

Cristo não impunha condições de classes para acompanhá-lO, apenas pedia que aquele que quisesse ganhar a vida eterna deveria largar tudo e segui-lO. Muitos não quiseram, pois estavam mais preocupados em seguir o poder dos bens materiais, não dos bens espirituais. Estavam preocupados em construir casas na areia, não nas rochas.

Não havia restrições de classe, na Boa Nova que Ele trouxe ao mundo. Ele veio como o Belo Pastor, belo nas palavras e belo nas ações, que O fizeram ser reconhecido Bom. Veio como o Pastor que se compromete com as Suas ovelhas, que está disposto a dar a vida por elas. Veio para que TODOS, não importa a classe social e a etnia, tenham vida e a tenham mais abundantemente. A única restrição só dependia das ovelhas: de saber reconhecer a voz do Seu Pastor, de não se deixar enganar pelos que tentam invadir o redil, pulando por sobre a proteção. Cristo é o Pastor que entra pela porta da frente, cujo rebanho conhece e é por ele reconhecido.

Se muitos pobres reconheceram de imediato a beleza do Seu Pastor, não esqueçamos que outros tantos foram favoráveis à Sua condenação, sem a qual, diga-se de passagem, a Sua missão não se completaria.

A tentativa que se vê, portanto, de alguém querer enquadrar o Cristo em uma medida que corresponda aos seus anseios políticos materiais não condiz com a Verdade que ele veio semear na Terra. A Verdade do Amor incondicional, mesmo àqueles que O condenaram e O mataram, não apenas aos que O seguiram.



No Espiritismo não existe hierarquia, não há sacerdotes, nem apostolado, nem proselitismo. A religião, filosofia e ciência espíritas parte...



No Espiritismo não existe hierarquia, não há sacerdotes, nem apostolado, nem proselitismo. A religião, filosofia e ciência espíritas partem do princípio de que todos somos iguais, somos imperfeitos e estamos aqui para aprender, na nossa caminhada para a luz. Assim, o Espiritismo é acolhedor, sem perguntar quem é quem, de onde vem ou o que tem. Acolhe, indiscriminadamente todos os que o procuram, não estabelecendo tampouco regras de conduta, tendo em vista que cada é responsável pelo que faz, de bom ou de ruim. A única regra que alguém poderia tomar como exemplo é aquela universal, adotada por várias religiões: Não faça ao outro o que você não quer lhe façam. Além disso, o Espiritismo prega a caridade desinteressada, buscando aliviar a dor dos que sofrem.

Quando digo que há pregação, não estou me referindo a pregadores especiais que precisam da chancela de algum superior. Não há superiores, como já disse, somos todos iguais na nossas imperfeições e qualquer um que estude a doutrina estará habilitada a dar palestras, não a fazer pregações, cujo intuito não é acusar ou proibir a ação do outro, mas despertar o seu semelhante para o respeito e acolhimento fraterno do seu irmão.

Há quem, dentro do Espiritismo, se ache melhor do que outros. Isto é comum em qualquer religião, em qualquer agregado humano. No entanto, quem se acha assim é porque desconhece a doutrina que prega a humildade e autoconsciência, caminhos para a reforma íntima, caminho para a nossa mudança, pois não existem transformações se ela não começa em nós mesmos.

Digo isto, porque tenho visto muita gente cobrar militância política do espírita. A militância política fica para quem tem partido político. Não há partidos políticos no Espiritismo ou pelo menos não deveria haver. Tampouco ninguém que seja espírita deve ser impedido de fazer militância, se achar que deve. Suas ações são sempre responsabilidades suas e de mais ninguém. Apenas digo que um dia de ação real, junto aos que sofrem, que se realiza, por exemplo na Mansão do Caminho, vale mais do que anos de militância e de palavreado estéril.

Não importa quem esteja no poder, ele passará. Já a doutrina espírita continuará imorredoura, como sempre foi.

Já conhecemos um pouco o perfil do monsenhor Myriel Bienvenu, bispo de Digne. Na criação de Victor Hugo, para Os Miseráveis, mais do que u...



Já conhecemos um pouco o perfil do monsenhor Myriel Bienvenu, bispo de Digne. Na criação de Victor Hugo, para Os Miseráveis, mais do que um justo, o monsenhor era um santo, ainda que assim não se considerasse, claro.

Criando duas vacas, na nova morada – o antigo hospital, que já não comportava os doentes da cidade, os quais ele alojou no palácio do bispo, por ter mais espaço do que ele precisava –, monsenhor Myriel destinava metade do leite diário ordenhado para os doentes, com a consciência de que pagava, assim, o seu dízimo – “Je paye mon dîme” (Parte I, Livro I, Capítulo VI).

As atitudes do monsenhor Myriel demonstram claramente como as instituições sociais, religiosas ou leigas, cometem habitualmente erros gritantes, verdadeiros disparates, para atender luxos e comodidades não condizentes com as urgentes questões sociais. O palácio destinado ao bispo é um imenso espaço sem utilidade prática, que não seja o triunfalismo ostentatório da Igreja, enquanto o hospital municipal dispõe de pouco espaço e de parcos recursos. Por outro lado, o dízimo pago pelos fiéis, só revertendo para o lado da magnificência material da Igreja, tem destino semelhante aos impostos pagos pelos cidadãos, mal empregados, de modo contumaz, pelos poderes públicos.

Monsenhor Myriel é um revolucionário não das palavras ocas e fáceis, mas da ação transformadora, pacífica, silenciosa, sem alarde, sem gritos e sem holofotes, invertendo uma lógica cuja irracionalidade não é fácil de perceber, porque óbvia: renuncia ao palácio do bispo e ainda paga o dízimo aos pobres, recebendo a todos, sem distinção, sem discriminação, sem querer saber o nome ou a origem. Ele parte do princípio de que se alguém o procura é porque necessita de auxílio. A vida do monsenhor Myriel é um retrato fictício, é bem verdade, mas não deixa de ser plausível, pois é a vida de quem vive o Evangelho e não apenas o prega, tomando como base dois lemas (Parte I, Livro I, Capítulo VI):

“La porte du médecin ne doit jamais être fermée; la porte du prêtre doit être toujours ouverte.”
(A porta do médico não deve nunca estar fechada; a porta do padre deve sempre estar aberta.)

Ne demandez pas son nom à qui vous demande un gîte. C’est surtout celui-là que son nom embarrasse qui a besoin d’asile.”
(Não perguntem o nome a quem lhes pede um abrigo. É sobretudo aquele, cujo nome é motivo de embaraço, que tem necessidade de asilo.)

O monsenhor Myriel Bienvenu, bem-vindo como o seu sobrenome insinua, sendo um digno bispo de Digne, numa onomástica perfeita usada por Victor Hugo, dá lições práticas aos poderes públicos e à Igreja de como se deve tratar com dignidade os necessitados, tornando-os bem-vindos ao seio de Deus e da sociedade, sem distinções e, sobretudo, sem propaganda.

Pela voz do Monsenhor Myriel Bienvenu, Bispo de Digne e personagem de Os Miseráveis, o escritor Victor Hugo mostra um pouco da sua faceta ...


Pela voz do Monsenhor Myriel Bienvenu, Bispo de Digne e personagem de Os Miseráveis, o escritor Victor Hugo mostra um pouco da sua faceta espiritualista e, diria eu, espírita, pois muitas são as passagens dentro desse monumental romance que apontam para esta convicção. Eis um dos exemplos do pensamento inquestionável desse caráter do romancista e poeta, em tradução nossa:

Revi, esta semana, o musical baseado em Os Miseráveis. Dessa segunda vez me pareceu melhor. Não estou dizendo que é um filme ruim, muito p...



Revi, esta semana, o musical baseado em Os Miseráveis. Dessa segunda vez me pareceu melhor. Não estou dizendo que é um filme ruim, muito pelo contrário, trata-se de uma produção excelente, do ponto de vista do visual, do elenco e, sobretudo, do tratamento dado àquilo que é o cerne do romance de Victor Hugo: a injustiça, que se divide em cega observância e cumprimento da lei, cuja encarnação é o inspetor Javert, e em acumulação de riquezas, que fecha os olhos aos desvalidos e necessitados, ajudando a criar uma sociedade de submundo. O filme dirigido por Tom Hooper (UK/USA, 2012) é, portanto, uma obra a não ser esquecida.

O problema, me parece, está no gênero escolhido – musical – e no elenco, apesar de contar com estrelas bem conhecidas. Senti como muito artificial (artificial já é, per se) as falas transformadas em músicas, muitas delas difíceis de se identificar como uma melodia palatável. Ao lado disso, vemos que em determinados momentos soa, mais do que artificial, ridículo, ver Hugh Jakman e Russel Crowe tentando cantar. Por mais que eu tivesse boa vontade, não me furto de dizer que, em alguns momentos, fiquei com vergonha das interpretações. Assim como não consigo descolar Jean Valjean da figura de Gérard Depardieu, na excelente série da televisão francesa, de 2000, que depois virou filme, com seis horas de duração – para mim, a melhor versão do romance no cinema –, também não consigo apartar as figuras de Hackman e Crowell de Wolverine e do gladiador Maximus. O pecado na série da televisão francesa é John Malkovich interpretando Javert. Malkovich sempre interpreta a si mesmo. O melhor Javert, para mim, é Geoffrey Rush (EUA, 1998). Javert é duro, inflexível, só enxerga a lei. Não há nada para além na face da terra, além da lei. Victor Hugo deixa isto bem claro, no romance. Mas Javert não é sem emoções ou expressividade. Embora seja contido. No caso, de Crowell, como intérprete de Javert, temos um inspetor agressivo, em lugar de um homem de cálculo, um Javert que parte para uma disputa corporal com Jean Valjean, em lugar de deixar o trabalho sujo para seus subordinados, impondo-se pela sua estatura moral, embora equivocada e doentia.

No tocante ao personagem Thénardier, o problema é mais grave. Quem interpreta um dos maiores vilões e um dos seres mais vis e abjetos da literatura é Sacha Baron Cohen. Não preciso dizer mais nada... O diretor apostou na faceta menos importante de Thénardier, que é o histrionismo, interpretação muito fácil para Sacha Baron Cohen. A natureza de Thénardier é a de um homem sem humanidade, sem piedade, um monstro que explora as crianças dos outros, como fez com Cosette, e explora e abandona os seus filhos à própria sorte, cujo resultado é a morte dos ainda jovem Gavroche e Éponine, e o desaparecimento dos dois menores de 5 anos... O histrionismo do ator, que eu diria canastrice, esconde quem é, na realidade, Thénardier, cujo caráter se complementa, quando migra para a América e se tornar traficante de escravos.

Outra coisa que achei grave no musical é o fato de que, muito dificilmente, as pessoas que não conhecem o romance, entenderão o que realmente ali se passa. Há muitas lacunas, uma das principais causas é a transformação do diálogo em cenas cantadas. O cantar toma muito tempo; os diálogos são muito mais ágeis, além de soltar mais a intepretação dos atores. Apesar das 2 horas e 38 minutos do filme, as lacunas são enormes, que poderiam ser minimizadas se não fosse um musical. Só para dar um exemplo, de modo a não me alongar, um dos episódios mais tensos do romance, a fuga de Jean Valjean pelos esgotos, levando consigo Marius gravemente ferido, é transformado em uma cena rápida e pífia.

Plasticamente, no entanto, vejo como um dos melhores cenários, este do musical. E já que estamos falando de beleza, fico inconformado com as belas Cosettes – Virginie Ledoyen, na série francesa, e Amanda Seyfried, no musical – contracenando com o narigudo Enrico Lo Verso e o bocudo Eddie Redmayne, respectivamente. Cosette tendo sofrido muito nas mãos dos Thérnadier, mereceria um par mais bonito.


No período que antecede a alvorada do dia 06 de junho de 1832, Enjolras, um dos estudantes que integra a Sociedade Amigos do ABC, faz um d...



No período que antecede a alvorada do dia 06 de junho de 1832, Enjolras, um dos estudantes que integra a Sociedade Amigos do ABC, faz um discurso emocionado e vigoroso, para os revoltosos que decidiram enfrentar as forças monárquicas, tendo como bastião a barricada da rua de Chanvrerie (extinta em 1838, com a abertura da rua Rambuteau), que começava na rua Saint-Denis e terminava na rua Mondétour, no quarteirão dos Halles.

Enjolras, para Hugo, representava, com relação aos demais amigos, “a lógica da revolução”, “Antínoos furioso”, por sua beleza, juventude e virilidade (Os Miseráveis, Parte III, Livro IV, Capítulo I). O seu discurso, antes da carga das forças constitucionais, é uma despedida exaltando as virtudes da república e encarnando os seus princípios fundamentais: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Nada menos republicano do que a luta mesquinha pelo poder para eternização no poder; nada mais digno do ideal da RES PUBLICA do que a consciência do que se pode e deve fazer para se conseguir a síntese das soberanias representadas pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade, numa Sociedade (Le point de d’intersection de toutes ces souverainetés qui s’agrègent s’appelle Société. – O ponto de interseção de todas estas soberanias que se agregam se chama Sociedade).

E como se constrói essa Sociedade? Vejamos os pressupostos de Enjolras. Sendo a Liberdade a soberania do homem sobre si mesmo; a Igualdade, a identidade de concessão para formar o direito comum, que cada um faz a todos; a Fraternidade, a proteção de todos a cada um, assim se faz a Sociedade. O básico, porém, é a Igualdade, que tem um órgão: a instrução gratuita e obrigatória. Óbvio, não? Mas os que se engalfinham pelo poder, para se manterem no poder, detestam essa obviedade, pois ela os retira do poder para concedê-lo a quem é seu verdadeiro dono – a população.
Diz Hugo:

“O direito ao alfabeto. É por aí que é preciso começar. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos (hoje, se fosse vivo, ele manteria o “imposta”...), é aí que reside a lei. Da escola idêntica sai a sociedade igual. Sim, ensino! Luz! Luz! Tudo vem da luz e para ela retorna” (Parte V, Livro I, Capítulo V).

Hugo via o século XIX como grande, mas acredita a felicidade estar no século XX, com a educação universal, quando não teríamos mais a temer a fome, a exploração, a prostituição, a miséria, o cadafalso, a espada e as batalhas... Para que isto possa acontecer, as revoluções são necessárias, mas a revolução que traga como resultado a civilização (“Révolution, mais civilisation”, Parte III, Livro IV, capítulo I), como pensava Combeferre, o filósofo da Sociedade dos Amigos do ABC.

Visionário, Hugo legou a receita de uma sociedade humana. Não contava ele que a mesquinhez política não pensa na humanidade, mas na individualidade e no egoísmo. Não teve o desprazer de ver as gerações futuras apoiando ditaduras e corrupções de um lado e de outro, se xingando mutuamente e defendendo, de maneira incondicional, os que manipulam o povo, para a sua satisfação pessoal e para seus projetos espúrios de política abjeta.Tolos, que se assemelham às zebras, antílopes, símios e gnus comemorando o nascimento do pequeno leão Simba, que um dia será seu predador.

Antes de comentar a segunda lição de compreensão do texto literário, via Os Miseráveis, gostaria de me dirigir aos meus alunos de clássica...



Antes de comentar a segunda lição de compreensão do texto literário, via Os Miseráveis, gostaria de me dirigir aos meus alunos de clássicas e a todos que estudam ou desejam estudar latim, para dizer que podemos aprender as nuances dessa língua com Victor Hugo. Senão, vejamos.

Na parte III de Os Miseráveis – Marius –, Victor Hugo começa a traçar o perfil da Sociedade dos Amigos do ABC, jovens estudantes universitários, inflamados com a ideia de revolução e de república, numa França que, em 1815, após o desastre de Waterloo, voltou a ser monarquia e se encontrava sob o poder de Charles X, penúltimo rei de França.

Façamos um parêntesis para explicar que a sigla ABC não representa aqui só as três primeiras letras do alfabeto, numa alusão ao fato de que nenhuma sociedade pode querer ser justa sem educação. Para Enjolras, o futuro está nas mãos do professor – “l’avenir est dans la main du maître d’école”. L’ABC, na sonoridade da língua francesa, é também “L’Abaissé”, o rebaixado, o povo, que deveria ser a primeira preocupação de um estado republicano. Nem sempre é...

O primeiro perfil é o de Enjolras, depois vem o de Combeferre, feito a partir do paralelo com o jovem anterior. Ambos revolucionários, mas com meios diferentes de entender como atingir os ideais libertários e republicanos (vale a pena conferir o perfil completo, para nos darmos conta do tamanho desse escritor). Em um dado momento, Hugo sai-se com esta verdadeira pérola de sutileza, dando uma aula de latim, de modo a mostrar que a oposição entre eles é questão de nuance:

“S’il eût été donné à ces deux jeunes hommes d’arriver jusqu’à l’histoire, l’un eût été le juste, l’autre le sage. Enjolras était plus viril, Combeferre était plus humain. Homo et Vir, c’était bien là en effet leur nuance” (Parte III, Marius; Livre IV, Les Amis de L’ABC; Capítulo I, Un Groupe que a Failli Devenir Historique).

“Se tivesse sido dado a estes dois jovens chegar à história, um teria sido o justo; o outro, o sábio. Enjolras era mais viril, Combeferre era mais humano. Homo et Vir, aí estava, com efeito, sua nuance”.

Uma das dificuldades no ensino de qualquer língua é estabelecer diferenças sutis entre termos que parecem ter sentidos iguais. No caso do latim, a diferença entre HOMO e VIR consiste em que o primeiro é genérico, designando o SER HUMANO, por mais que de HOMO, HOMĬNIS tenha vindo via acusativo (hominem), a palavra HOMEM, que designa, em português, tanto o genérico, quanto o específico. Já o segundo termo VIR, no latim só expressa o homem do sexo masculino, cuja tradução pode ser homem viril, macho, amante, herói, não podendo ser empregado no sentido de ser humano. Em suma, todo VIR é HOMO, mas nem todo HOMO é VIR.

De modo hábil, Victor Hugo nos ministra uma lição para não mais esquecer, não importa se o leitor é ou não latinista.