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Eugène Rougon é um advogado de província, nascido em Plassans, sul da França, que busca Paris como uma maneira de melhorar a vida. Advogad...


Eugène Rougon é um advogado de província, nascido em Plassans, sul da França, que busca Paris como uma maneira de melhorar a vida. Advogado medíocre, mas com um pendor todo especial para a política, logo ele percebe as reais intenções de Charles-Louis Bonaparte, eleito democraticamente presidente, na instauração da Segunda República Francesa, em 1848. Tornando-se seu acólito, Eugène apoia e ajuda a urdir o golpe de Estado de 1851, que tornaria o presidente Louis Bonaparte, no ano seguinte, o imperador Napoleão III. Feito ministro, ele se torna sua Excelência Eugène Rougon, presidente do Conselho de Estado, segunda pessoa do imperador.

Gavroche é o espírito parisiense em forma de criança. Mas não uma criança qualquer. Gavroche é o que o francês chama de gamin , no seu prim...

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Gavroche é o espírito parisiense em forma de criança. Mas não uma criança qualquer. Gavroche é o que o francês chama de gamin, no seu primeiro sentido, de viver a brincadeira e as licenciosidades das ruas, com espírito crítico, gozador e libertino. Para a época de Hugo, introdutor da palavra na língua francesa literária, com Notre-Dame de Paris (1831) e Claude_Gueux (1834), gamin era termo da língua popular não digno de frequentar o vocabulário dos grandes escritores. Hugo associa definitivamente o vocábulo a Gavroche, personagem memorável de Les Misérables (1862). Tão memorável que repercutiu em nosso Cruz e Souza, no célebre soneto “Acrobata da dor” – “Salta, Gavroche, salta, clown, varado/Pelo estertor dessa agonia lenta...”

No Evangelho de Mateus (6, 34), Jesus, em continuidade ao “Sermão da Montanha”, diz em alto e bom som: “Não vos preocupeis com o dia de a...

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No Evangelho de Mateus (6, 34), Jesus, em continuidade ao “Sermão da Montanha”, diz em alto e bom som: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã preocupar-se-á consigo mesmo. Basta ao dia o mal que lhe pertence”.

O mês de setembro nem sempre se chamou setembro, mas o equinócio nunca deixou de acontecer nesse mês, fosse ele, de origem, no calendário ro...

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O mês de setembro nem sempre se chamou setembro, mas o equinócio nunca deixou de acontecer nesse mês, fosse ele, de origem, no calendário romulano, o sétimo mês, quando o ano começava em março, ou tivesse sido transformado no nono mês, com o deslocamento dos meses de janeiro e fevereiro para o início do ano.

Fugindo de Javert, Jean Valjean invade o terreno do convento do Petit-Picpus-Saint-Antoine , na pequena rua Picpus, onde viviam enclausura...

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Fugindo de Javert, Jean Valjean invade o terreno do convento do Petit-Picpus-Saint-Antoine, na pequena rua Picpus, onde viviam enclausuradas as bernardinas da adoração perpétua. Lá, ele encontra Fauchelevant, por ele ajudado em uma ocasião anterior (Parte I, Livro V), trabalhando como jardineiro (Parte II, Livros V-VI).

Salvo momentaneamente da perseguição, Jean Valjean precisa arranjar um jeito de sair do convento, para entrar novamente, passando-se por irmão de Fauchelavant, deixar Cosette como interna e ali trabalhar como ajudante de jardineiro. A única forma é sair dentro de um caixão de defunto, que deveria levar o corpo da madre Crucifixion, morta ao raiar do dia.
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A madre Innocente, superiora do convento, quer enterrá-la por baixo do altar, contrariando a lei. Para isso, ela pede a ajuda de Fauchelevant que, além de jardineiro, é também coveiro. Para que a morta pareça estar dentro do caixão, o plano é enchê-lo de terra. Assim, ficcionalmente, cria-se uma situação que permite Jean Valjean se evadir do convento. Se a madre Innocente decide burlar a lei, Fauchelevant decide burlar a madre, preenchendo o caixão, não com terra, mas com o nosso herói.

Há risco de Jean Valjean morrer sufocado, pois ele deve ser enterrado, com a ajuda do coveiro do cemitério Vaugirard, e depois desenterrado. Não há outra solução, no entanto. Fauchelevant, preocupado com a situação, pergunta a Jean Valjean o que aconteceria se ele tossisse ou espirrasse, quando estivesse dentro do caixão. Nosso herói, sempre determinado, responde-lhe com segurança e clareza: “Quem foge não tosse, nem espirra” (“Celui qui s’évade ne tousse pas et n’éternue pas.”, Parte II, Livro VIII, Capítulo IV).

Esta contextualização é necessária para que entendamos a nossa crítica à série, em 4 capítulos, Les Misérables (França, Itália, Estados Unidos, Alemanha e Espanha, 2000), adaptada do romance de Victor Hugo por Didier Decoin e dirigida por Josée Dayan, tendo no elenco Gérard Depardieu (Jean Valjean), John Malkovich (Javert) e Christian Clavier (Thénardier).

Consideramos essa série uma das melhores adaptações da obra, tendo em vista que o tempo de duração, 6 horas, dá uma boa margem para se contar a história de um romance copioso, como é o caso de Os Miseráveis. Reconhecemos a dificuldade das adaptações e, mais ainda, o fato de que as linguagens romanesca e cinematográfica são diferentes.


Por outro lado, seria purismo de nossa parte esperar uma fidelidade total na adaptação. No entanto, consideramos também que há adaptações de situações que só complicam a trama. A caracterização da personagem Toussaint como homem, na série, é um bom exemplo disso. No romance, Toussaint é uma moça velha, salva por Jean Valjean do hospital e da miséria. Na série, Toussaint é um homem mudo, que esteve na prisão com o nosso conhecido personagem.

Pode parecer implicância criticar essa transformação de uma personagem feminina em uma masculina. Não é. Isto fere a estrutura da narrativa de Hugo. Não esqueçamos nunca que todo texto é uma estrutura e se alguma peça da estrutura é trocada, acaba comprometendo a verossimilhança interna.

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O narrador deixa bem claro o porquê da escolha de Toussaint como doméstica: “une fille [...] qui était vieille, provinciale et bègue, trois qualités qui avaient déterminé Jean Valjen à la prendre avec lui” (“uma moça [...] que era idosa, provinciana e tinha dificuldades no falar, três qualidades que determinaram Jean Valjean a tomá-la consigo.”, Parte IV, Livro III, Capítulo I). Estas qualidades são fundamentais para quem está se escondendo e busca discrição.

No caso de Toussaint como homem, o comprometimento da condição de fugitivo de Jean Valjean é claro. Mesmo que o personagem seja mudo, a sua condição de ex-presidiário e ex-colega de Jean Valjean falam por ele. Além disso ele é forte e careca. O que chamaria mais atenção em Paris, ainda que no resguardo da casa da rue Plumet, uma moça bem madura, com deficiência na fala, e provinciana, ou um homem mudo, forte e careca?

Há, portanto, uma questão estrutural dentro do romance, que não deve ser esquecida: a necessidade de discrição e de anonimato. Jean Valjean se esfuma no ar, encurralado por Javert e seus esbirros, numa rua sem saída, em Paris, galgando um muro enorme, levando consigo Cosette, pulando para dentro do convento Picpus, onde permanece anos sem sair.

É essa fidelidade à estrutura que nos leva a outro episódio dentro da série. Durante uma festividade, uma alta autoridade da magistratura visita o convento e Jean Valjean tem uma altercação sobre justiça, com esse senhor. A cena não ocorre no romance, pois o nosso personagem, como ajudante do jardineiro Fauchelevant, de quem se faz um falso irmão, evita que as pessoas o vejam. Tudo o que Jean Valjean deseja é a obscuridade, o anonimato, nos anos em que Cosette está como interna do convento. Não ser visto ou notado é fundamental para ele, que tem em seu encalço o inspetor Javert, a persegui-lo obsessivamente.


O que nos parece é que o adaptador e o diretor da série projetam no personagem o seu próprio ativismo social. Hugo era um homem reconhecidamente engajado na luta pela justiça, ainda que não fosse necessariamente de esquerda, ele sabia que ter consciência da justiça social não é prioridade de partidos políticos.

Ao longo do romance, o escritor vai disseminando suas ideias contra as injustiças sociais, a ponto de Os Miseráveis ser um dos maiores romances de toda a literatura mundial sobre o assunto, mas não as coloca na boca de Jean Valjean. O personagem é de pouco falar e de muito agir; ele procura ser justo não por palavras, mas pela ação, como faz quando se entrega para salvar alguém de uma injustiça. É o caso do pobre miserável, conhecido como “le père Champmathieu”, confundido com Jean Valjean e que está prestes a ser condenado à prisão em Toulon, o lugar horrível onde nosso herói passara 19 anos, pela tentativa frustrada do roubo de um pedaço de pão.

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Valjean, nessa ocasião, encontrava-se na cômoda posição de prefeito de Montreuil-sur-Mer, atendendo pelo nome de Monsieur Madeleine. Ele se desloca até Arras, a tempo de revelar sua identidade perante o júri de Champmathieu, por não ter como ficar em paz consigo próprio, caso um inocente fosse condenado em seu lugar (Parte I, Livro VII). Se ele tivesse se omitido, estaria livre de Javert para sempre, mas não estaria livre de si mesmo, de sua consciência. Atento, talvez, às lições platônicas, Victor Hugo sabia que a Justiça começa quando a buscamos e a encontramos dentro de nós mesmos.

O pensamento em busca de justiça contido em Os Miseráveis tem três fontes: o amor ao próximo, de Jean Valjean; a obsessão doentia de Javert pelo cumprimento estrito da lei; a ação violenta dos revolucionários da Turma do ABC, simbolizada nas barricadas de 1832, contra o rei Louis-Philippe. Os revolucionários são mortos pelas forças da monarquia; Javert se suicida, diante do conflito de não poder mais perseguir quem lhe salvou a vida. A única busca que resulta em algo é a de Jean Valjean, que aprendeu, desde cedo, a partir da transformação operada em si pelo Monseigneur Myriel, o bispo de Digne, que palavras não tornam uma pessoa justa, mas as suas ações:

“Il sentait qu’il touchait à l’autre moment décisif de sa conscience et de sa destinée; que l’évêque avait marqué la première phase de sa vie nouvelle, et que ce Champmathieu en marquait la seconde. Après la grande crise, la grande épreuve.” (Parte I, Livro VII, Capítulo 3)

“Ele sentia que tocava o outro momento decisivo de sua consciência e de seu destino; que o bispo marcara a primeira fase de sua nova vida e que este Champmathieu marcava a segunda. Após a grande crise, a grande provação.”

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Victor Hugo
Ações coerentes com o que se pensa e se prega, ainda que em prejuízo de si mesmo. Discursos belos, eloquentes, inflamados e idealistas caem bem em estudantes revolucionários, como Enjolras. Jean Valjean fala pouco, como já dissemos, pouco discursa, mas age o suficiente para livrar uma cidade da miséria, um inocente da cadeia, uma órfã da exploração e um jovem da morte.

Nosso herói relutara em ser prefeito de Montreuil-sur-Mer, para não chamar a atenção sobre si. Por insistência da população, que o tinha como um bom administrador aceitou, com reservas, o cargo. De imediato, atraiu a atenção de Javert, prontamente desviada pelo caso do père Champmathieu. Jean Valjean deu a sua lição de coragem e justiça ao se revelar, mas também aprendeu que não deveria mais chamar a atenção sobre si, se quisesse ficar longe das garras inflexíveis de Javert. Jamais, portanto, ele iria altercar com um magistrado.

Quem se evade não tosse e nem espirra...


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL

Gonçalo Mendes Ramires é o fidalgo da Torre de Santa Ireneia , uma fidalguia que remonta a um período anterior ao reino e, portanto, anteri...

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Gonçalo Mendes Ramires é o fidalgo da Torre de Santa Ireneia, uma fidalguia que remonta a um período anterior ao reino e, portanto, anterior a Portugal. Falido no presente, Gonçalo vive do passado heroico dessa nobreza, que ele tenta reconstruir através de uma novela medieval, cujo único intento é, por intermédio da fama conseguida nas Letras, chegar à política, ser deputado. Eis aí, de modo muito sintético, o assunto desta obra-prima da língua portuguesa, A ilustre casa de Ramires (1900), de Eça de Queirós.

Em um dos últimos capítulos da série Os Bórgias, um dos personagens recita, com o acento italiano do latim, o célebre Carmen LXXXV "Od...

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Em um dos últimos capítulos da série Os Bórgias, um dos personagens recita, com o acento italiano do latim, o célebre Carmen LXXXV "Odi et amo", de Catulo. Na série italiana Baby, que mostra a vida de adolescentes romanos, com seus problemas intermináveis, uma professora do ensino médio está lendo, em sala de aula, um texto em latim e pede para uma das alunas, naquele momento desatenta, traduzir. Novamente, trata-se do dístico de Catulo, que vai aqui transcrito e de que apresento duas traduções nossas, uma operacional e outra em duplo heptassílabo:

O personagem François Mouret, de La conquête de Plassans (Émile Zola, A conquista de Plassans, 1874) diz: “moi, je m’en lave les mains mai...

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O personagem François Mouret, de La conquête de Plassans (Émile Zola, A conquista de Plassans, 1874) diz: “moi, je m’en lave les mains maintenant” (“eu, eu lavo minhas mãos a esse respeito, agora”, Capítulo III), fingindo um desinteresse sobre o que faz o abade Faujas, seu inquilino, embora esteja ardendo de vontade de espionar a sua vida. Desinteresse ou fingido desinteresse. Esse é um dos significados que a expressão “eu lavo minhas mãos” tomou, ao longo do tempo.

Corria o ano de 509 a. C., Roma tinha em seu comando o rei Tarquínio , o Soberbo, que se apoderou à força do poder e instaurou a primeira m...

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Corria o ano de 509 a. C., Roma tinha em seu comando o rei Tarquínio, o Soberbo, que se apoderou à força do poder e instaurou a primeira monarquia hereditária da cidade. Seu filho, Sexto Tarquínio, queimando de desejos, estupra Lucrécia, mulher de seu primo Lúcio Tarquínio Colatino, dentro do recinto sagrado do altar doméstico da jovem. Sentindo-se desonrada e maculada, Lucrécia confessa ao pai e ao marido o estupro e se suicida. Esse ato ignóbil perpetrado por Sexto leva à expulsão dos Tarquínio de Roma e, com eles, da monarquia.

“Ser pobre em Paris, é ser pobre duas vezes” (“Être pauvre à Paris, c’est être pauvre deux fois”, capítulo II, p. 336-7) Esta certeza viv...

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“Ser pobre em Paris, é ser pobre duas vezes” (“Être pauvre à Paris, c’est être pauvre deux fois”, capítulo II, p. 336-7)

Esta certeza vive na mente de Aristide Rougon, personagem de Émile Zola, do romance La Curée (1872), ao chegar em Paris e tentar a fortuna prometida pelo irmão Eugène, deputado e, depois, ministro e eminência parda de Napoleão III.

Haverá quem se lembre do personagem, já citado nessas plagas, na sua indecisão de apoiar ou não o golpe de Estado de Louis Napoléon, em dezembro de 1851. Hesitante, Aristide vive o momento do “alea iacta est”, proferido por César, no momento de atravessar o Rubicão e infringir, sem possibilidade de reparo, as leis romanas, conforme o documentado por Suetônio, na vida do Divo Júlio. No caso de Aristide Rougon, o fato de se dá no romance La fortune des Rougon (A fortuna dos Rougon), o primeiro da série https://en.wikipedia.org/wiki/Les_Rougon-Macquart, de Émile Zola.

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Agora, vemos o personagem em La Curée, em Paris, com a febre de riqueza na mente e na vontade. Riqueza fácil, sem trabalho produtivo, para viver à larga e poder descontar os anos de pobreza que viveu em Plassans, na Provença. A travessia do Rubicão de Aristide fora feita. Já não havia volta. Restava-lhe enfronhar-se nos meandros da cidade, para dela retirar o que ele desejava e o que ela oferecia:

Il aspirait ces souffles encore vagues qui montaient de la grande cité, ces souffles de l’Empire naissant, où traînaient déjà des odeurs d’alcôves et des tripots financiers, des chaleurs de jouissance.”

“Ele aspirava estes sopros ainda vagos que subiam da grande cidade, estes sopros do Império nascente, onde já se arrastavam os odores de alcovas e as negociatas financeiras, os calores do prazer” (Capítulo, II, p. 334).

Paris, teatro da pilhagem, era para ele, uma presa que corria diante de seus olhos. Aristide, como besta esfomeada, farejava o butim quente, que lhe devia ser servido como cão pertencente à matilha. É aí que se entende o sentido do título do romance – La Curée:

...“son instinct de bête affamée saisissait merveilleusement au passage, les moindres indices de la curée chaude, dont la ville allait être le théâtre” (id., ibid.)

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Com um emprego arranjado pelo irmão, no Hôtel de Ville, a prefeitura de Paris, Aristide tem acesso a informações privilegiadas sobre as reformas de Haussmann e se locupleta com elas, realizando todas as “magouilles” e “tripotages”, os famosos negócios ilícitos, que ele poderia e não poderia fazer. Para tanto, Aristide muda até o nome para Saccard, abandonando o Rougon. O nome escolhido aproxima-se foneticamente de saccage, pilhagem, mais do que adequado à ação predatória que ele vai encetar.

Saccard, melhor do que qualquer outro, materializa o uso do público para o seu benefício privado.
Rico, perdulário e desonesto, sem tempo para mulher, Renée, ou para o filho, Maxime, Saccard os deixa se afeiçoarem e tomarem conta um do outro, o que o desobrigava de sair de seus negócios – “Ele colocava, apenas uma vez por mês, os pés no quarto de Renée, e sempre para alguma delicada questão de dinheiro” (“Il mettait à peine une fois par mois les pieds dans la chambre de Renée, et toujours pour quelque délicate question d’argent”, capítulo IV, p. 423). Pouco a pouco, eles vão deslizando para uma relação incestuosa.

A Saccard, interessava viver no luxo, gastando loucamente, tirando da nova situação – a modernização radical de Paris –, a sua colossal fortuna de cada manhã, comida a cada noite (“d’où il avait tiré sa colossale fortune de chaque matin mangée chaque soir”, capítulo IV, p. 426). Fortuna construída em seis meses, por meios ilícitos das informações privilegiadas, dos tráficos de influência, da prevaricação nos cargos públicos, no uso de laranjas (prête-noms, também conhecidos como hommes de paille...), no superfaturamento de indenizações e de obras, no desvio de verbas, nas especulações, na criação de empresas fictícias... Diante desse cenário, ele jamais se daria conta ou se incomodaria, se percebesse, com a relação incestuosa entre Renée e Maxime, que é pano de fundo, simbólico, do verdadeiro incesto que Zola, como republicano ferrenho, quer denunciar. O incesto de agentes públicos, cuja forma mais acabada é Saccard, com a coisa pública, tratando-a como coisa privada e cujo homme de paille é outro empregado da prefeitura, Larsonneau.

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Renée, nascida em berço de ouro, de família antiga parisiense, filha do magistrado M. Béraud Du Châtel, teve educação esmerada em colégio de freiras, mas, ao sair, engravidou de um amante casado. O pai lhe deu em um casamento arranjado ao recém-viúvo, Aristide Saccard, cujo interesse está no rico dote que receberá. Aristide só vê à sua frente o dinheiro, as moedas de ouro que parecem cair do céu aos montes, numa Paris que passa por uma transformação radical de suas vielas em grandes eixos, margeados por longos e amplos boulevares.

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A reforma do traçado de Paris foi a solução encontrada por Napoleão III e comandada pelo Barão Haussmann, prefeito de Paris, para a revitalização da cidade, embelezando-a, tornando-a habitável e salubre, beneficiando a circulação e o comércio, a exemplo de Les Halles Centrales, o grande mercado de Paris, ambiente de Le ventre de Paris, terceiro romance da série. Havendo, contudo, sub-repticiamente, a preocupação de evitar barricadas, como as de 1830, contra Charles X, que o alijaram da realeza; as de 1832, contra Louis-Philippe, que não tiveram forças para defenestrá-lo do poder, e as de dezembro de 1851, no início do golpe de Estado, promovido por Louis Napoléon, ironicamente, o primeiro presidente da república eleito. Um ano mais tarde, em 1852, ele se tornaria Napoleão III, matando a Segunda República, sacramentando o Segundo Império e permitindo que algumas pessoas se beneficiassem das reformas.

Saccard, melhor do que qualquer outro, materializa o uso do público para o seu benefício privado. Servo do dinheiro, o hotel de sua propriedade em que morava, no Parc Monceau, é o templo grave, cuja Caixa era o santuário, em que o cofre-forte, atarracado e pregado na parede, fazia o papel de deus, com ar de uma besta divina (“air de brute divine”, capítulo III, p. 385).

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Apesar dos exageros típicos da doutrina naturalista e do ímpeto, muitas vezes diatríbicos dos que fazem militância política, o romance La Curée é uma página ficcional de uma verdade plausível, que muito incomodou a sociedade francesa do final do século XVIII, já na Terceira República, depois da queda do Segundo Império (1870). Nada que não conheçamos profundamente, tornando-se, no entanto, catártico, por sabermos que nós, brasileiros, não inventamos nada disso...

"Nihil sub sole novum", como diria o Eclesiastes.


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL

O latim está em toda a parte. Às vezes, quero me esconder dele, mas não adianta, ele sempre dá um jeito de se mostrar. Embora considerada, ...

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O latim está em toda a parte. Às vezes, quero me esconder dele, mas não adianta, ele sempre dá um jeito de se mostrar. Embora considerada, por muita gente, uma língua morta, a realidade me diz que ela não só está viva, mas goza de muito boa saúde.

Noel Rosa tinha voz miúda. Não era propriamente uma voz e nem poderia ser, num momento em que reinavam grandes intérpretes como Chico Alves...

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Noel Rosa tinha voz miúda. Não era propriamente uma voz e nem poderia ser, num momento em que reinavam grandes intérpretes como Chico Alves, que gravou muitas de suas músicas. A parceria entre os dois foi ao ponto de Noel pagar com músicas um carro, que Chico Alves lhe vendeu.

“Le jeune fit un geste, le geste de César passant le Rubicon” (o jovem fez um gesto, o gesto de César passando o Rubicão), é o que nos cont...

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“Le jeune fit un geste, le geste de César passant le Rubicon” (o jovem fez um gesto, o gesto de César passando o Rubicão), é o que nos conta o narrador de "A Fortuna dos Rougon" (La fortune des Rougon), romance de Émile Zola (Capítulo VI). Ainda que não queiramos, vivemos impregnados do latim e da cultura latina. Quem nunca ouviu a frase alea iacta est ? E quem nunca se lembrou dela numa situação limite?

“Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho. Homero é que relata isto, e é um bom autor, não...

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“Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho. Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes do homem que recebera, defunto, aqueles olhos... É impossível que algum Homero não tirasse da minha situação muito melhor efeito, ou, quando menos, igual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos procuram a sombra e o silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para que as caras apareçam limpas e serenas; os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse Heitor.”

Embora se tenha tornado, pela tradição popular, um mês aziago, o chamado mês do cachorro louco, Agosto, em sua origem, não é nada disso. Ag...

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Embora se tenha tornado, pela tradição popular, um mês aziago, o chamado mês do cachorro louco, Agosto, em sua origem, não é nada disso. Agosto vem de Augustus, uma homenagem a Octavius Augustus Caesar, o princeps,  conhecido mais comumente como o imperador romano César Augusto.

Em seu nascedouro este mês se chamou Sextīlis e era, de fato, o sexto do ano, numa referência à sua ordem no calendário romulano ou no calendário de Numa Pompílio, posterior ao de Rômulo, ambos do século VIII a.C. Mesmo que Numa tivesse acrescentado dois meses ao seu calendário – Janeiro e Fevereiro –, o mês Sextīlis continuou como sexto, tendo em vista que os meses acrescidos foram postos ao final do ano, depois de December, dezembro.

Sem saber francês, Père Hucheloup conheceu o latim; querendo ser melhor do que Carême , o chef dos reis, igualou-se a Horácio. É assim, c...

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Sem saber francês, Père Hucheloup conheceu o latim; querendo ser melhor do que Carême, o chef dos reis, igualou-se a Horácio. É assim, com uma ironia sutil, que Victor Hugo comenta uma distorção fonética, que, ajudada pelas intempéries, virou uma distorção ortográfica e acabou emulando Horácio, o poeta latino.

Pierre Rougon, personagem de " A Fortuna dos Rougon " (La fortune des Rougon), de Émile Zola, é um provinciano, cuja intenção é s...

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Pierre Rougon, personagem de "A Fortuna dos Rougon" (La fortune des Rougon), de Émile Zola, é um provinciano, cuja intenção é ser rico, sem demonstrar qualquer interesse pela educação que não seja utilitária. Quando sua esposa Félicité, com quem se casara num bom arranjo comercial com os pais dela, coloca na cabeça a ideia de que os filhos devem ir para a escola, ele responde, numa frase curta e incisiva sobre aprendizagem, que o latim era um luxo inútil (Le latin était un luxe inutile). Pouco importa que aqui Pierre esteja se referindo ao latim de modo denotativo ou simbólico. O que importa é o conceito, que persiste ainda nos nossos dias, de que só precisamos aprender coisas práticas, como, por exemplo, ganhar dinheiro.

O estado é seu sócio. Sócio-penetra, que se convidou, se impôs e não tem como você colocá-lo para fora. O Estado entra com nada e abocanha ...

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O estado é seu sócio. Sócio-penetra, que se convidou, se impôs e não tem como você colocá-lo para fora. O Estado entra com nada e abocanha uma parte considerável do que você produz, com a promessa de devolver o que tomou em bens sociais. No mais das vezes, as promessas ficam pelo meio do caminho, pois o Estado acredita e aposta na nossa inércia e resignação. Acredita, ainda mais, no poder das palavras vazias de ação.

Dentre os vários frutos do espírito, que Paulo elenca em Gálatas (5, 22-23), o primeiro é o Amor Ágape. Não há, nas epístolas de Paulo pala...

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Dentre os vários frutos do espírito, que Paulo elenca em Gálatas (5, 22-23), o primeiro é o Amor Ágape. Não há, nas epístolas de Paulo palavra que lhe seja mais cara. Ágape é o amor incondicional, o amor da escolha, cujo sentido se estende para designar a refeição dos primeiros Cristãos, juntos no compartilhamento da comida e do Amor a Deus.

Em uma das suas palestras, Ariano Suassuna, em tom de chiste, disse que a Grécia não inventou a tragédia . No máximo, continuou ele, a Gréc...

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Em uma das suas palestras, Ariano Suassuna, em tom de chiste, disse que a Grécia não inventou a tragédia. No máximo, continuou ele, a Grécia inventou a tragédia grega. Claro que um homem com a erudição de Ariano, que foi professor de estética, disse isto para fazer uma das tantas provocações, o que era peculiar nas suas conversas. De minha parte, prefiro afirmar que foi uma blague, porque se ele tiver dito a sério, é um caso único de alguém estar certo e errado, ao mesmo tempo.