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Há no Evangelho duas parábolas muito próximas, que se complementam por terem sido construídas com concepções figuradas diferentes. Trata-s...

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Há no Evangelho duas parábolas muito próximas, que se complementam por terem sido construídas com concepções figuradas diferentes. Trata-se da “Parábola da ovelha desgarrada”, presente em Mateus e em Lucas, e da “Parábola do filho pródigo”, uma exclusividade do Evangelho de Lucas. Esta tem uma estrutura metonimicamente, quando opta pela parte em lugar do todo: o filho pródigo é o ser humano, cuja alma se desvia com facilidade do caminho a ser percorrido. Aquela é alegórica, com Jesus utilizando-se de uma linguagem do pastoreio, íntima das pessoas a quem ele se dirigia: a ovelha desgarrada é, ainda uma vez, a alma humana, errando por caminhos ínvios.

O campo juncado de cadáveres, o sangue fluindo em jorros, cidades bombardeadas e saqueadas, pessoas desalojadas, inocentes mortos, soldad...

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O campo juncado de cadáveres, o sangue fluindo em jorros, cidades bombardeadas e saqueadas, pessoas desalojadas, inocentes mortos, soldados famintos, exaustos e sem cartuchos, comandantes despreparados e um líder fraco, eis como se desenha o cenário da guerra franco-prussiana (1870-1871), num desastre total para a França, em que a besta vencia o homem (la bête emportait l’homme, Segunda Parte, Capítulo VII), assunto do romance La débâcle (A derrocada, 1892), de Émile Zola, cujo título não poderia ser outro. O final dramático visto em La bête humaine (A besta Humana), em que um trem desgovernado, pela morte de seus condutores, porta, no compartimento de carga, soldados para a guerra, como gado sendo levado para o matadouro, aqui encontra o seu destino (considere o leitor “dramático” e “destino”, ambos com o sentido grego):

Eneias é herói. A palavra, per se , já nos diz muita coisa, quando se refere aos tempos míticos da narrativa clássica. Se alguém tem algum...

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Eneias é herói. A palavra, per se, já nos diz muita coisa, quando se refere aos tempos míticos da narrativa clássica. Se alguém tem alguma dúvida a respeito de sua significação, há toda uma tipologia do herói, que pode ser recolhida das páginas da Ilíada e da Odisseia. Dentre as tantas características, escolhemos duas, para não cansar o leitor: o herói é aquele ser, em geral descendente dos deuses, que realiza feitos impossíveis aos homens comuns; o herói deve ser piedoso, no sentido da religiosidade greco-latina, devendo temer, respeitar e oferecer sacrifícios aos deuses, estendendo essa piedade ao pai.

Há muitos mistérios no amor que nem mesmo os envolvidos sabem solucionar, embora, muitos de fora desse processo queiram julgar as suas con...

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Há muitos mistérios no amor que nem mesmo os envolvidos sabem solucionar, embora, muitos de fora desse processo queiram julgar as suas consequências.

Os leitores que acompanham o Ambiente de Leitura Carlos Romero hão de se lembrar do Carmen LXXXV de Catulo, aquele famoso poema lírico latino que começa com o paradoxal “amo et odi” (amo e odeio),

Diante da resposta à pergunta de um taxista paquistanês, em Nova York, sobre quais eram os inimigos da Itália, Umberto Eco responde que os...

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Diante da resposta à pergunta de um taxista paquistanês, em Nova York, sobre quais eram os inimigos da Itália, Umberto Eco responde que os italianos não têm inimigos, o que foge à total compreensão do seu interlocutor. A partir daí, Eco constrói o instigante ensaio “Construir o inimigo”, que abre e dá título à mais recente edição de seu livro Construir o inimigo e outros escritos ocasionais (tradução de Eliane Aguiar, 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2021). São quinze ensaios sobre assuntos diversos, escritos e pronunciados, a maioria em Bolonha, entre os anos de 2001 e 2010. Destes,

Machado de Assis fez uma crítica contundente a Eça de Queirós, acusando-o de haver plagiado Émile Zola. A acusação foi a de que O crime do...

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Machado de Assis fez uma crítica contundente a Eça de Queirós, acusando-o de haver plagiado Émile Zola. A acusação foi a de que O crime do Padre Amaro seria uma imitação de La Faute de l’Abbé Mouret, de Zola. Eça de Queirós rebate dizendo que o seu romance foi publicado primeiro e que só alguém dotado de “obtusidade córnea e má-fé cínica” poderia ver no seu romance uma imitação do romance do francês.

Joe Gardner quer ser pianista famoso de jazz. Ele sente que a música é a sua vida, mas só se contentará se puder ser aclamado como grande ...

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Joe Gardner quer ser pianista famoso de jazz. Ele sente que a música é a sua vida, mas só se contentará se puder ser aclamado como grande intérprete. Quando surge a sua grande chance – tocar no quarteto da famosa jazzista Dorothea Williams –, Joe sofre um acidente. Em lugar de se encaminhar para o Além, porque ainda apegado à existência terrena, Joe tenta fugir e cai na Pré-Vida ou Escola Espiritual, onde, confundido com um sueco ganhador do Nobel, ele vai ser mentor das jovens almas que vão encarnar. Joe é escolhido como mentor da alminha 22, que há séculos se desvia e recusa encarnar, apesar da excelência dos mentores que teve – Copérnico, Jung, Ghandi, Madre Teresa de Calcutá, Einstein, Orwell, Mohamed Ali. Nenhum conseguiu fazê-la descobrir a sua missão como espírito a ser encarnado.

Eneias deve deixar Troia. Os Argivos invadiram a cidade, estão matando seus habitantes e destruindo-a. Heitor lhe aparece em sonho e lhe d...

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Eneias deve deixar Troia. Os Argivos invadiram a cidade, estão matando seus habitantes e destruindo-a. Heitor lhe aparece em sonho e lhe diz da impossibilidade de defesa: não é por falta de braços que a cidade está caindo, o inimigo está dentro dos muros e Troia rui desde o seu alto cume (Hostis habet muros; ruit alto a culmine Troia, verso 290). O fantasma de Heitor ainda diz a Eneias, para levar consigo as coisas sagradas de Troia – seus Penates e a deusa Vesta –, pois o herói precisará deles para fundar as novas e grandes muralhas.

“Les croque-morts descendaient le cercueil. Maussade sous la bise, le prêtre attendait; et des fossoyeurs étaient là, avec des pelles. Tr...

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“Les croque-morts descendaient le cercueil. Maussade sous la bise, le prêtre attendait; et des fossoyeurs étaient là, avec des pelles. Trois voisins avaient lâché en route, les dix n’étaient plus que sept” (L'Oeuvre, Chapitre XII).
“Os agentes funerários desceram o caixão. Aborrecido sob o vento frio, o padre esperava; e os coveiros lá estavam, com as pás. Três vizinhos, durante o caminho, abandonaram o cortejo, os dez não eram mais que sete.”

Tenho falado de uma visão sistêmica do fato literário, o que, em si, não é nada de novo. É quase impossível falar isoladamente de um texto...

Tenho falado de uma visão sistêmica do fato literário, o que, em si, não é nada de novo. É quase impossível falar isoladamente de um texto, de um autor ou de um gênero. Aristóteles tinha conhecimento dessa impossibilidade, quando para falar da tragédia teve que compará-la à comédia e, sobretudo, à épica, montando uma tipologia do gênero, a partir de leituras de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, sem esquecer, evidentemente, Homero.

Há pouco mais de dois anos, tenho tido conversas semanais muito proveitosas sobre Augusto dos Anjos com dois amigos, Astenio Cesar Fernand...

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Há pouco mais de dois anos, tenho tido conversas semanais muito proveitosas sobre Augusto dos Anjos com dois amigos, Astenio Cesar Fernandes e Manuel Jaime Xavier, ambos médicos e leitores dedicados. Quando eu pensava que, após tantas leituras, comentários, análises e interpretações da poesia augustana nada mais pudesse me admirar, dou de cara com o soneto “Anseio”, a confirmar o veio espiritualista de sua poesia, só que de modo explícito. Para compreender melhor essa junção da matéria e do espírito, no poeta do Eu,
partamos de 2 citações de Richard Dawkins, sobre a evolução (O maior espetáculo da terra: as evidências da evolução; tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 31):

“Do ponto de vista evolucionário que raciocina com base na população, cada animal está ligado a qualquer outro animal – como o coelho ao leopardo, por exemplo – por uma cadeia de intermediários, cada qual tão semelhante ao seu contíguo que cada elo poderia, em princípio, cruzar com seu vizinho nessa cadeia e produzir descendentes férteis”.

“Do ponto de vista evolucionário, existe realmente uma série de animais intermediários que ligam um coelho a um leopardo, cada um dos quais teria vivido e respirado, cada um dos quais teria sido classificado exatamente na mesma espécie que seus vizinhos imediatos no longo e fluido continuum”.

A partir daí, podemos aplicar esse raciocínio a um dos veios da poesia de Augusto dos Anjos – o da evolução da espécie –, constatando que um ser que vem “do cosmopolitismo das moneras”, um “polipo de recônditas reentrâncias” (Monólogo de uma Sombra), uma “actissa radiolar” (Os Doentes), um “gérmen” (A um Gérmen), “larvas” (O Pântano), um peixe “malacopterígio subraquiano” (Alucinação à Beira-Mar), um “amniota subterrâneo”, um “sapo” (As Cismas do Destino), um “animal inferior que urra nos bosques” (Monólogo de uma Sombra), um “cachorro a ganir incompreendidos verbos” (As Cismas do Destino), um “macaco catarríneo” (Os Doentes), o homem em suas versões de “filósofo moderno”, “sátiro peralta” (Monólogo de uma Sombra) ou visionário noturno (Noite de um Visionário) são os elos de uma cadeia ininterrupta de evolução da espécie,
todos filhos do “carbono e do amoníaco” (Psicologia de um Vencido) ou do “Protilo” (Sonho de um Monista), que não podem ser vistos de maneira isolada, pois se assim enfocados, nada dirão.

O outro veio, o da evolução espiritual estagnada, este se materializa como, já afirmei em estudo anterior, na “angústia da evolução”. O propagador dessa assincronia é a Sombra, uma espécie de alter-ego do aflito eu-póetico, diante da degradação do espírito humano, que ela sintetiza metonimicamente, sentido em si “a dor de todas essas vidas”. Assim como não podemos ver de maneira isolada as referências sólidas e bem tramadas da evolução da espécie, ao longo do texto augustano, também não podemos ignorar o continuum existente e incontornável, em busca da espiritualização, que começa com “Monólogo de uma Sombra”, um poema-manifesto de sua profissão de fé. A conexão se faz em “Sonho de um Monista” em que o eu-poético enxerga “a verdade espantosa do Protilo”, cuja alma vê “Deus – essa mônada esquisita”, tudo fazendo parte da “evolução orgânica da argila” (As Cismas do Destino). Aquilo que a Sombra deixa implícito, principalmente no final de seu discurso, é o que se dirá com todas as letras em “Anseio”, como um remate claro para a ligação entre os dois veios poéticos:


Quem sou eu, neste ergástulo das vidas Danadamente, a soluçar de dor?! – Trinta trilhões de células vencidas, Nutrindo uma efeméride inferior. 
Branda, entanto, a afagar tantas feridas, A áurea mão taumatúrgica do Amor Traça, nas minhas formas carcomidas, A estrutura de um mundo superior! 
Alta noite, esse mundo incoerente, Essa elementaríssima semente Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal… 
Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto, E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto Não poder dar-lhe vida material!

De cunho neoplatônico, o soneto nos traz a vida material como prisão e dor, com o ser humano gastando suas células, para nutrir uma inferioridade, que o tornará em vida um “esqueleto exausto”. Os dois primeiros versos encerram uma pergunta retórica, em que a admiração se sobrepõe à interrogação, pois o eu-poético sabe perfeitamente a resposta, que nos é dada nos dois versos seguintes. A prisão que encarcera o eu-poético não é uma prisão qualquer, mas um ergástulo, aquela que faz do ser humano, um escravo e devedor,
diante dos saques incontáveis à vida material, cuja efemeridade ele não alcança, pensando-a eterna. A dor vem lhe trazer o quanto o homem perdeu diante de sua entrega a uma materialidade que o aprisiona e, “danadamente”, o condena. O último verso da primeira estrofe se constrói numa espetacular aliteração, com base no fonema fricativo /f/, levando-nos a ouvir a vida que se escapa inutilmente – Nutrindo uma efemeridade inferior.

O lamento que se expressa em soluço e dor é semelhante à crítica que a Sombra faz ao Filósofo Moderno e ao Sátiro Peralta, nas suas entregas à materialidade, estragando o seu “vibrátil plasma todo”. Mas, em “Anseio”, há o diferencial que pode remediar essa situação: o Amor (assim com letra maiúscula) é o único meio possível de transformação do ser humano, para livrá-lo da prisão da materialidade, para livrá-lo da danação. O Amor é o taumaturgo, o operador de milagres, e causa o prodígio da transformação, trazendo o consolo à dor e ao soluço, com a sua mão branda, afagando as feridas, transformando as formas carcomidas, numa estrutura de um mundo superior.

É pelo Amor e pelo consolo que ele traz, que a dor, o sofrimento, a prisão, a inferioridade se transformarão em liberdade, em alívio, em eternidade e vida superior, em luz, conforme sugere a sua “áurea mão”. Na beleza do paradoxo que contrapõe e funde “as formas carcomidas” e a “estrutura de um mundo superior”, o eu-poético expõe a certeza de que já se encontra, na degradação, a purificação;
igualmente, na morte, se encontra a vida: é a podridão servindo de Evangelho, é a "eucaristia negra", é a graça que se encontra na desgraça. A evolução material é o passo para a evolução espiritual, porque, enfim, tudo se encontra em tudo. O eu-poético revela esse anseio no hausto em que se alarga o seu grito de dor, que diz dessa necessidade de um sorvo profundo de espiritualidade.

Para que isso ocorra, contudo, o homem tem de ter consciência de sua pequenez e imperfeição; de que está perdido em vidas sucessivas que o aprisionam – “Quem sou eu neste ergástulo daS vidaS/Danadamente a soluçar de dor!?”. Ter a consciência de que é uma “elementaríssima semente do que há de ser”, para, a partir daí, buscar o ideal do espírito. Como sabemos, o uso do superlativo em Augusto dos Anjos, é característico. Nesse caso, ele enfatiza a pequenez do homem, não para diminuí-lo, mas para que ele saiba que é da pequena semente que ocorre a transformação na grande árvore. Para que isto aconteça, a semente precisa morrer ou não frutifica. O homem precisa morrer materialmente para dar o fruto do renascimento no espírito. Isto se aplica para o puramente biológico, em que o espermatozoide encontra o óvulo, deixando ambos de ser o que são, “morrendo”, para gerar o que há de ser, e se aplica também, com relação ao transcendental, em que o espírito vai passar algum tempo aprendendo, como habitante da vida etérea, conforme mostra a bela metáfora do espírito “vestido de hidrogênio incandescente”, no poema “Solilóquio de um Visionário”.

A matéria nutre uma inferioridade, enquanto o espírito busca a superioridade, é o que nos revela a antítese entre a primeira e a segunda estrofes. O homem precisa sair dessa noite que o envolve — característica marcante do eu-poético angustiado —,
noite mais interna do que externa, e buscar alívio para a sua dor, através do Amor. Salvo engano, este é o único poema de Augusto dos Anjos em que o Amor aparece, com todas as letras, pleno e redentor, bem diferente do “amor do sibarita e da hetaíra,/De Messalina e de Sardanapalo” (Idealismo). Não basta, no entanto, saber que o Amor transforma e espiritualiza, é preciso praticá-lo. Aí vem outra lição: a angústia de não poder realizar na matéria a espiritualidade. A matéria é um meio de aprimoramento, é na matéria que se prepara a espiritualidade, numa batalha constante de transpor o Ideal. Ao homem que perdeu sua vida, consumindo-a e tornando-se “esqueleto exausto”, a nova vida só será possível através da espiritualidade, cujo agente é o Amor. Sem ele, o homem está perpetuamente condenado ao sansara (Monólogo de uma Sombra, Viagem de um Vencido), como um escravo no ergástulo.

Acredito que este soneto “Anseio” é um exemplo de que a poesia de Augusto dos Anjos exige ser lida como um sistema. Não podemos ignorar isto e submeter seus poemas a nossas crenças pessoais, sejam elas quais forem, científicas ou religiosas. Como exemplo, ainda mais claro desse sistema, temos o tríptico magistral em que o eu-poético fala do pai morto. Lidos separadamente, os três sonetos dirão menos da espiritualidade do que se lidos no sistema em que foram produzidos.

Um trem desgovernado rasga a noite, furando barreiras, carregado de soldados que partem para o campo de batalha, na recém-iniciada guerra ...

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Um trem desgovernado rasga a noite, furando barreiras, carregado de soldados que partem para o campo de batalha, na recém-iniciada guerra franco-prussiana. Sem saber que o foguista e o condutor morreram, os soldados cantam, inebriados pela velocidade e pela expectativa da guerra. É este o final de A besta humana (La bête humaine, 1890) de Émile Zola. Um dos finais mais marcantes que conheço para um romance, em que nada se fecha, pelo contrário, se abre para um devir muito preocupante.

Meu amigo Germano, nesse pouco tempo em que nos conhecemos, constatei que temos algumas coisas em comum. Uma delas é o amor pelas viagens....

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Meu amigo Germano, nesse pouco tempo em que nos conhecemos, constatei que temos algumas coisas em comum. Uma delas é o amor pelas viagens. Nada sei de sua relação com Roma, essa cidade que adoro, pela sua história, por ser um museu a céu aberto, por cada centímetro de seu chão estar marcado pelas decisões que mudaram a face do ocidente. Roma é caso único, na história da humanidade, de uma cidade de origem pastoral que dominou o mundo e ditou até a maneira de contarmos o tempo. Haverá tempo para falarmos dela.

O último dia 20 de abril marcou mais um aniversário de Augusto dos Anjos. Há 137 anos, ele veio ao mundo; há 109, a força de sua poesia fo...

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O último dia 20 de abril marcou mais um aniversário de Augusto dos Anjos. Há 137 anos, ele veio ao mundo; há 109, a força de sua poesia foi plasmada em um livro singular, sob todos os aspectos – título, vocabulário, ritmo, sonoridade, concepção... –, há 107, morria o homem e, com ele, o poeta, desconhecidos ambos, mas deixando um legado incomparável à literatura.

O texto que apresento a seguir, sobre o soneto “Último Credo”, de Augusto dos Anjos, é fruto do diálogo sistemático que tenho em sala de aul...

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O texto que apresento a seguir, sobre o soneto “Último Credo”, de Augusto dos Anjos, é fruto do diálogo sistemático que tenho em sala de aula, procurando estabelecer um caminho metodológico de leitura analítica e crítica.

Certamente, alguns devem estar incomodados com o título atribuído a este ensaio – “A equação da espiritualidade”. O incômodo é proveniente de se ver, habitualmente, Augusto dos Anjos como o poeta da morte, sentido que ganhou uma dimensão inercial, de tanto repetido. Digamos que, de um modo didático, podemos caracterizar a sua poesia da seguinte maneira: os poemas constituem um sistema de vasos comunicantes, devendo ser lidos em conjunto, cuja linguagem científica

Em A besta humana ( La bête humaine , 1890), Émile Zola põe na boca da personagem Séverine Roubaud os detalhes do assassinato do senhor ...

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Em A besta humana (La bête humaine, 1890), Émile Zola põe na boca da personagem Séverine Roubaud os detalhes do assassinato do senhor Grandmorin, presidente da companhia de trens, por seu marido, que fez dela cúmplice forçada. O crime acontece no interior de um trem, que se desloca de Paris ao Havre (Capítulo II), e só nos é mostrado fragmentariamente. O leitor tem conhecimento do acontecido, não tem dúvida a respeito dos culpados, mas faltam-lhe os detalhes do ocorrido.

Morrer é verbo depoente em latim. Isto significa que o verbo apresenta uma forma passiva, mas com um sentido ativo. Assim, “mŏrĭor”, prime...

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Morrer é verbo depoente em latim. Isto significa que o verbo apresenta uma forma passiva, mas com um sentido ativo. Assim, “mŏrĭor”, primeira pessoa do indicativo infectum de “mŏrī”, “morrer”, não é “eu morro”, embora traduzamos e digamos assim, mas é qualquer coisa como “algo me faz morrer”. Na realidade, ninguém morre, a não ser que provoque deliberadamente a sua morte. É sempre "algo" que nos leva a morrer. Tanto é que o atestado de óbito deve sempre deixar claro qual foi a causa mortis.

Eu tinha 8 anos, mal sabia ler, e já conhecia de cor a primeira parte de “O Canto do Piaga”, de Gonçalves Dias. Ainda que essa primeira pa...

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Eu tinha 8 anos, mal sabia ler, e já conhecia de cor a primeira parte de “O Canto do Piaga”, de Gonçalves Dias. Ainda que essa primeira parte tenha 24 versos, distribuídos por 6 quadras, confesso que não sou nenhum prodígio. Um prodígio saberia Gonçalves Dias de cor. O fato é que três das minhas irmãs mais velhas do que eu — eu sou o sétimo de uma família de 10 — estudaram em colégio de freiras, em Bananeiras, e uma delas mais afeita às artes cantava no coro. Foi através de minha irmã e da música, que a já citada primeira parte de “O Canto do Piaga” se alojou na minha memória.

Aprendemos mais com a leitura dos autores do que lendo o que se escreve sobre eles. Antes que alguém me crucifique pela afirmação, eu me e...

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Aprendemos mais com a leitura dos autores do que lendo o que se escreve sobre eles. Antes que alguém me crucifique pela afirmação, eu me explicarei. Há um vício corrente nos cursos de Letras de começar o estudo de um autor pela sua fortuna crítica. Seria compreensível essa atitude na pós-graduação, quando se espera que os mestrandos e doutorandos já tenham uma sólida base de leitura. Não é o caso. Na graduação, então, nem se fala, tendo em vista que, como sabemos, Letras não é o curso dos sonhos nem de muitos que ali se encontram.

Ao ler o mais recente e belo texto de Germano Romero, “ Uma vida de herói ”, eu senti um estalo na memória. Quando eu vi a estrutura do po...

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Ao ler o mais recente e belo texto de Germano Romero, “Uma vida de herói”, eu senti um estalo na memória. Quando eu vi a estrutura do poema sinfônico de Richard Strauss, que Germano descreveu, Mnemosine, a deusa da memória e mãe das Musas, veio em meu auxílio e, de imediato, a minha mente só chamava para a Eneida de Virgílio:
I - O herói (Der Held) II - Os adversários do herói (Des Helden Widersacher) III - A companheira (Des Helden Gefährtin) IV - As batalhas (Des Helden Walstatt) V - As obras de paz do herói (Des Helden Friedenswerke) VI - Saída do mundo, consumação e transcendência (Des Helden Weltflucht und Vollendung)

Explico-me. É impossível ler a crônica poético-musical de Germano Romero e não associar ao poema épico de Virgílio. Era como se cada palavra dita, correspondesse, na sua essência, à narrativa da Eneida.

Senão, vejamos: o herói Eneias é apresentado, desde o Livro I da Eneida, embora só venhamos a saber os detalhes de sua origem, de sua viagem e o porquê de ele ter sido escolhido pelos deuses, para ser o herói da nação troiana, no Livro II. Eneias, filho de Vênus, é um predestinado ao heroísmo e deve fugir, para fundar uma nova Troia, pois a sua Troia foi destruída pelos gregos. Assim, decidiram os deuses súperos (I. O herói – Der Held).

Para que Eneias cumpra a sua missão e possa realmente ser merecedor da condição de herói assinalado pelos deuses, ele precisa enfrentar muitas adversidades e, claro, adversários, na sua complexa viagem, terra marique, por terra e por mar, à nova Troia, que de verá ser fundada no Lácio, na península Itálica, berço da futura Roma. Ele é que assentará as bases dessa gloriosa cidade, destinada a ser a Caput Mundi, a Cabeça do Mundo. Os adversários iniciais são tanto os gregos, que invadem Troia e a destroem, quanto monstros, como o ciclope Polifemo, as Harpias voadoras, além de pestes, naufrágios, errâncias e más interpretações dos oráculos para que ele encontre o caminho assegurado pelos deuses. Até a própria Juno, a deusa-mãe, o persegue, por razões que estão além da alçada de Eneias, como o julgamento de Páris e o rapto de Ganimedes, troianos, como Eneias, que a ofenderam (II. Os adversários do herói – Des Helden Widersacher).

No Lácio, Eneias vai encontrar a companheira também destinada pelos deuses. Trata-se de Lavínia, a filha do rei Latino, com quem o herói há de casar. Mas não pensemos que o casamento será sem dificuldades, tendo em vista que o herói vai ter que enfrentar novas adversidades para a conquista de Lavínia. A terra fundada será chamada de reino Lavínio, em homenagem à esposa. Fica claro, portanto, que à conquista da mulher, precede a conquista da terra (III. A companheira – Des Helden Gefährtin).

As novas adversidades, pois um herói não é só afeito às adversidades, como também elas nunca acabam, apenas mudam o seu grau de dificuldade, serão as batalhas desenroladas no Lácio, para a conquista da terra; batalhas que ocupam um terço da narrativa, do Livro IX ao XII da Eneida. Destaque-se, principalmente, batalhas contra os Rútulos do rei Turno, o principal oponente do herói, pois Lavínia já estivera prometida a ele, antes da chegada de Eneias. Como já dissemos, conquistar a terra é conquistar a mulher (IV. As batalhas – Des Helden Walstatt).

O auge dessas batalhas é o combate singular entre Eneias e Turno, culminando com a morte deste último. Como a Eneida é um poema inacabado, o poema se fecha abruptamente com a morte de Turno. Virgílio, acometido por uma doença, na volta da Grécia para Roma, morre em Brundisium, atual Bríndisi, em 19 a. C., após dez anos de trabalho no poema, que começou com um pedido pessoal de Otávio César Augusto. Após a sua morte, Augusto designa os poetas Tucca e Varius, para editar o poema como ele se encontra, com cerca de 50 versos hexâmetros inacabados e sem o epílogo, característico dos poemas épicos.

Diante da morte prematura de Virgílio e da edição póstuma do poema, em 17 a. C., preservado como o poeta o deixou, não vemos a construção da nova Troia, o novo reino tão sublimado, que levará o nome de Lavínio, nem as obras de paz do herói. Estas viriam, consequentemente, vez que Eneias é o modelo do rei indo-europeu, em suas três fases de rei-guerreiro, rei-sacerdote e rei-empreendedor. Infelizmente, a parte que seria para celebrar os empreendimentos que levam ao progresso e à paz, como um tributo a Augusto e a sua decantada Pax Romana, não se encontra no poema (V. As obras de paz do herói – Des Helden Friedenswerke).

Do mesmo modo, não veremos a transcendência do herói, mas a tradição nos diz e isto é, de certo modo, antecipado no Livro I da Eneida, quando da profecia de Júpiter a Vênus. Eneias, depois de fundada a nova Troia, reinará por três anos, sendo arrebatado pelos deuses, num fenômeno que se chama de apoteose (ἀποθέωσις), saindo do mundo, transcendendo a matéria, para ir viver junto aos deuses, porque soube conquistar o status de herói que lhe foi conferido (VI. Saída do mundo, consumação e transcendência – Des Helden Weltflucht und Vollendung).

Em linhas gerais, podemos constatar como a estrutura de Richard Strauss para o seu poema sinfônico “Uma vida de herói” se aplica, na sua essência, ao poema épico e, mais estritamente, ao épico de Virgílio, com a tessitura de uma narrativa heroica. Não esqueçamos, ainda, de um detalhe: apesar de não ser um poema sinfônico, a Eneida, como os demais poemas, sobretudo, os épicos, foi feita para ser cantada, não para ser contada, acompanhada de instrumentos de percussão como a lira e o tambor, no ritmo do verso hexâmetro dactílico, com os seus seis pés bem marcados.

Tinha razão Gérard Genette, em dizer que a literatura é um sistema de vasos comunicantes. Vou mais além: a arte é um sistema de vasos comunicantes, estendendo a sua capilaridade ilimitada e instigando que se escreva sobre ela e se escreva sobre o que se escreveu sobre ela ad infinitum.