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A Astier Basílio, enfrentando com denodo o frio e os escritores russos Raskólnikov procura uma taberna, experimentando a novidade de ...

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A Astier Basílio, enfrentando com denodo o frio e os escritores russos

Raskólnikov procura uma taberna, experimentando a novidade de “certa sede de gente” (p. 18), apesar de não estar habituado a multidões e sentir repulsa e desconforto se estranhos o abordam ou nele tocam. Em lá chegando, ele é abordado por um funcionário público decadente, Marmieládov, que inicia um solilóquio sobre o seu alcoolismo, a doença da sofrida esposa, a prostituição da filha, falando de sua miséria. Tendo abandonado o emprego e se desfeito da roupa decente que a mulher e a filha lhe compraram, para que ele pudesse desempenhar as suas funções, Marmieládov, buscando a atenção de Raskólnikov e tagarelando sem parar, disse que foi pedir dinheiro a filha para beber,

Qual o destino de Aglaia Negromonte? Desdobramento? Fuga da realidade? Delírio? Fênix renascida, vitoriosa sobre os seus medos e suas perd...

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Qual o destino de Aglaia Negromonte? Desdobramento? Fuga da realidade? Delírio? Fênix renascida, vitoriosa sobre os seus medos e suas perdas? Cabe ao leitor decidir. Para uma personagem cindida, nada como uma narrativa cindida a ser fruída tanto mais quanto se é decifrada... até onde ela permite.

Euclides da Cunha não faz concessões. Ele é erudito e quem quiser se esforce e se desdobre para acompanhá-lo. Não adiante reclamar. Estamo...

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Euclides da Cunha não faz concessões. Ele é erudito e quem quiser se esforce e se desdobre para acompanhá-lo. Não adiante reclamar. Estamos diante de um grande escritor cujo estilo escorreito e culto deixa à mostra o grande leitor que ele foi. Se para o leitor culto já há uma dificuldade em acompanhá-lo, para o leitor acostumado a leituras sem substância ou para o leitor em formação, essa dificuldade torna-se muito maior. A erudição de Euclides da Cunha é uma barreira a quem deseja transpor a “atmosfera adurente” do sertão e de Os sertões.

Nossa escola não tem preparado nossos alunos nem para a leitura culta. Para a leitura erudita menos ainda, diante do esforço incomum que a erudição exige. Há, com certeza, autores mais difíceis de se ler do que outros e, diga-se de passagem,
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aí não reside qualquer juízo de valor. Há autores intragáveis, mesmo sendo fáceis de ler; há autores de leitura prazerosa, mesmo diante da dificuldade de seus textos, como o provam Guimarães Rosa e Euclides da Cunha.

O entrave para a leitura desses dois escritores está não na falta de hábito de leitura, mas na falta do hábito de ler, reler e procurar enfiar-se nos meandros de sua escrita. São autores difíceis, não são insípidos. Eles têm o que dar ao leitor que busca mergulhar no universo da sua escrita densa. Como se diz comumente, eles têm sustança. Sim, são substancialmente significativos e para que cheguemos à sua significação, temos de nos aprofundar nos seus textos e tentar ver com mais clareza o que existe por trás de uma forma linguística, que parece nos repelir. Insistamos e ela nos atrairá, como o passarinho hipnotizado pela cobra. No entanto, quem está disposto a fazer leitura e, sobretudo, releituras de obras como Grande sertão: veredas e Os sertões? São as releituras que nos permitem passar a couraça da erudição e mergulhar na grandeza do texto.

Com relação a Euclides da Cunha, os termos eruditos se sucedem na sua escrita, com muitos termos latinos; outras referências eruditas são incontáveis tanto do ponto de vista científico, quanto do puramente literário. A guerra de Canudos, por exemplo, é sempre comparada a alguma guerra mítica ou real, em que se faz referência a lutas contra o elemento exógeno, como a guerra de Troia – lembremos que Canudos é uma “Troia de taipa dos jagunços” (“O Homem”, Capítulo II, p. 144) –, ou a lutas fratricidas, como a mítica luta entre os irmãos Polínices e Etéocles, em Tebas, daí a referência à Tebaida de Estácio, ou ainda à Vendeia, resistência monárquica e católica contra a Revolução Francesa, em 1793 (isto será assunto mais detalhado de outro ensaio), magistralmente ficcionada por Victor Hugo, no romance Quatre-vingt-treize (93) – “E Canudos era a Vendeia...”
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(“O Homem”, Capítulo V, p. 247), depois repetido em “A Luta”, Parte I – Preliminares, Capítulo V, p. 290 (Fizemos questão de colocar as citações de modo mais preciso, para os leitores que não tenham a mesma edição que a nossa. Todas as citações são da edição estabelecida por Andre Bittencourt – São Paulo, Penguin Classics Companhia das Letras, 2019).

O sertão, por sua vez, além de impérvio e terra ignota, nunca tem um perfil ou uma face, mas um facies, termo latino recorrente no texto; os cumes das montanhas e das escarpas são fastígios; os acontecimentos são subitâneos; as copas das árvores, os ramos e a vegetação raramente são verdes, mas virentes; os areais são exsicados; as águas ganglionadas; a flora decídua; o sertão adusto; os ciclos adurentes. Quando o traçado geográfico das serras separa o Vaza-Barris e o Itapicuru, dá-se o divortium aquarum; o sertão é desertus australis, por sua posição ao sul do hemisfério, e a sua flora extravagante é silva horrida; as areias são incedidas; os minúsculos ciclones que atingem o sertão exacerbam a sensação do calor, sentindo-se, então, “maior a exsicação do ambiente adusto”; o verão traz sempre um paroxismo estival; as ares são urentes; os cajueiros anões são chamados pelo seu nome científico de Anacardium humile; o sertão é uma selva desfolhada pelo fogo, mas o escritor prefere dizê-la silva aestu aphylla; os estios são flamívomos... E nós só nos ativemos, de um modo aleatório e não exaustivo, ao léxico mais evidente das 50 páginas que enfeixam a primeira parte, “A Terra”. Há mais 600 pela frente...

Os soldados doentes e feridos, na retirada da quarta expedição, “aguilhoados pela sede” buscam água “desarraigando tubérculos de umbuzeiros, sugando os cladódios túmidos dos cardos epinescentes” (“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo VI, p. 517). Imagine-se a dificuldade de uma frase destas ampliada num parágrafo ou multiplicada por milhares de vezes, ao longo da narrativa. É preciso mais do que hábito de leitura ou o conhecimento da língua culta, para cativar o leitor.

A quem conhece a Ilíada nos seus detalhes, pois as releituras ajudam a fixação na memória e ampliam o horizonte de expectativa, não é difícil de reconhecer nos textos abaixo, a saga de Aquiles retornando à guerra, no Canto XIX, e fazendo das águas do Simoente, um dos rios que banha Troia, um curso vermelho e impedido de desaguar no Egeu, pelo sangue e pelos corpos dos troianos por ele mortos (Canto XXI), o que leva o rio a recriminar o herói e, depois, levantar-se contra ele, querendo afogá-lo (versos 211-221; 240 e ss.):

“Um dos médicos contou rapidamente mais de trezentos cadáveres. Tingira-se a água impura da lagoa do Cipó e o sol batendo de chapa na sua superfície, destacava-a sinistramente no pardo escuro da terra requeimada, como uma nódoa amplíssima, de sangue...”
“A Luta”, Parte II – Travessia do Cambaio, Capítulo IV, p. 321

“Alguns ali mesmo tombaram ou rolaram na água, arrastados na corrente, que se listrava de sangue”
Parte III – Expedição Moreira César, Capítulo IV, p. 374).

“Era um fervilhar de corpos transudando vozear estrídulo, e discordante, e longo, dando a ilusão de alguma enchente repentina, em que o Vaza-Barris, engrossando, saltasse de improviso, fora do leito, borbulhando, acachoando, estrugindo”
idem, p. 382

Se alguém acha que é só coincidência, dê uma olhada no Catálogo dos Jagunços (“O Homem”, Capítulo V, p. 242-244), baseado no Catálogo dos Heróis e das Naus, do Canto II da Ilíada. Ideia que será retomada também por Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas.

Como entender o epíteto e genial oxímoro a definir o sertanejo, como “Hércules-Quasímodo” (“O Homem”, Capítulo III, p. 157)? Por que o fracasso da terceira expedição equipara “os batalhões de Moreira César”
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às “legiões de Varo” (“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo I, p. 408)? O que faz de Canudos, “uma tapera miserável, fora dos nossos mapas, perdida no deserto, aparecendo, indecifrável, como uma página truncadas e sem-número das nossas tradições” (idem, p. 404), ser uma “Capua invertida” (idem, Capítulo II, p. 415) ou um “Coliseu monstruoso” (idem, Capítulo III, p. 449)? Qual a explicação para a imagem de um exército faminto, a se contentar com “oito a dez cabeças” de gado por dia, “paliativo insuficiente ao Minotauro de 6 mil estômagos” (idem, Capítulo IV, p. 475)? O que dizer do plano ortodoxo do general Artur Oscar, comandante da quarta expedição, de não recuar e ganhar a guerra “desse por onde desse”, e a sua relação com um fato da história romana, apenas modificado ligeiramente:

“Não recuaria. Alterou um verbo na frase clássica do romano e seguiu. Chegou; viu; e ficou”
idem, p. 480.

Por que a insistência nos meandros do Vaza-Barris (“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo III, p. 450; Capítulo V, p. 493)?

Imagine-se o que é parar a leitura e buscar compreender minudentemente o que se encontra no texto. Quanto horas dedicadas a este labor, que alongaria a leitura e a tornaria mais pesada! Paradoxalmente, são as horas dedicadas à compreensão de um texto erudito, como este de Euclides da Cunha, que nos darão o prazer de sua leitura, porque vamos aprendendo aos poucos a refinar o paladar e a degustar cada palavra, cada expressão, cada frase, reverberando em nossa recepção, a ponto de não mais a sentirmos como uma couraça impenetrável. Não é suficiente saber ler, é necessário aprender a ler com paciência e persistência, buscar os significados escoimados do vulgo da linguagem – atenção!
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Euclides da Cunha Arq. Nacional
vulgo aqui com o significado erudito do latim, assim como Dante usou na sua De Vulgari Eloquentia –, e apreender seus sentidos mais nobres, catapultando a compreensão da língua.

Este exercício é essencial para que possamos fruir passagens belíssimas, como aquela em que “as primeiras bátegas” das chuvas de inverno, não chegam a tocar a terra seca e adusta, evaporando-se, mas a persistência e a frequência com que caem concentram-na “tumultuariamente em ribeirões correntosos”, que se adensam “em rios barrentos”, arrancando na força da correnteza “os esgalhos das árvores”, que rolam “no mesmo caos de águas revoltas e escuras” (“A Terra”, Capítulo IV, p. 78-79). Por sinal, excelente metáfora, para a aquisição do hábito da leitura pela persistência.

Em meio a uma narrativa desafiadora, há inúmeros encantos aguardando o leitor que se dispõe a enfrentá-la. O trecho a seguir é uma página digna de uma antologia – difícil é dizer que página não é... –, pela riqueza de sua construção estilística:

“Perto do Rancho do Vigário, por um requinte de lúgubre ironia, os jagunços cobriram de floração fantástica a flora tolhiça e decídua: dos galhos tortos dos angicos pendiam restos de divisas vermelhas, trapos de dólmãs azuis e brancos, molambos de calças carmesins ou negras, e pedaços de mantas rubras – como se a ramaria morta desabotoasse todas em flores sanguinolentas...”
“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo VI, p. 518

No texto, se mesclam a ironia, o símile, a metonímia, antecipadora da morte, ao mesmo tempo que revela o paradoxo entre vida e morte, de uma flora assustadora, que ressurge dos trapos dos soldados mortos... É na persistência da leitura e na busca de suas significações em segundo grau que passaremos a fruir por completo textos como o da ação maléfica do homem sobre a terra, de que desponta uma das marcas da estilística de Euclides da Cunha, a gradação:

“Atacou a fundo a terra, escarificando-a nas explorações a céu aberto; esterilizou-a com os lastros das grupiaras; feriu-a a pontaços de alvião; degradou-a corroendo-a com as águas selvagens das torrentes; e deixou, aqui, ali, em toda parte, para sempre estéreis, avermelhando nos ermos com o intenso colorido das argilas revolvidas, onde não medra a planta mais exígua, as grandes catas, vazias e tristonhas, com a sua feição sugestiva de imensas cidades mortas, derruídas...”
“A Terra”, Capítulo V, p. 96-97

Sem a ajuda da erudição não é possível ler Euclides da Cunha, como é impossível ler Guimarães Rosa ou Augusto dos Anjos. Ou todos podem ser lidos na sua horizontalidade, mas o resultado será, inevitavelmente, a inania verba, o lugar-comum dos clichês que parecem dizer algo inteligente. Só parecem.

Meus amigos Germano Romero e João Batista de Brito se queixaram, quase simultaneamente, expressando o seu descontentamento a respeito da ...

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Meus amigos Germano Romero e João Batista de Brito se queixaram, quase simultaneamente, expressando o seu descontentamento a respeito da nossa música. O que terá acontecido com a nossa música? Nada se ouve além de uma batida repetitiva, com frases chulas e muito abaixo da linha da inteligência. Um golfinho faria melhor.

Se tu te dispões a fazer alguma coisa que faças de bom grado. De nada adianta fazer algo, que deveria ser voluntário, contra a própria ...

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Se tu te dispões a fazer alguma coisa que faças de bom grado.

De nada adianta fazer algo, que deveria ser voluntário, contra a própria vontade. Se estás chateado, não precisas transformar a chateação em mau humor.

É lícito chatear-se, pois a vida não é um caminho suave e indolor, mas a transformação da chateação em mau humor imputa a ti mesmo e ao outro um peso extra à vida e àquilo que temos de fazer.

Quando meu neto Arthur tinha sete anos, ele me perguntou se estávamos no mês de oitembro . Respondi-lhe que estávamos no mês de outubro....

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Quando meu neto Arthur tinha sete anos, ele me perguntou se estávamos no mês de oitembro. Respondi-lhe que estávamos no mês de outubro. Com uma certa condescendência, ele me disse “Mês de oitubro, vovô!”.

Arthur, na lógica correta da criança, intuiu que o vocábulo setembro está associado a sete e outubro/oitembro/oitubro a oito, assim como novembro e dezembro estão associados a nove e dez, respectivamente. Intuição certeira, embora não seja a hora de explicar-lhe que no primeiro calendário do mundo ocidental, o calendário de Rômulo, datado do século VIII a.C., esses meses, realmente, estabeleciam uma ordem de sete a dez, no ciclo anual daquele calendário de dez meses, cujo início se dava em março: março (em homenagem ao deus Marte, pai dos gêmeos Rômulo e Remo),

Depois de ler o mais recente livro de W. J. Solha, 1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite (1ª ed. Cajazeiras: Arribaçã, 2021), es...

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Depois de ler o mais recente livro de W. J. Solha, 1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite (1ª ed. Cajazeiras: Arribaçã, 2021), escrevo, não com a frieza e cálculo do crítico, mas sob o impacto da recepção. Escrevo como leitor impactado, na ânsia do querer absorver a poesia.

A arte é essencialmente estesia (αἴσθησις). A maneira como ela repercute em nós, invadindo-nos e remexendo as nossas emoções, leva-nos a definir o que sentimos diante dela. Aristóteles sabia disso e por esta razão trocou a preocupação ética de Platão com a mimese, na formação da educação da criança (παιδεία), essencial para a construção da república (πολιτεία), pela investigação da mimese como estética, procurando saber de que modo ela atinge as emoções do público espectador da tragédia e, por conseguinte,
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o leitor, ao produzir uma catarse – a um só tempo alívio, purificação e saneamento –, através do medo e da piedade.

Sim, a arte é mais para sentir do que para compreender. Sou, contudo, professor. Tenho, pois, uma necessidade de organizar, na mente, o que leio, para poder alcançar um mínimo que seja de sua compreensão, mesmo estando em plena fruição de um estado de estesia.

Solha já orienta o leitor, ao fixar o pacto arquitextual, definindo seu livro como “o quinto, de seis tratados filosófico-poéticos”. Só essa definição abriria uma larga e longa discussão a respeito do poder que tem o autor de definir ou não a natureza do que escreve. Faço questão de frisar que a discussão seria sobre o poder, não sobre o direito, pois direito todos temos de definir qualquer coisa, o que não significa que essa definição seja a mais acertada. Deixemos, no entanto, essa discussão para outra hora ou para que outros a encetem.

De início, trago duas discordâncias, que atingem a parte, digamos didaticamente, filosófica de seu tratado. A primeira delas, com relação ao que se diz sobre Platão, pela boca de seu personagem Sócrates. É certo que fazer o bem a todos e sempre é o caminho para a justiça. Pior do que receber uma injustiça é cometê-la. Mas na construção de sua Pólis, Sócrates não descarta a existência de uma teologia, cujos princípios devem ser ensinados ou não a homens que, desde a mais tenra infância, devem honrar os deuses, honrar os pais e amarem-se, não pouco, mutuamente (República, Livro III, 386a). O amor está lá, portanto, como essencial à justiça, essa virtude da alma.


O outro ponto de discordância é a respeito da tradução de “logos” (λόγος), no início do Evangelho de João, como “razão”. A nosso ver, e atentando para a estrutura desse texto, “lοgos” é o verbo/palavra, a substância que faz de Jesus um ser substantivo, essência primeira da espiritualidade e da imortalidade. De acordo como o apóstolo evangelista, Jesus é luz, pão, água, pastor, caminho, verdade e vida.

Ora, estas são discordâncias apenas do ponto de vista filosófico, estritamente atinentes a uma das partes de que se compõe o livro de Solha. Além do mais não significa que estejamos com a razão. Em nada, estas discordâncias invalidam o produto poético que Solha nos oferece, pois, como criação do espírito, tudo o que ali se nos apresenta está perfeitamente adequado.

Partamos de uma constatação engenhosa de Solha:

Poeta não é p(r)o(f)eta.

Solha nos propõe uma dupla leitura: o poeta não é poeta; o poeta não é profeta. Ao seguirmos com atenção toda a engrenagem de seu poema, vemos que, em realidade, há uma terceira possibilidade que o leitor poderá ou não descobrir: o poeta é poeta, quando se faz profeta. Expliquemos.

O poeta não é poeta, porque no sentido grego da palavra, ποιητής, poeta não tem a significação restrita que lhe empregamos literariamente. Poeta é um agente, é o que faz, o que fabrica algo material, tanto quanto o que produz um texto literário. O resultado de sua ação, o algo fabricado é o ποίημα, o poema, que pode ser uma mesa ou uma peça literária; o exercício dessa produção, aquilo que o leva a produzir é a ποίησις, a ação de criar, termo mal traduzido por “poesia”, gerando mil confusões. A ποίησις é algo intangível, tanto quanto o poema é algo tangível, a própria materialidade, resultado da ação criadora. Assim, nem todo o que cria algo, mesmo sendo poeta, no sentido literal do termo,
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Calíope ▪ musa da poesia épica
não o é no sentido literário do termo – o poeta não é poeta, necessariamente.

Hesíodo nos diz como se deu a transformação do homem preocupado apenas com o estômago (γαστήρ), preocupado em sobreviver materialmente, naquele que cria para o alimento do espírito (ποιητής). As Musas sopram na boca dos pastores e lhe dão esse poder criativo, que vai além da materialidade (Teogonia, versos 22-34) e junto ao sopro criativo segue um dos atributos das divinas filhas de Zeus: a capacidade de saber dizer o presente, o passado e o futuro – o poeta é (e não é) profeta, ainda que não seja o profeta tradicional de falar, como oráculo, pela boca dos deuses. Esta capacidade de criar e antecipar acontecimentos, seja pelo sonho, tão bem delineado por Solha, em seu livro, ao falar de Mendeleiev, de Bohr e de Mary Shelley, seja citando Enzo Paci – “Nunca estamos completamente acordados,/nunca estamos num sono completo” –, revela a visão especial do artista e também do cientista, visão que impulsiona a nossa capacidade criativa, como se fora uma profecia.

Entremos, então, no terreno da criação de Solha, como poeta, no sentido literário que se empresta ao termo. O poeta é um homem inquieto, pois sabe que a criação não para. Nesse ciclo interminável, tudo se interliga: olhares novos, olhares cediços, olhares renovadores. O olhar de Solha é sobre o humano, mais do que isto é olhar sobre a vida, esse milagre constante, que faz que sejamos contempladores, como diz Richard Dawkins, do maior espetáculo da terra. Solha, em seu livro expõe um olhar criativo e criador sobre aquilo que nos faz diferentes dos demais seres vivos, aquilo que nos dá a capacidade de criar, para a praticidade do viver e para a satisfação do espírito, por causa de nossa insatisfação de viver apenas materialmente.
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TV Câmara ▪ JP
Eis Hesíodo em cena. Nesta busca da criação, estamos sempre recomeçando, de ab ovo a ab ovo, como nos mostra o seu instigante poema.

Tudo é uma grande, incessante, contínua e sempre reiniciada viagem. É assim que vemos o poema: uma viagem, que envolve da criação biológica e a consequente evolução das espécies, à criação tecnológica e, ainda mais, à criação artístico-filosófica, sendo a arte e a filosofia as maiores expressões do refinamento da linguagem humana. Solha não faz e nem nos apresenta esta viagem sem que nos revele a existência das infinitas redes de contatos; as viagens e migrações, que nos põem em conexão com tudo e com todos. Não importa se essa viagem comporta um deslocamento material ou deslocamento do pensamento, em todos os aspectos ela é fascinante, porque a vida e suas variadas possibilidades é o que de mais fascinante tem o universo para nos apresentar. Só quem possui um horizonte de expectativa amplo, porque insaciável na busca pelo conhecimento, é que pode, como Solha, nos revelar a miríade da capilaridade dessa rede infinita.

Acreditamos ser o homem o mais fascinante dos animais, por sua racionalidade, pelo seu cérebro desenvolvido, por ser capaz de criar coisas maravilhosas, de modo a poder ir além das leis inflexíveis que a natureza nos apresenta (claro que se os animais pudessem se exprimir de modo inteligível, isto seria questionado). Em contrapartida, somos também capazes das maiores atrocidades, que destroem a natureza e a nós mesmos. Nosso cérebro incrível e nosso polegar opositor não nos livraram da insanidade e fazemos, desde muito, uma viagem de destruição, com a criação de armas letais – do ficcional, mas plausível Cavalo de Troia à real, mas implausível bomba atômica –, paralela a uma viagem artística, que teima em nos prender a uma capacidade de criar mais do que destruir a vida. Falta-nos essa consciência, no entanto. E Solha nos apresenta isto numa síntese perfeita:

Mas, no Holocausto, Mefisto também perdura em Fausto.

Em todos os aspectos, brilhante! Criamos, a um só tempo, maravilhas e atrocidades. E a criação das atrocidades são feitas, muitas vezes, dentro de uma lógica programada, como foi o Holocausto. É Da Vinci criando obras de arte inigualáveis e também projetando armas, dos rudimentares tanques de guerra a torres de assalto. Como pode o homem ser ao mesmo tempo racional e “maluco”, oxímoro que acompanha a nossa existência? O poeta capta a nítida evolução na espécie, ao produzir tecnologia sofisticada, ao mesmo tempo sem avançar na evolução humanitária:

A marcha, embora sempre pra frente, frequentemente murcha.

O que seria desalento para muitos, para o poeta é mais uma razão para seguir em frente. Não será a queda de Ícaro que nos fará parar de pensar em voar alto. Fazer a viagem é preciso, continuar a viagem é fundamental, mesmo que nos arrisquemos, aqui e acolá, a fracassos e retrocessos. Nesse processo contínuo, a linguagem e suas narrativas são partes essenciais, para que saibamos e enfrentemos as dificuldades de viagem tão turbulenta, em que arte e razão parecem tão irreconciliáveis. O poeta parece ser o homem confrangido entre os conflitos e as delícias de ser homem. Somos geniais? Sim, “...nada menos, nada mais”, mas sentimos que isto não nos basta.

Na epifania de ter-se dado conta de que tudo está interligado, “como se uma toalha me abrisse a clareira – entre seixos e um xique-xique – para um piquenique”, Solha vê-se parte integrante e inalienável de uma arte reveladora de um fantástico sistema de vasos comunicantes, assim como a vida, mas que necessita de que descubramos os seus encaixes, para que a viagem não se estagne, afinal:

Séria ou travessa, a vida É um quebra-cabeça. ............. cada coisa, simples ou complexa, a nos levar, o tempo todo, a outra, conexa,

O sussurro em Dom Casmurro e os canhões em Os sertões produzem Guerra e paz. Tudo num ritmo perfeito, que rejubila o nosso ouvido.

Todas as coisas estão integradas a um grande sistema, sujeito a marchas e contramarchas, enquanto pensarmos que a razão e o raciocínio são suficientes para nos levar à paz, à harmonia, à justiça e ao respeito ao próximo. Nessa receita, contudo, há que entrar um outro ingrediente ou o mundo explodirá e aumentará ainda mais a sua fragmentação. Solha, num poema fragmentado, mas unido pelas conexões que o sistema permite e por uma criatividade excepcional e turbilhonante, nos deixa ver além das laranjas mecânicas e das bananas de dinamite.

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É neste momento que entra o diligĕre do “Sermão da Montanha” a que Solha se refere, “como se,/ali,/estivesse/amare”. Amar está, sim, Solha, mas o amor incondicional, amor da escolha, por isto na composição do verbo diligĕre, que corresponde ao verbo ἀγαπάω, que se encontra no original grego (ἀγαπήσεις, ἀγαπᾶτε, ἀγαπήσητε, ἀγαπῶντας, Matheus, 5, 43-46), estão a preposição dis (separação) e o verbo legĕre, cujos sentidos antes de ser “ler”, compreendem o “colher” e o “escolher”. Diligĕre é, literalmente, distinguir pela escolha, amar incondicionalmente. Eis o ingrediente que falta.

Ao empreender essa viagem de fluxo incontrolável, tomando o leitor como passageiro, Solha nos proporciona a delícia de acompanhar a paisagem diversificada de sua mente brilhante. Não resta ao leitor senão o impacto diante da criatividade e da criação que se produzem infinitamente.

Voltei a traduzir Catulo. Primeiro dos poetas latinos clássicos, Catulo opera uma revolução na literatura da sua época, ainda limitada à é...

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Voltei a traduzir Catulo. Primeiro dos poetas latinos clássicos, Catulo opera uma revolução na literatura da sua época, ainda limitada à épica e à história. Viveu pouco, cerca de 30 anos. Oriundo da cidade de Verona, de família abastada, Gaius Valerius Catullus (87/84-57/54 a.C.), estabeleceu-se em Roma, onde viveu uma vida de cliente, ainda que não tenha passado pelas agruras desse relacionamento com os patronos, como Marcial, o seu discípulo mais dileto, de quem ele dista quase cem anos.

Euclides da Cunha diz em “O Homem”, segunda parte de Os sertões , estarmos “condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos” (S...

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Euclides da Cunha diz em “O Homem”, segunda parte de Os sertões, estarmos “condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos” (São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2019, cap. I, p. 114). A razão dessa afirmação taxativa é a reverberação do que ele viu em Canudos, a mais acabada imagem da barbárie, a ponto de ser chamada de “Troia de taipa dos jagunços” (Cap. II, p. 144; Cap. V, p. 225) e de “Jerusalém”, que se amaldiçoa (Cap. V, p. 255), numa alusão ao fato real da ação devastadora dos romanos contra os judeus, em 70 d. C., sob o comando do imperador Vespasiano e de seu filho Tito, e também ao grande mito de resistência guerreira na imagem da Troia homérica, devastada, igualmente, pelos argivos, sob o comando de Agamêmnon.

Dois soldados, duas guerras, dois textos e dois contextos diferentes. Eis um elo entre Arthur Rimbaud (1854—1891) e Euclides da Cunha (186...

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Dois soldados, duas guerras, dois textos e dois contextos diferentes. Eis um elo entre Arthur Rimbaud (1854—1891) e Euclides da Cunha (1866-1909). O poeta francês, chamado por Verlaine de “Satã adolescente”, por sua vida conturbada, tem um belíssimo soneto intitulado “Le Dormeur du Val” (“O Adormecido do Vale”), publicado em 1870, que encontra eco em uma passagem do Capítulo III de “A Terra”, a primeira parte de Os sertões, livro de 1902, mas que começou a ser escrito a partir de 1897.

Em Grande sertão: veredas , Riobaldo, encaminhando a conversa para o fim, diz a seu interlocutor que “a morte de cada um já está em edital...

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Em Grande sertão: veredas, Riobaldo, encaminhando a conversa para o fim, diz a seu interlocutor que “a morte de cada um já está em edital” (22ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 416), corroborando o que já afirmara anteriormente, “Dia da gente desexistir é um certo decreto” (p. 45), e o que dizem os seus jagunços:

Pouco tenho frequentado as redes sociais. O ambiente miasmático que a impregna me mantém delas afastado. Ao ver o fervor e a devoção reli...

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Pouco tenho frequentado as redes sociais. O ambiente miasmático que a impregna me mantém delas afastado. Ao ver o fervor e a devoção religiosa na defesa de bandidos, de ambos os lados do espectro político, por parte de seus sequazes, fico enojado. A atmosfera está decididamente insalubre. Ainda assim, aproveitando a publicação de algum ensaio ou artigo, vez por outra arrisco um olho, para ver se há alguma mudança. Qual! Nada mudou a não ser para continuar o mesmo. Bis idem, como se diz em latim.

No ano de 2012, fui a um encontro de Clássicas, em Ascea Marina, um balneário de Salerno, no mar Tirreno. Depois de passar um dia em Pompe...

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No ano de 2012, fui a um encontro de Clássicas, em Ascea Marina, um balneário de Salerno, no mar Tirreno. Depois de passar um dia em Pompeia, no final do encontro, cheguei, no sábado pela manhã, a Nápoles, de onde sairia, à noite, com destino a Roma. Planejei sair à noite, para que pudesse passar o dia no Museu Nacional Arqueológico, onde se encontra grande parte do acervo da cidade de Pompeia. Tive sorte de ser início da primavera e as salas principais do Museu estarem abertas, o que me permitiu obter muitas fotos importantes, que utilizo como material para a sala de aula.

Charles Rhoades Senior se descobre com insuficiência renal grave e precisa de um transplante urgente, se quiser continuar vivendo. O probl...

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Charles Rhoades Senior se descobre com insuficiência renal grave e precisa de um transplante urgente, se quiser continuar vivendo. O problema é que o hospital não o vê como candidato para um transplante elegível, tendo em vista a sua longa vida de desregramento na bebida e nos charutos. Seu filho, Chales Rhoades Junior, Chuck, não é compatível como doador. Seus outros filhos, fora do casamento, também não o são.

O suicídio é uma atitude condenável há muito tempo. No mais das vezes, por razões religiosas. No Fédon (Φαίδων), Platão é incisivo quando...

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O suicídio é uma atitude condenável há muito tempo. No mais das vezes, por razões religiosas. No Fédon (Φαίδων), Platão é incisivo quando trata do assunto e põe na boca de Sócrates, personagem do diálogo, a afirmação de “dizerem o suicídio não ser permitido pela lei de Thêmis”, lei que servia a regular as ações dos deuses e dos mortais (οὐ γάρ φασι Θεμιτὸν εἶναι, 61c). Se o suicídio é proibido, porque, então, Sócrates se suicida? Há, pelo menos, três explicações para o fato: o Fédon não foi lido; o diálogo foi lido, mas não foi entendido; apesar de lido e entendido, prevaleceu a simplificação – Sócrates tomou a cicuta, então, ele suicidou-se.

A verossimilhança é, na ficção, uma invenção de Hesíodo, na Teogonia. Aristóteles a sistematiza, como uma das essências da ação de criar f...

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A verossimilhança é, na ficção, uma invenção de Hesíodo, na Teogonia. Aristóteles a sistematiza, como uma das essências da ação de criar ficcionalmente, ao teorizar sobre a tragédia, na Arte poética, dizendo que o trabalho do criador (ποιητοῦ ἔργον) é dizer não o que ocorreu, mas o que é poderia ter ocorrido, segundo a verossimilhança (κατὰ τὸ εἰκὸς, 1451a). Neste mesmo trecho, o filósofo cria o conceito de “necessidade” (τὸ ἀναγκαῖον), que passaria a designar uma característica fundamental da obra ficcional: se algo não tem utilidade ou não vai ser usado funcionalmente no texto, não há necessidade de ser citado. Ou nas palavras de Aristóteles, “o que é acrescentado ou não acrescentado, e não resulta em clareza, não faz parte do todo” (1451a).

Grande Sertão: veredas , romance de João Guimarães Rosa, é uma história de amor. Sim, uma história de amor que não poderia, pela lei da ja...

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Grande Sertão: veredas, romance de João Guimarães Rosa, é uma história de amor. Sim, uma história de amor que não poderia, pela lei da jagunçagem, ser revelada ou ser vivida. Mesmo que depois se descobrisse o mistério que envolve esse amor, o estrago, em nome da honra e da macheza, já teria sido feito e de modo irreversível. Não se espantem que esta monumental prosa seja uma história de amor. Mas é. Não há nada de incomum nisso, mesmo para um escritor como Guimarães Rosa. Se duvidarem, é só pegar, como exemplo, Sagarana e tentar descobrir em que conto não há uma história de amor, resultando em tragédia pessoal.

Alguns sabem do apreço que tenho pela poesia de Augusto dos Anjos, que considero, sem nenhum favor, o maior poeta brasileiro e um dos maio...

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Alguns sabem do apreço que tenho pela poesia de Augusto dos Anjos, que considero, sem nenhum favor, o maior poeta brasileiro e um dos maiores do mundo. E sabem também o valor que dou aos versos “E o animal inferior que urra nos bosques/É com certeza meu irmão mais velho”. Considero estes versos da estrofe 5 de “Monólogo de uma Sombra”, de suma importância para a compreensão de dois nítidos veios em que a poesia do poeta paraibano se biparte: a evolução da espécie e a evolução espiritual. Eles são, digamos, ainda mais claros e sintéticos do que a estrofe inicial desse longo poema que abre o Eu, como uma espécie de profissão de fé.

Há no Evangelho duas parábolas muito próximas, que se complementam por terem sido construídas com concepções figuradas diferentes. Trata-s...

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Há no Evangelho duas parábolas muito próximas, que se complementam por terem sido construídas com concepções figuradas diferentes. Trata-se da “Parábola da ovelha desgarrada”, presente em Mateus e em Lucas, e da “Parábola do filho pródigo”, uma exclusividade do Evangelho de Lucas. Esta tem uma estrutura metonimicamente, quando opta pela parte em lugar do todo: o filho pródigo é o ser humano, cuja alma se desvia com facilidade do caminho a ser percorrido. Aquela é alegórica, com Jesus utilizando-se de uma linguagem do pastoreio, íntima das pessoas a quem ele se dirigia: a ovelha desgarrada é, ainda uma vez, a alma humana, errando por caminhos ínvios.

O campo juncado de cadáveres, o sangue fluindo em jorros, cidades bombardeadas e saqueadas, pessoas desalojadas, inocentes mortos, soldad...

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O campo juncado de cadáveres, o sangue fluindo em jorros, cidades bombardeadas e saqueadas, pessoas desalojadas, inocentes mortos, soldados famintos, exaustos e sem cartuchos, comandantes despreparados e um líder fraco, eis como se desenha o cenário da guerra franco-prussiana (1870-1871), num desastre total para a França, em que a besta vencia o homem (la bête emportait l’homme, Segunda Parte, Capítulo VII), assunto do romance La débâcle (A derrocada, 1892), de Émile Zola, cujo título não poderia ser outro. O final dramático visto em La bête humaine (A besta Humana), em que um trem desgovernado, pela morte de seus condutores, porta, no compartimento de carga, soldados para a guerra, como gado sendo levado para o matadouro, aqui encontra o seu destino (considere o leitor “dramático” e “destino”, ambos com o sentido grego):