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O autor Carlos Drummond de Andrade não era tão “gauche” quanto o eu lírico do “Poema de sete faces”: “Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida”. C...

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O autor Carlos Drummond de Andrade não era tão “gauche” quanto o eu lírico do “Poema de sete faces”: “Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida”. Com efeito, embora timidamente, por vias oblíquas, de acordo com o seu temperamento discreto, recatado, bem que ele cuidou, aplicadamente, da posteridade da sua poesia. Para tanto, lançou mão de um certo histrionismo para asfaltar o caminho de sua obra poética. Aliás, o simples fato de viver, durante um período, distante dos refletores, dos microfones da mídia, mais o expunha do que o escondia. Criou um tipo, como também o criaram J. D. Salinger e Dalton Trevisan, ambos reclusos num anonimato que tinha lá uma certa eficácia em termos de publicidade. E o que dizer do Jean Paul Sartre que recusou o Prêmio Nobel de Literatura? Que, não o aceitando, ganhou mais evidência, mais notoriedade.

A ARAPONGA A Sérgio Faraco carcereira, abre a lingueta da garganta e aperta-me o cerco: o canto que a liberta dos ferros

sergio de castro pinto poemas animais ambiente de leitura carlos romero



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A ARAPONGA

A Sérgio Faraco

carcereira,

abre a lingueta

da garganta


e aperta-me o cerco:


o canto

que a liberta

dos ferros

Adler, o meu amigo e cunhado, foi um menino grande. Um grande menino. Gostava de frequentar mais os ambientes públicos do que os espaços as...


Adler, o meu amigo e cunhado, foi um menino grande. Um grande menino. Gostava de frequentar mais os ambientes públicos do que os espaços asfixiantes das casas. Daí o seu jeito flâner, a predileção pelos feriados nacionais, pelas festas das padroeiras, a exemplo das de Nossas Senhoras das Neves e da Luz, sobretudo esta última, guarabirense de boa cepa que ele o foi.

comunhão livros crepitam no forno das estantes livros são pães ...


comunhão

livros
crepitam
no forno
das estantes

livros
são pães
eucarísticos
crocantes


A boa leitura sempre consistiu, para mim, numa espécie de revolução silenciosa. Dela, sempre saí diferente de quando entrei. Ou seja, mal concluo a última frase de um romance ou o último verso de um poema, sinto-me com uma nova percepção da vida e do mundo. Pena que nem todos pensem assim e tratem o escritor, sobretudo o poeta, com um certo ar de mofa e de desdém. Isso sem falar que os editores e os livreiros discriminam a poesia, gênero literário que dificilmente é exposto nas vitrines das livrarias, mas, quase sempre, escondido nas últimas prateleiras, nos locais mais longínquos e ermos. Tanto que, quando encontro numa livraria alguém de joelhos, numa posição genuflexa, não tenho dúvida: esse alguém está à cata de um livro de poesia. É um leitor de poesia. E dos bons!

Sobre o livro, escreve João Cabral de Melo Neto: “(...) modesto: só se abre se alguém o abre”. Pois bem. Nestes meus 60 anos de vida, outra coisa não fiz senão abrir livros, devassá-los e gozar de sua intimidade. Não somente livros, mas tudo o que, feito de papel e tinta, me caísse às mãos: jornais, revistas, gibis, almanaques, e até mesmo um vetusto tomo de um médico alemão de cuja leitura o meu pai – jornalista, hipocondríaco e completamente leigo em medicina – extraía conclusões estapafúrdias para “diagnosticar” os achaques e as mazelas do filho único que eu sou e continuo sendo. O livro, que povoou a minha infância e parte da minha adolescência, denominava-se, salvo engano, O Conselheiro Médico do Lar.

os livros quase sempre encerram uma espécie de “invenção da verdade”
Li, e ainda hoje leio, bulas de remédios, receitas culinárias e “fórmulas de preparado para pele”, como o fez – no caso destas últimas – o poeta Manuel Bandeira para encontrar os caminhos tortuosos e íngremes do verso livre, segundo ele uma conquista difícil, pois, situando-se na confluência do parnasianismo com o simbolismo, habituara-se, naturalmente, quase sem esforço, ao ritmo metrificado e às formas fixas dessas duas correntes da lírica brasileira.

A minha primeira leitura foi um livro de crônicas do meu pai, cujo narrador – um menino na década de 1930 – discorria a propósito do conflito entre liberais e perrepistas. Eram crônicas lidas ao sabor de uma profunda nostalgia, sentimento estranho para uma criança que, ainda sem passado, sentia uma saudade atávica do menino antigo que fora o seu pai. Daí para também escrever as minhas “memórias” foi um passo, apenas com uma diferença: impossibilitado de explorar o tempo pretérito, de convertê-lo em matéria bruta do meu texto, não me restou alternativa senão inventá-lo. O que o fiz, inconscientemente, na esteira do verso de Manuel Bandeira: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Só que, nessa fase, eu não tinha uma vida inteira, como não a tenho até hoje, que a vida jamais se completa e é inteira, por mais larga e comprida que seja.

oscar wilde
Oscar Wilde
Aprendi, a partir de então, que uns mais, outros menos, os livros quase sempre encerram uma espécie de “invenção da verdade”. E que esta, mesmo de forma velada, sub-reptícia, denota o inconformismo do escritor diante do mundo, o conflito que se estabelece entre “a vida vivida e a vida pensada”, pois já não disse Oscar Wilde que, “para a maioria de nós, a vida real é a vida que não vivemos”? Cumpre-nos vivê-la, então, pela leitura. Mas, principalmente, disseminar a leitura, pois o leitor “sozinho não tece uma manhã”.

O fato é que, de leitura em leitura, terminei por me engajar nessa “guerra sem testemunhas” que é o ato de escrever, não obstante, mesmo se isolando no escritório e dentro de si mesmo, o escritor sempre disponha de aliados: os oficiais do mesmo ofício com os quais mantém “afinidades eletivas”. Que o diga João Cabral de Melo Neto, no poema “A Willy Levin morto”, do livro Museu de Tudo: “Se escrevemos pensando/ como nos está julgando/ alguém que em nosso ombro/ dobrado, imaginamos, / e é o primeiro que assiste/ ao enredado e incerto/ que é como no papel/ se vai nascendo o verso, / e testemunha o aceso/ de quem está no estado/ do arqueiro quando atira, / mais tenso que seu arco,/ foste ainda o fantasma/ que prelê o que faço,/ e de quem busco tanto/ o sim e o desagrado”.

Para lembrar Jorge Luis Borges, se há quem se jacte dos livros que escreveu, dou prazo aos céus pelos que li, embora tal circunstância não me iniba de transcrever o poema “Noturno leitor”, que julgo propício a esta ocasião em que presto um tributo ao livro e à leitura: Nocturne lecteur,/ mon semblable, mon frère: livros acendem luzes!/ Borges ou Baudelaire/ consome-nos energia. Custa uma fábula/ - em volts - / a leitura de p(Rosa) e de (Poe)sia.


Sérgio de Castro Pinto é professor e poeta

Chamava-se “Livraria do Bartolomeu”. Porém, mais do que do amigo Bartolomeu de Oliveira, a livraria pertencia a uma clientela que, se...


Chamava-se “Livraria do Bartolomeu”. Porém, mais do que do amigo Bartolomeu de Oliveira, a livraria pertencia a uma clientela que, se não era numerosa, era fiel. E melhor: escolhida a dedo. Ficava na Duque de Caxias, próxima à Praça Rio Branco, perto do edifício onde funcionava o Ministério da Fazenda, em que eu trabalhava como advogado da Delegacia do Serviço do Patrimônio da União.

Estou a vê-lo, vindo dos Correios, no sol a pino, carregando pacotes de livros. A calça, bem acima da cintura, diminuía ainda mais o tronco e encompridava as pernas. Mas, pernas mesmo, e de sete léguas, eram as dos livros que me permitiam, sem passaporte e muito menos vistos alfandegários, dar “a volta ao dia em oitenta mundos” com o menino impossível Jorge de Lima; com o alumbramento de Bandeira quando viu pela primeira vez uma moça nuinha em pelo; com a musicalidade de Cecilia Meireles ou com a sensibilíssima poesia racional de João Cabral de Melo Neto. E com as cigarras que, às cinco em ponto da tarde, nas árvores da Praça Rio Branco, recitavam o “Se”, de Kipling, fornecendo-me, nessas minhas idas e vindas entre o Ministério da Fazenda e a Livraria do Bartolomeu, o embrião da ideia que eu desenvolveria quase quarenta anos depois: “São guitarras trágicas. // Plugam-se/ se/ se/ se/ nas árvores/ Em dós sustenidos. // Kipling recitam a plenos pulmões. // Gargarejam/ vidros/ moídos. // O cristal dos verões”. (Poema “As Cigarras”, livro “Zoo imaginário”, Editora Escrituras, São Paulo, 2015).

Só eventualmente passo na Praça Rio Branco, mas, nessas poucas vezes, lembro alguns versos de “Elegia de Verão”, do poeta Manuel Bandeira: “O sol é grande. Ó coisas/ todas vãs, todas mudaves*./ (...) O sol é grande. Mas, ó cigarras que zinis, / Não sois as mesmas que eu ouvi menino. / Sois outras, não me interessais...// Deem-me as cigarras que eu ouvi menino”.

Já na casa dos setenta, faço coro com Manuel Bandeira: as cigarras que hoje zinem não são as mesmas que engarrafavam o canto e o explodiam – qual coquetel molotov – de encontro à tarde moída em vidro dos meus trinta e poucos anos. Ah, cigarras de hoje, deem-me as cigarras de antigamente, a Livraria do Bartolomeu e, sobretudo, o amigo Bartô, sobraçando/abraçando pacotes e mais pacotes de livros.

*Propositalmente, Bandeira emprega “mudaves” por “mudáveis”.


Sérgio de Castro Pinto é poeta e professor E-mail

Embora pertencesse à Geração 59, transitava com desenvoltura em todas as gerações, quer entre os que integravam as “Edições Caravelas...


Embora pertencesse à Geração 59, transitava com desenvoltura em todas as gerações, quer entre os que integravam as “Edições Caravelas”, quer entre os que compunham o “Grupo Sanhauá”. E tanto foi assim que, no “hall” do Teatro Santa Rosa, apresentou o meu livro de estreia: “Gestos lúcidos”. Título, aliás, contra o qual se insurgiu sob o argumento de que, depois de cinco ou seis talagadas de aguardente, a língua, entorpecida e trôpega, dificilmente o pronunciaria.

Naquele ano de 1967, Vanildo Brito não era o abstêmio que a enfermidade o obrigou a sê-lo, mas o boêmio de longas jornadas noite adentro, ora no “Bar do Chapéu”, ora no “Bar de Merêncio”, ou ainda em outras bibocas que ele descobria em suas andanças à margem da província.

Filósofo muitas vezes encharcado de questionamentos metafísicos, nem por isso deixou de se contagiar pela alma das ruazinhas boas e simples, distantes e esquecidas, da João Pessoa de três, quatro décadas atrás.

Quanto ao Vanildo poeta, diria que – na esteira dos versos de Carlos Drummond de Andrade – deixou de ser moderno para se tornar eterno. E o eterno, aqui, significa a sua opção por uma poesia de feitio clássico, apolíneo, imune a modismos ou outras coisas do gênero, pois, com efeito, à lírica do autor de “Selecta Carmina”, as vanguardas nada tinham a acrescentar. Vanguardas em termos do concretismo e seus desdobramentos, uma vez que, se abeberando em Jorge de Lima, sobretudo no de “Invenção de Orfeu”, a poesia de Vanildo possui algumas ressonâncias do Surrealismo, principalmente no seu livro de estreia, “A Construção dos mitos”.

Para mim, a melhor poesia de Vanildo Brito é aquela que se cumpre sem a necessidade de corroborar os sistemas filosóficos que ele postulava em salas de aula e através de ensaios veiculados no “Correio das Artes” ou outras publicações do gênero. E isso porque a poesia não precisa provar coisa alguma, do contrário seria um mero epifenômeno da história, das ciências, da filosofia, etc.

* * *

Diferentemente do que escreveu o amigo e poeta Marcos Tavares, Vanildo se candidatou, sim, a uma vaga na Academia Paraibana de Letras. Só que o seu jeito arredio, tímido, o indispunha a cabalar, a pedir o voto dos acadêmicos, como o fez o economista e político Aluísio Afonso Campos, vencedor da disputa. Quero crer, inclusive, que a sua candidatura decorreu muito mais da iniciativa de alguns amigos do que dele próprio, cujo temperamento anárquico, rebelde, sempre o situou num plano oposto ao de sua poesia, quase toda ela tributária da tradição.

* * *

Se, na juventude, foi o mentor e o artífice da Geração 59, mal ingressou na idade madura abdicou do sentimento grupal para se isolar cada vez mais da vida literária. Foi quando se entregou à tarefa de traduzir alguns poetas latinos e de reunir os poemas que integram o livro “Selecta Carmina” (Edições Linha D’Água, João Pessoa, 2007), lançado quando a “indesejada das gentes” já lhe movia o cerco. Tanto que, embora tenha composto “Moritura nave” por ocasião do falecimento de Archidy Picado, a quem, inclusive, dedicou esse poema no suplemento “Correio das Artes”, desta feita omite o oferecimento ao colega de geração para, quem sabe, travestir-se, ele mesmo, no navio que, “(...) De velas recolhidas, (...)/ está cansado e arqueja lento. / (...) não está naufragando. Nem sequer/ aderna. Morre apenas, carcomido/ lentamente, marcas de mar/ no seu corpo aderidas como/ fundos sinais de mortes e de vidas./ (...) Não há lamentos nem salgadas lágrimas/ sobre o seu corpo imenso e mudo.// Vive no sempre o onírico navio.

Improviso omoplatas já foram asas nas madrugadas de outrora hoje são asas amputadas cravadas nas minhas costas



Improviso

omoplatas já foram asas
nas madrugadas de outrora
hoje são asas amputadas
cravadas nas minhas costas

sapoti! sapoti! sapoti! morcego! morcego! morcego! amor cego por ti! amor cego por ti! amor cego por ti! não escrevi à faca o teu n...



sapoti! sapoti! sapoti!
morcego! morcego! morcego!
amor cego por ti!
amor cego por ti!
amor cego por ti!

não escrevi à faca
o teu nome
no tronco do sapotizeiro,
mas na raiz.

na mais profunda raiz de mim mesmo.

domiciliares

b) chegar em casa
é desatar nós
da gravata
aos
cadarços.

é deixar-me livre
dentro das chinelas
e fora do bridge.

é girar com os dedos
o bico dos teus seios
como um segredo
de caixa-forte.

é abrir-te
para os nós cegos
do meu amor

domiciliares

e) mergulhas a roupa
no tanque
e desentranhas
os vestígios das ruas,
das ruelas,
dos becos e vias
de muitas mãos
paralelas
à mão única do meu amor.

língua

espada fora da bainha.

crista de galo
na rinha
dos lábios.

fogo chovendo no teu molhado.

nômade

acha que atritas,
o meu falo queima.

somos trogloditas
descobrindo o fogo.

crescem labaredas.

sob a braguilha,
armo uma tenda
com a minha glande.

e o meu falo nômade
rumo à tua fenda
levanta acampamento.

à queima-roupa

nua, ateias fogo
às minhas vestes
e o teu corpo despe-me
em carne viva.

ciúme

deito o meu ouvido no teu peito
e ouço o batuque de uma tribo
no tambor de olvido do teu coração

avenida dos tabajaras (III)

os teus seios
eram frutos
de um jambeiro.

e se os tocava,
o teu rosto
(vermelho)

era o pólen
e a lava

de mil jambeiros
acendendo-me
na avenida dos tabajaras.

O bode o que escrever sobre o bode? compor-lhe uma ode? dizer que o seus chifres despontam na testa como duas raízes brotando da ...



O bode

o que escrever sobre o bode?

compor-lhe uma ode?

dizer que o seus chifres
despontam na testa
como duas raízes
brotando da terra?

que é irmão siamês
dos seixos, da poeira,
das pedras?

que é duro na queda?

que o bode é antes de tudo um forte?

ou que, quando bale,
é todo ternura,
torrão de açúcar
desmanchando-se em candura?



Cemitério de automóveis

não me comovem
as insepultas carcaças
dos automóveis,

mas quão céleres
os passageiros
se precipitam
no despenhadeiro

dos breves dias sem freio.



O caranguejo

elmo de um guerreiro medievo.

estojo de um par
de olhos
em riste

como dois dedos míopes,
quase cegos,
tateando pelo avesso
um mundo destro.

ser dialético, canhoto,
osso e carne,
bicho barroco,

vive entre o ser e o não ser.

em terra firme,
no mangue
ou no mar alto,

radiografia de um esqueleto acuado.


Para utilizar de uma expressão de Antônio Carlos Secchin sobre João Cabral de Melo Neto, direi que Amador Ribeiro Neto é um “poeta do men...




Para utilizar de uma expressão de Antônio Carlos Secchin sobre João Cabral de Melo Neto, direi que Amador Ribeiro Neto é um “poeta do menos”, uma vez que investe – como o faz neste “Poemail” (Editora Patuá, São Paulo, 2019) e nos livros anteriores – numa linguagem ideográfica, icônica, semiótica, ao tempo em que, ainda na esteira do Concretismo, explora o espaço em branco do papel e atribui voz ao silêncio, tornando-o substantivo, antirretórico por excelência.

Vale ressaltar que Cabral e Amador ocupam espaços próprios no contexto da poesia brasileira, embora o ato de escrever consista num procedimento dialógico, numa conversa a muitas vozes, que ora se rejeitam, ora se assimilam, formando um burburinho no qual fica difícil delimitar onde começa a voz de um poeta e onde termina a do outro.

Em última análise, Cabral é um dos poetas das “afinidades eletivas” de Amador, assim como o foram, do poeta pernambucano, Murilo Mendes e Drummond. Já o Concretismo, é a maior referência de Amador Ribeira Neto para a criação de sua obra poética.

Com “Poemail”, escrito quase todo ele sob a égide do racionalismo, o autor
sofre o risco de ser considerado um poeta desprovido de sentimentos, como se a inteligência que preside e rege a sua poesia não representasse uma prova cabal, eloquente, da mais pura sensibilidade.

Outra de suas recorrências estilísticas é a de não fazer concessões ao fácil, a de escrever criando dificuldades, sem contorná-las, isto é, sem sair pela tangente, já que o próprio ato de escrever, para ele, “(...) se transforma, paradoxalmente, em um método de evitar a poesia”. Ou seja, de embargar a poesia enquanto efusões meramente sentimentais, tão
ao gosto daqueles que – nunca é demais repetir – regam as flores da retórica com o orvalho da inspiração, mas descuram do lastro imprescindível, tonificante, da linguagem.

Pois bem. Amador, corroborando o sábio conselho de Verlaine, “torce o pescoço da eloquência”, o que repercute negativamente junto ao leitor afeito a fruir um tipo de literatura “sorriso da sociedade”, de mero e fugaz entretenimento.

“Poemail”, enfim, não é um livro para principiantes.

A poesia de João Cabral de Melo Neto é tributária dos artistas plásticos aos quais louvou em poemas quase todos de extração metalinguística...


A poesia de João Cabral de Melo Neto é tributária dos artistas plásticos aos quais louvou em poemas quase todos de extração metalinguística, questionando não só a linguagem pictórica dos artistas como também a sua própria concepção da fenomenologia poética.

Com efeito, no ensaio sobre Jon Miró, ele não discorre apenas sobre os mecanismos de criação desse artista natural da Catalunha, mas também a propósito da elaboração dos poemas de sua própria lavra. Aliás, mais do que sobre Miró, esse ensaio trata a respeito do construto poético do autor pernambucano, do mesmo modo que, quando fala sobre a morte dos outros, fala sobre a sua própria morte. Aqui, vale registrar um episódio narrado pelo autor de "Educação pela pedra": "Levei-lhe (ao psicanalista espanhol López Ibor) o volume 'Duas águas' que ele leu e comentou dizendo: 'O que me impressiona é a sua obsessão pela morte'. Eu retorqui: A morte de que eu falo não é a rilkeana, é a morte social, do miserável na seca, no mangue, não é a minha. E ele disse-me uma coisa engraçada: 'Aí é que o senhor se engana: o senhor fala em morte social para exorcizar o seu medo da morte'", E concluiu João Cabral: "Realmente tenho muito medo da morte".

Julgando-se um poeta impessoal, antilírico por excelência, um poeta que escrevia a contrapelo, João Cabral cultivava uma poesia cujo solipsismo era atenuado, disfarçado, na medida em que, aparentemente falando sobre os outros, falava a respeito de si mesmo, Que o digam, no plano da linguagem, os poemas através dos quais dialoga com Cesário Verde, Graciiano Ramos, Quevedo, Francis Ponge, Valéry, Mondrian, Le Corbusier...

Inclusive, até mesmo no simples, prosaico, cotidiano gesto de catar feijão, Cabral estabelece um cotejo, uma analogia, com o seu modo de escrever. Também no desempenho de alguns toureiros na arena, ele encontra similitude com a sua arte poética: "(...) sim, eu vi Manoel Rodriguez,/ Monolete, o mais asceta,/ não só cultivar sua flor/ mas demonstrar aos poetas: // como domar a explosão/ com mão serena e contida./ sem deixar que se derrame/ a flor que traz escondida,// e como, então, trabalhá-la/ com mão certa, pouco e extrema: / sem perfumar sua flor,/ sem poetizar seu poema".

Ouso afirmar que, embora a crítica o considere um antilírico por natureza, ele possui, contraditoriamente, uma das características primordiais do poeta lírico: é incapaz de se "outrar", como diria Vitor Manuel de Aguiar e Silva.

Mas a prova maior da interferência do olhar, do visual, na sua dicção poética - não tivesse, ainda, o movimento Concretista se abeberado de sua poesia -, pode ser mensurada a partir daquele que muitos consideram o seu último poema, concebido quando já estava praticamente cego: "Pedem-me um poema, / um poema que seja inédito,/ poema é coisa que se faz vendo,/ como imaginar Picasso cego?// Um poema se faz vendo,/ um poema se faz para a vista,/ como fazer um poema ditado/ sem vê-lo inscrita?// Poema é composição,/ mesmo da coisa vivida,/ um poema é o que se aruma/ dentro da desarrumada vida.// Por exemplo, é como um rio,/ por exemplo o Capibaribe, / em suas margens domado/ para chegar ao Recife. // Onde com o Beberibe,/ o Tejipió, Jaboatão,/ para fazer o Atlântico,/ todos se juntam a mão. // Poema é coisa de ver,/ é coisa sobre um espaço,/ como se vê um Franz Weissman,/ como se ouve um quadro".

*Hoje, dia 09 de outubro, exatamente vinte anos da morte de João Cabral de Melo Neto"

(Sérgio de Castro Pinto e Carlos Romero) URBANO (Sérgio de Castro Pinto) ah estes cães vira-latas que andam determinados pelas ruas...


(Sérgio de Castro Pinto e Carlos Romero)

URBANO
(Sérgio de Castro Pinto)

ah estes cães vira-latas
que andam determinados
pelas ruas da cidade
e as conhecem palmo a palmo
na palma das patas
nas antenas do faro
na ponta da língua que
dobra e desdobra
as esquinas
de cor e salteado

ah estes vira-latas tão orientados
nada sabem do meu coração
que vive aos sobressaltos
e bate na contramão
no colapso do tráfego
adernando
adernando
cargueiro encalhado



HOMENS DE NEGÓCIO
(Carlos Romero)

Foi então, que vi
caminhando à nossa frente,
num passinho miúdo e ligeiro,
um vira-lata.

E ia apressado,
como se tivesse
um compromisso urgente,
talvez uma reunião importante da classe.

Notei que ele caminhava
sem olhar para os lados,
a não ser quando encontrava
um saco de lixo.

Tenho certeza que não viu o mar
que estava uma beleza, prateado
pela lua cheia.

Também não levantou
o olhar para o firmamento,
onde o céu estava
cheio de estrelas.

O nosso companheiro
não se conscientizou
das maravilhas que o rodeavam.
Só olhava para frente.
Para frente e para baixo.

E ia com tanta pressa,
que me fez lembrar
um prosaico executivo,
desses, que não têm tempo a perder.
Que vivem com os olhos no relógio
e os ouvidos no celular.

esta lua turca cai feito uma luva na praia da urca, na pedra da gávea. esta lua cheia é um túrgido ubre espargindo leite sobre a madruga...


esta lua turca cai feito uma luva
na praia da urca, na pedra da gávea.
esta lua cheia é um túrgido ubre
espargindo leite sobre a madrugada.
pálida e sem luz esta lua minguante
é leite com água, chama dos amantes.

candeeiro de luz bruxuleante,
hóstia andante de uma irmã de caridade,
esta lua é o branco marfim de um elefante
perfurando do céu o toldo estrelado,
mastodonte manso, pacificado,
urinando gotas de luar no gozo
dos amantes tristes e extenuados.

esta lua é o osso adamantino dos cachorros
que a farejam como detetives loucos,
noite e dia, dia e noite, a toda hora,
lambendo os dedos róseos da aurora.

...
lua dos haicais, amassada pelas águas.
lua que flagra o súbito peixe-espada
esgrimindo no ar a lâmina prateada.

esta lua ilumina a copa dos cajueiros
onde os ventos alíferos, ligeiros,
com dedos de hábil carpinteiro,
envernizam as castanhas, rolimãs
que giram, enluarados seixos,
castanholas que estalam, tatalam,
batendo de frio o impaludado queixo.

lua que se banha numa poça de piche,
nada há que a tisne, seja o azeviche
ou a lama, continua lua-alvaiade,
lua-cisne, lua-argêntea, lua-porcelana.

louça louçã, esta lua já entornou a via láctea
nos olhos abertos dos que hoje dormem
(sob mil pálpebras) o sono de pedra das estátuas.

lua-amazona, que com a roseta das estrelas
esporeia o negro ventre da poldra desvairada,
que relincha, resfolega, bate os cascos inquieta,
luzindo uma branca lua de pelos sobre a testa.

luas espetadas, roletes de cana, de néctar,
redondas, feéricos buquês das namoradas.

lua das canoas do parque, transatlânticos
singrando as águas da infância, indo
muito além da taprobana e de pasárgada.

esta lua é a gambiarra da ponta do seixas,
ribalta em que as espumas das ondas
são brancas lãs de ovelhas tosquiadas,
balindo, balindo mansas, na beira da praia.

raios de lua extraviados são filhos enfurecidos,
proscritos, exilados, raios que ribombam –
ventríloquos – pela garganta do trovão.
nos céus do inverno, relâmpagos espionam,
emissários do verão.

E m mãos o mais recente livro do amigo e colega da Academia de Letras, Sérgio de Castro Pinto, intitulado “A flor do gol”, vindo à luz, just...

Em mãos o mais recente livro do amigo e colega da Academia de Letras, Sérgio de Castro Pinto, intitulado “A flor do gol”, vindo à luz, justamente, por ocasião da recente Copa do Mundo. Foi-se a Copa e ficou o livro para nos deliciar com seu criativo e inteligente texto.

E o poeta começa o livro se referindo aos saudosos dribles de Garrincha, que tanto irritaram os adversários do gramado, graças aos “parêntese das pernas tortas”, como descreve Sérgio.

Mas o autor não fica atrás com seus dribles de linguagem e vai ouvir os animais, o que me faz lembrar do seu antológico “Zoo imaginário”, um livro que li e depois fui comprová-lo na visita que fiz ao Taronga, o famoso Zoológico de Sidney, na Austrália.

E eis aqui o nosso poeta olhando o miúdo e incansável caminhar das formigas, carregando folhas mortas. Ora, como Sérgio sabe ver o que muita gente olha e não vê. Bem dizia o mestre Machado de Assis que a vantagem dos míopes é que vêem, onde as grandes vistas não alcançam.

O poeta também vira cronista, no poema Urbano, ao acompanhar a caminhada de um vira-latas pela calçada da cidade que ele conhece na palma das patas.

No poema Exílio, a sensibilidade de Sérgio chega ao auge. Poucos, muito poucos mesmo, ao verem um móvel de madeira numa sala, fazem as reflexões sobre a árvore donde veio aquela madeira. “A árvore que foi (no exílio da sala)”. É o caso de dizer: na linguagem de Sérgio, a filosofia, muitas vezes, se alia à poesia.

Afinal ver bem é ver em profundidade. É ver o que o olhar comum das pessoas não vê, o que passa despercebido pela maioria.

Ora, fazer poesia num campo de futebol, ver o gol como uma folha seca, só mesmo um Sérgio, com sua sensibilidade, sua imaginação fértil, sua inteligência refinada, sua acuidade lírica.

E para concluir, destaquemos que “A flor do gol” tem embasados pronunciamentos dos mestres João Batista de Brito e Hildeberto Barbosa Filho, o que valoriza ainda mais o livro.