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Durante um certo período, a crônica foi considerada um gênero de quem jogava conversa fora. Pouco a pouco, porém, parte do público lei...

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Durante um certo período, a crônica foi considerada um gênero de quem jogava conversa fora. Pouco a pouco, porém, parte do público leitor deixou de fazer ouvidos moucos e passou a ser todo ouvidos para os que investiam nessa modalidade literária. Adquirindo, pois, um certo prestígio, uma certa reputação, além de ser considerado um gênero que deitou raízes profundas no solo brasileiro, nele se adaptando e ganhando cidadania, arregimentou muitos adeptos, desde José de Alencar, passando por Machado de Assis, João do Rio, até chegar a Rubem Braga, Fernando Sabino, Eneida, Raquel de Queiroz, Paulo Mendes Campos, Veríssimo e muitos outros. Hoje, o gênero está plenamente consolidado, decorrendo daí o prestígio que desfruta entre críticos e leitores.

Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, já advertia: “(...) a função do livro infantil é fazer compreender às crianças que a leitur...

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Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, já advertia: “(...) a função do livro infantil é fazer compreender às crianças que a leitura não é um dever mas um prazer”. E mais adiante: “(...) que a leitura é o mais movimentado, o mais variado, o mais engraçado dos brinquedos”.

Eu não gosto da junção de palavras que, por força do uso, da repetição, dissemina o lugar-comum, o já lido e relido, os clichês, os chavões...

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Eu não gosto da junção de palavras que, por força do uso, da repetição, dissemina o lugar-comum, o já lido e relido, os clichês, os chavões, o dejà vu. Antes, gosto dos paralelos insólitos, das palavras ou dos temas que só aparentemente se repelem. Enfim, gosto da poesia e da ficção que guardem uma certa semelhança com a loja de belchior do conto do “Bruxo de Cosme Velho”, onde convivem objetos heteróclitos, desencontrados, mas que se compõem e se complementam: panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, caixilhos, binóculos, um cão empalhado, dois cabides...*

Jovem ainda, Astier Basílio deixou de ser apenas uma promessa, uma revelação, para se firmar como um poeta que reservará boas surpresas ao ...

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Jovem ainda, Astier Basílio deixou de ser apenas uma promessa, uma revelação, para se firmar como um poeta que reservará boas surpresas ao público leitor. E boas surpresas a partir mesmo deste “Antimercadoria”, cuja epígrafe bem que poderia ser os seguintes versos de Jorge de Lima: “Se vós não tendes sal-gema, / não entreis neste poema”. E isso por uma razão muito simples: Astier não faz qualquer tipo de concessão no sentido de que a sua poesia se transforme num bem de consumo. Pois, na verdade, torná-la palatável, acessível, seria nivelá-la ao gosto daqueles que só compram livros cuja leitura não ofereça nenhum grau de dificuldade. Poesia-prato-feito. Pior ainda: como alimento já mastigado que a mamãe-índia servia ao seu curumim. E Astier sabe que não convém tratar o leitor como um curumim. E, muito menos, se comportar - na condição de poeta – como uma dadivosa mamãe-índia.

A frase é meio batida, surrada até, mas foi a que me ocorreu quando da leitura do livro “Harpia”, de Aline Cardoso: “Hay que endurecerse, p...

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A frase é meio batida, surrada até, mas foi a que me ocorreu quando da leitura do livro “Harpia”, de Aline Cardoso: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Seja ou não da autoria de Che Guevara, a mim apenas importa que poderia servir de epígrafe para o livro, uma vez que encerra, condensa, a atmosfera da maioria dos poemas que o compõem. Poemas fortes, incisivos, diria quase aforismáticos, e que aprofundam o conflito entre a “vida vivida e a vida pensada”, pois já não disse Oscar Wilde que, “Para a maioria de nós, a vida real é a vida que não vivemos?”

Ângela Bezerra de Castro não escreve com o propósito de demonstrar conhecimento, embora seja uma erudita sem “erudição”. Aliás, ela e os qu...

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Ângela Bezerra de Castro não escreve com o propósito de demonstrar conhecimento, embora seja uma erudita sem “erudição”. Aliás, ela e os que verdadeiramente dominam as muitas vertentes da teoria literária, da história da literatura etc., evitam não só a utilização de termos absconsos, abstrusos, que dificultem a compreensão do leitor, como também disfarçam “o profundo conhecimento das teorias literárias, (...) para mostrar (...) o entendimento, a reflexão, o conhecimento amadurecido na leitura dos escritores da melhor cepa”.

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Juarez da Gama Batista
Diria que Ângela é fruto da consorciação da crítica, da ensaísta e da professora, esta última uma das principais responsáveis pela inclusão do autor paraibano em sala de aula. E isso numa época em que os ensaístas da província somente se mostravam receptivos aos autores canônicos. Que o diga Juarez da Gama Batista, estudioso da obra de Gilberto Freyre, Jorge Amado, José Lins do Rego e outros.

Já outro ensaísta, Virgínius da Gama e Melo, só eventualmente escrevia sobre a produção literária paraibana, como o fez a respeito da Geração 59 e do poeta Jomar Moraes Souto, cujo prefácio da 1ª edição do livro “Itinerário lírico da cidade de João Pessoa”, foi de sua autoria. Mesmo assim, aqui e acolá, saudava os novos autores que surgiam, mostrando-se benevolente com os estreantes, talvez movido pela intenção de incentivá-los no enfrentamento dos caminhos sempre árduos da literatura.

Geraldo Carvalho, este era uma exceção, pois além de dirigir uma editora artesanal – “Caravela” –, responsável pela publicação dos então jovens autores José Leite Guerra, Maria José Limeira, Jurandy Moura e Archidy Picado, acompanhava passo a passo a produção literária da época, resenhando-a na coluna semanal “Pro-textos”, que mantinha no jornal “Correio da Paraíba”.

Virginius, pela sua condição de professor de Teoria da Literatura, bem que poderia ter adotado os autores paraibanos em sala de aula, mas não o fez. Geraldo, talvez o fizesse, mas não exercia o magistério.

Por outro lado, na medida em que procurava descobrir as recorrências estilísticas e temáticas dos autores federais, estaduais e municipais, Ângela não fazia distinção entre eles, pois procedia de modo a demonstrar que Augusto dos Anjos, José Lins do Rêgo, Vanildo Brito, J. J. Torres, Natanael Alves, Juarez da Gama Batista, Eduardo Martins, Aurélio de Albuquerque, entre outros, eram autores de suas “afinidades eletivas”. Daí, com muita propriedade, Luiz Augusto Crispim ter observado que “Ângela Bezerra de Castro desencantou o escritor paraibano”.

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Ângela Bezerra de Castro
Ainda com relação à Ângela, quando ela faz a leitura de um texto, só posteriormente o submete às muitas teorias das quais se abastece, escolhendo, numa etapa seguinte, a que melhor se presta à exegese do poema ou da prosa de ficção. Em suma, o seu tipo de abordagem é reivindicado pelo próprio texto, diferentemente dos críticos e ensaístas que, a reboque de teorias mal assimiladas, adotam, de maneira apriorística, os mesmíssimos modelos de análise aos quais submetem os mais diferentes mecanismos de criação.

Todo e qualquer crítico ou ensaísta, por mais aparelhado teoricamente que seja, contém a sua porção impressionista, embora o impressionismo seja demonizado por muitos que, obstinada e cegamente, não reconhecem os momentos de absoluto rigor reflexivo do pernambucano Álvaro Lins, um dos mais legítimos representantes dessa vertente crítica.

Em outras palavras, eu diria que o crítico não deve se munir apenas da teoria, mas também da “intuição”, espécie de impressionismo que longe de se originar de um insight ou de uma epifania, provém da experiência acumulada do leitor voraz e veraz que todo crítico que se preza o é, a exemplo de Ângela Bezerra de Castro, conforme ratificam a sua obra anterior e o seu livro mais recente, “Um Certo modo de ler”.


Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta, membro da APL

O leitor ávido por peripécias talvez conclua, equivocadamente, que “Liturgia do fim” tem palavras de mais em um enredo de menos. Mas o fato...

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O leitor ávido por peripécias talvez conclua, equivocadamente, que “Liturgia do fim” tem palavras de mais em um enredo de menos. Mas o fato é que esse é um livro cujo principal protagonista é a linguagem, responsável pela condução de um enredo simples, frugal, mas que ganha em densidade na medida em que o narrador Inácio Boaventura mergulha de ponta-cabeça no seu universo psicológico.

Poemas soltos e livres, os de Vitória Lima. Por isso mesmo, podem dar a falsa impressão de que a autora procede com desleixo no que tange a...

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Poemas soltos e livres, os de Vitória Lima. Por isso mesmo, podem dar a falsa impressão de que a autora procede com desleixo no que tange ao aspecto formal de cada um deles. Ledo engano, pois, fosse assim, Vitória não teria publicado apenas dois livros – “Anos bissextos” e “Fúcsia” –, ambos magrinhos, enxutos, esbeltos, como magrinhos, enxutos e esbeltos são a maioria quase absoluta dos poemas que os compõem. Quero dizer: a produção quase bissexta de Vitória já confirma e chancela o seu rigor e a sua disciplina na elaboração do poema.

antagonismo: máquina de fotografia/revólver a máquina é o revólver ao inverso: os objetos-bala não saem, eles entram, se internam.

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antagonismo: máquina de fotografia/revólver

a máquina
é o revólver ao inverso:
os objetos-bala não saem,
eles entram, se internam.

poema eis a fórmula ou a forma: a água fura a rocha e assim faço o meu poema. um poema-lâmina (contundente) que esmigalhe e esf...

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poema


eis a fórmula
ou a forma:
a água
fura a rocha
e assim faço
o meu poema.

ambiente de leitura carlos romero sergio de castro pinto poema a ilha na ostra flavio tavares 50 anos de poesia
um poema-lâmina
(contundente)
que esmigalhe
e esfarele
como se fora
um dente.

não um poema
com o azul
da blue-blade,
mas um poema
que sangre
as maçãs da face.

um poema-lâmina
que prove e triture
as maçãs do rosto
com a mesma fome
e com o mesmo gosto
com que o primeiro homem
provou da maçã do paraíso.

este será o seu ofício:
ser lâmina e penetrar
e ferir e dissecar
e ir sempre além
do que se pode ir.

ambiente de leitura carlos romero sergio de castro pinto poema a ilha na ostra flavio tavares 50 anos de poesia
repudio o azul
de outras lâminas
diante do rosto
e do espelho
o meu poema
é uma lâmina
escura e cega
que abre sulcos
e impõe o medo
da descoberta
frente ao espelho.

da descoberta
que cada berlinense
só tem uma face
e que a outra lhe falta
quando de manhã
ao barbear-se.

da descoberta
que mesmo de frente
o berlinense
é de perfil
e que há entre
o oriental e o ocidental
um limite, uma divisão
de cimento, areia e cal.

O meu poema
poderia ser azul
como outras lâminas
mas isto cansa-me
e esqueço o lirismo
de poder dizer
que do azul da lâmina
saíram gaivotas,
verão e istmos.

ambiente de leitura carlos romero sergio de castro pinto poema a ilha na ostra flavio tavares 50 anos de poesia
meu poema não é istmo
pois nada une
apenas faz ver
de tudo a distância
e por isto é gume
e por isto é lâmina
e se quiserem
esterco, estrume,
que aduba a memória
frente ao espelho
e impõe a descoberta
de outras faces
partidas ao meio.

meu poema não é istmo,
isto nem aquilo,
meu poema é sabre e sabe
onde corre o rio
e onde incorre o risco
da descoberta de cada um
e por isto provoca
e rasga cortes
na superfície lisa
de cada um.

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"A Ilha na Ostra
O poema desta publicação faz parte do livro “A ilha na ostra“, de autoria do poeta Sérgio de Castro Pinto, editado há 50 anos, em 1970, pelo Grupo Sanhauhá, com capa ilustrada pelo artista plástico Flávio Tavares.


Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta

De como o magro é continuação do gordo A Stan Laurel e Oliver Hardy o magro no gordo existe como uma roupa existe no cabide.

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De como o magro é continuação do gordo
A Stan Laurel e Oliver Hardy

o magro
no gordo existe
como uma roupa
existe no cabide.

Mal comparando, o meu livro “O Leitor que escreve” (Editora Arribaçã, Cajazeiras, Paraíba, 2020) guarda alguma semelhança com o centão, re...

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Mal comparando, o meu livro “O Leitor que escreve” (Editora Arribaçã, Cajazeiras, Paraíba, 2020) guarda alguma semelhança com o centão, recurso poético do qual se vale o autor para, extraindo versos de vários poemas de sua própria lavra, conceber um novo (?) poema, como o fez Manuel Bandeira com “Antologia”, cujo título, etimologicamente, significa recolho das melhores flores, ou, no caso, dos melhores poemas.

O autor Carlos Drummond de Andrade não era tão “gauche” quanto o eu lírico do “Poema de sete faces”: “Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida”. C...

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O autor Carlos Drummond de Andrade não era tão “gauche” quanto o eu lírico do “Poema de sete faces”: “Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida”. Com efeito, embora timidamente, por vias oblíquas, de acordo com o seu temperamento discreto, recatado, bem que ele cuidou, aplicadamente, da posteridade da sua poesia. Para tanto, lançou mão de um certo histrionismo para asfaltar o caminho de sua obra poética. Aliás, o simples fato de viver, durante um período, distante dos refletores, dos microfones da mídia, mais o expunha do que o escondia. Criou um tipo, como também o criaram J. D. Salinger e Dalton Trevisan, ambos reclusos num anonimato que tinha lá uma certa eficácia em termos de publicidade. E o que dizer do Jean Paul Sartre que recusou o Prêmio Nobel de Literatura? Que, não o aceitando, ganhou mais evidência, mais notoriedade.

A ARAPONGA A Sérgio Faraco carcereira, abre a lingueta da garganta e aperta-me o cerco: o canto que a liberta dos ferros

sergio de castro pinto poemas animais ambiente de leitura carlos romero



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A ARAPONGA

A Sérgio Faraco

carcereira,

abre a lingueta

da garganta


e aperta-me o cerco:


o canto

que a liberta

dos ferros

Adler, o meu amigo e cunhado, foi um menino grande. Um grande menino. Gostava de frequentar mais os ambientes públicos do que os espaços as...


Adler, o meu amigo e cunhado, foi um menino grande. Um grande menino. Gostava de frequentar mais os ambientes públicos do que os espaços asfixiantes das casas. Daí o seu jeito flâner, a predileção pelos feriados nacionais, pelas festas das padroeiras, a exemplo das de Nossas Senhoras das Neves e da Luz, sobretudo esta última, guarabirense de boa cepa que ele o foi.

comunhão livros crepitam no forno das estantes livros são pães ...


comunhão

livros
crepitam
no forno
das estantes

livros
são pães
eucarísticos
crocantes


A boa leitura sempre consistiu, para mim, numa espécie de revolução silenciosa. Dela, sempre saí diferente de quando entrei. Ou seja, mal concluo a última frase de um romance ou o último verso de um poema, sinto-me com uma nova percepção da vida e do mundo. Pena que nem todos pensem assim e tratem o escritor, sobretudo o poeta, com um certo ar de mofa e de desdém. Isso sem falar que os editores e os livreiros discriminam a poesia, gênero literário que dificilmente é exposto nas vitrines das livrarias, mas, quase sempre, escondido nas últimas prateleiras, nos locais mais longínquos e ermos. Tanto que, quando encontro numa livraria alguém de joelhos, numa posição genuflexa, não tenho dúvida: esse alguém está à cata de um livro de poesia. É um leitor de poesia. E dos bons!

Sobre o livro, escreve João Cabral de Melo Neto: “(...) modesto: só se abre se alguém o abre”. Pois bem. Nestes meus 60 anos de vida, outra coisa não fiz senão abrir livros, devassá-los e gozar de sua intimidade. Não somente livros, mas tudo o que, feito de papel e tinta, me caísse às mãos: jornais, revistas, gibis, almanaques, e até mesmo um vetusto tomo de um médico alemão de cuja leitura o meu pai – jornalista, hipocondríaco e completamente leigo em medicina – extraía conclusões estapafúrdias para “diagnosticar” os achaques e as mazelas do filho único que eu sou e continuo sendo. O livro, que povoou a minha infância e parte da minha adolescência, denominava-se, salvo engano, O Conselheiro Médico do Lar.

os livros quase sempre encerram uma espécie de “invenção da verdade”
Li, e ainda hoje leio, bulas de remédios, receitas culinárias e “fórmulas de preparado para pele”, como o fez – no caso destas últimas – o poeta Manuel Bandeira para encontrar os caminhos tortuosos e íngremes do verso livre, segundo ele uma conquista difícil, pois, situando-se na confluência do parnasianismo com o simbolismo, habituara-se, naturalmente, quase sem esforço, ao ritmo metrificado e às formas fixas dessas duas correntes da lírica brasileira.

A minha primeira leitura foi um livro de crônicas do meu pai, cujo narrador – um menino na década de 1930 – discorria a propósito do conflito entre liberais e perrepistas. Eram crônicas lidas ao sabor de uma profunda nostalgia, sentimento estranho para uma criança que, ainda sem passado, sentia uma saudade atávica do menino antigo que fora o seu pai. Daí para também escrever as minhas “memórias” foi um passo, apenas com uma diferença: impossibilitado de explorar o tempo pretérito, de convertê-lo em matéria bruta do meu texto, não me restou alternativa senão inventá-lo. O que o fiz, inconscientemente, na esteira do verso de Manuel Bandeira: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Só que, nessa fase, eu não tinha uma vida inteira, como não a tenho até hoje, que a vida jamais se completa e é inteira, por mais larga e comprida que seja.

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Oscar Wilde
Aprendi, a partir de então, que uns mais, outros menos, os livros quase sempre encerram uma espécie de “invenção da verdade”. E que esta, mesmo de forma velada, sub-reptícia, denota o inconformismo do escritor diante do mundo, o conflito que se estabelece entre “a vida vivida e a vida pensada”, pois já não disse Oscar Wilde que, “para a maioria de nós, a vida real é a vida que não vivemos”? Cumpre-nos vivê-la, então, pela leitura. Mas, principalmente, disseminar a leitura, pois o leitor “sozinho não tece uma manhã”.

O fato é que, de leitura em leitura, terminei por me engajar nessa “guerra sem testemunhas” que é o ato de escrever, não obstante, mesmo se isolando no escritório e dentro de si mesmo, o escritor sempre disponha de aliados: os oficiais do mesmo ofício com os quais mantém “afinidades eletivas”. Que o diga João Cabral de Melo Neto, no poema “A Willy Levin morto”, do livro Museu de Tudo: “Se escrevemos pensando/ como nos está julgando/ alguém que em nosso ombro/ dobrado, imaginamos, / e é o primeiro que assiste/ ao enredado e incerto/ que é como no papel/ se vai nascendo o verso, / e testemunha o aceso/ de quem está no estado/ do arqueiro quando atira, / mais tenso que seu arco,/ foste ainda o fantasma/ que prelê o que faço,/ e de quem busco tanto/ o sim e o desagrado”.

Para lembrar Jorge Luis Borges, se há quem se jacte dos livros que escreveu, dou prazo aos céus pelos que li, embora tal circunstância não me iniba de transcrever o poema “Noturno leitor”, que julgo propício a esta ocasião em que presto um tributo ao livro e à leitura: Nocturne lecteur,/ mon semblable, mon frère: livros acendem luzes!/ Borges ou Baudelaire/ consome-nos energia. Custa uma fábula/ - em volts - / a leitura de p(Rosa) e de (Poe)sia.


Sérgio de Castro Pinto é professor e poeta

Chamava-se “Livraria do Bartolomeu”. Porém, mais do que do amigo Bartolomeu de Oliveira, a livraria pertencia a uma clientela que, se...


Chamava-se “Livraria do Bartolomeu”. Porém, mais do que do amigo Bartolomeu de Oliveira, a livraria pertencia a uma clientela que, se não era numerosa, era fiel. E melhor: escolhida a dedo. Ficava na Duque de Caxias, próxima à Praça Rio Branco, perto do edifício onde funcionava o Ministério da Fazenda, em que eu trabalhava como advogado da Delegacia do Serviço do Patrimônio da União.

Estou a vê-lo, vindo dos Correios, no sol a pino, carregando pacotes de livros. A calça, bem acima da cintura, diminuía ainda mais o tronco e encompridava as pernas. Mas, pernas mesmo, e de sete léguas, eram as dos livros que me permitiam, sem passaporte e muito menos vistos alfandegários, dar “a volta ao dia em oitenta mundos” com o menino impossível Jorge de Lima; com o alumbramento de Bandeira quando viu pela primeira vez uma moça nuinha em pelo; com a musicalidade de Cecilia Meireles ou com a sensibilíssima poesia racional de João Cabral de Melo Neto. E com as cigarras que, às cinco em ponto da tarde, nas árvores da Praça Rio Branco, recitavam o “Se”, de Kipling, fornecendo-me, nessas minhas idas e vindas entre o Ministério da Fazenda e a Livraria do Bartolomeu, o embrião da ideia que eu desenvolveria quase quarenta anos depois: “São guitarras trágicas. // Plugam-se/ se/ se/ se/ nas árvores/ Em dós sustenidos. // Kipling recitam a plenos pulmões. // Gargarejam/ vidros/ moídos. // O cristal dos verões”. (Poema “As Cigarras”, livro “Zoo imaginário”, Editora Escrituras, São Paulo, 2015).

Só eventualmente passo na Praça Rio Branco, mas, nessas poucas vezes, lembro alguns versos de “Elegia de Verão”, do poeta Manuel Bandeira: “O sol é grande. Ó coisas/ todas vãs, todas mudaves*./ (...) O sol é grande. Mas, ó cigarras que zinis, / Não sois as mesmas que eu ouvi menino. / Sois outras, não me interessais...// Deem-me as cigarras que eu ouvi menino”.

Já na casa dos setenta, faço coro com Manuel Bandeira: as cigarras que hoje zinem não são as mesmas que engarrafavam o canto e o explodiam – qual coquetel molotov – de encontro à tarde moída em vidro dos meus trinta e poucos anos. Ah, cigarras de hoje, deem-me as cigarras de antigamente, a Livraria do Bartolomeu e, sobretudo, o amigo Bartô, sobraçando/abraçando pacotes e mais pacotes de livros.

*Propositalmente, Bandeira emprega “mudaves” por “mudáveis”.


Sérgio de Castro Pinto é poeta e professor E-mail

Embora pertencesse à Geração 59, transitava com desenvoltura em todas as gerações, quer entre os que integravam as “Edições Caravelas...


Embora pertencesse à Geração 59, transitava com desenvoltura em todas as gerações, quer entre os que integravam as “Edições Caravelas”, quer entre os que compunham o “Grupo Sanhauá”. E tanto foi assim que, no “hall” do Teatro Santa Rosa, apresentou o meu livro de estreia: “Gestos lúcidos”. Título, aliás, contra o qual se insurgiu sob o argumento de que, depois de cinco ou seis talagadas de aguardente, a língua, entorpecida e trôpega, dificilmente o pronunciaria.

Naquele ano de 1967, Vanildo Brito não era o abstêmio que a enfermidade o obrigou a sê-lo, mas o boêmio de longas jornadas noite adentro, ora no “Bar do Chapéu”, ora no “Bar de Merêncio”, ou ainda em outras bibocas que ele descobria em suas andanças à margem da província.

Filósofo muitas vezes encharcado de questionamentos metafísicos, nem por isso deixou de se contagiar pela alma das ruazinhas boas e simples, distantes e esquecidas, da João Pessoa de três, quatro décadas atrás.

Quanto ao Vanildo poeta, diria que – na esteira dos versos de Carlos Drummond de Andrade – deixou de ser moderno para se tornar eterno. E o eterno, aqui, significa a sua opção por uma poesia de feitio clássico, apolíneo, imune a modismos ou outras coisas do gênero, pois, com efeito, à lírica do autor de “Selecta Carmina”, as vanguardas nada tinham a acrescentar. Vanguardas em termos do concretismo e seus desdobramentos, uma vez que, se abeberando em Jorge de Lima, sobretudo no de “Invenção de Orfeu”, a poesia de Vanildo possui algumas ressonâncias do Surrealismo, principalmente no seu livro de estreia, “A Construção dos mitos”.

Para mim, a melhor poesia de Vanildo Brito é aquela que se cumpre sem a necessidade de corroborar os sistemas filosóficos que ele postulava em salas de aula e através de ensaios veiculados no “Correio das Artes” ou outras publicações do gênero. E isso porque a poesia não precisa provar coisa alguma, do contrário seria um mero epifenômeno da história, das ciências, da filosofia, etc.

* * *

Diferentemente do que escreveu o amigo e poeta Marcos Tavares, Vanildo se candidatou, sim, a uma vaga na Academia Paraibana de Letras. Só que o seu jeito arredio, tímido, o indispunha a cabalar, a pedir o voto dos acadêmicos, como o fez o economista e político Aluísio Afonso Campos, vencedor da disputa. Quero crer, inclusive, que a sua candidatura decorreu muito mais da iniciativa de alguns amigos do que dele próprio, cujo temperamento anárquico, rebelde, sempre o situou num plano oposto ao de sua poesia, quase toda ela tributária da tradição.

* * *

Se, na juventude, foi o mentor e o artífice da Geração 59, mal ingressou na idade madura abdicou do sentimento grupal para se isolar cada vez mais da vida literária. Foi quando se entregou à tarefa de traduzir alguns poetas latinos e de reunir os poemas que integram o livro “Selecta Carmina” (Edições Linha D’Água, João Pessoa, 2007), lançado quando a “indesejada das gentes” já lhe movia o cerco. Tanto que, embora tenha composto “Moritura nave” por ocasião do falecimento de Archidy Picado, a quem, inclusive, dedicou esse poema no suplemento “Correio das Artes”, desta feita omite o oferecimento ao colega de geração para, quem sabe, travestir-se, ele mesmo, no navio que, “(...) De velas recolhidas, (...)/ está cansado e arqueja lento. / (...) não está naufragando. Nem sequer/ aderna. Morre apenas, carcomido/ lentamente, marcas de mar/ no seu corpo aderidas como/ fundos sinais de mortes e de vidas./ (...) Não há lamentos nem salgadas lágrimas/ sobre o seu corpo imenso e mudo.// Vive no sempre o onírico navio.

Improviso omoplatas já foram asas nas madrugadas de outrora hoje são asas amputadas cravadas nas minhas costas



Improviso

omoplatas já foram asas
nas madrugadas de outrora
hoje são asas amputadas
cravadas nas minhas costas

sapoti! sapoti! sapoti! morcego! morcego! morcego! amor cego por ti! amor cego por ti! amor cego por ti! não escrevi à faca o teu n...



sapoti! sapoti! sapoti!
morcego! morcego! morcego!
amor cego por ti!
amor cego por ti!
amor cego por ti!

não escrevi à faca
o teu nome
no tronco do sapotizeiro,
mas na raiz.

na mais profunda raiz de mim mesmo.

domiciliares

b) chegar em casa
é desatar nós
da gravata
aos
cadarços.

é deixar-me livre
dentro das chinelas
e fora do bridge.

é girar com os dedos
o bico dos teus seios
como um segredo
de caixa-forte.

é abrir-te
para os nós cegos
do meu amor

domiciliares

e) mergulhas a roupa
no tanque
e desentranhas
os vestígios das ruas,
das ruelas,
dos becos e vias
de muitas mãos
paralelas
à mão única do meu amor.

língua

espada fora da bainha.

crista de galo
na rinha
dos lábios.

fogo chovendo no teu molhado.

nômade

acha que atritas,
o meu falo queima.

somos trogloditas
descobrindo o fogo.

crescem labaredas.

sob a braguilha,
armo uma tenda
com a minha glande.

e o meu falo nômade
rumo à tua fenda
levanta acampamento.

à queima-roupa

nua, ateias fogo
às minhas vestes
e o teu corpo despe-me
em carne viva.

ciúme

deito o meu ouvido no teu peito
e ouço o batuque de uma tribo
no tambor de olvido do teu coração

avenida dos tabajaras (III)

os teus seios
eram frutos
de um jambeiro.

e se os tocava,
o teu rosto
(vermelho)

era o pólen
e a lava

de mil jambeiros
acendendo-me
na avenida dos tabajaras.