Antigamente, sim, antigamente, tu preparavas para mim caramelos de limão, de caju, caramelos que eu retirava da boca, punha-os contra o s...
Cantilena
De existência breve – embora “a arte seja longa” –, Jurandy Moura faleceu aos quarenta anos de idade, vítima de um desastre de...
Jurandy Moura, o poeta e o homem
Recentemente, a Professora Carminha Moura, viúva do poeta, recolheu e selecionou alguns poemas dispersos de Jurandy, que devem ser publicados pela Editora Linha D’Água, do economista Heitor Cabral. O título, “Iluminuras”, tomado de empréstimo a Rimbaud, condensa a concepção do autor a respeito do mundo e da arte poética.
Pois bem. Se a poesia de “Iluminuras” é solar, nem por isso deixa de ser noturna. Quer dizer, se o eu lírico procura expor, desvelar o mundo, este parece negacear o corpo, na medida em que os poemas são impregnados por uma atmosfera volátil, fluida, responsável pelo sortilégio da lírica de Jurandy Moura.
Embora contasse apenas dezoito anos de idade, quando da publicação da antologia da Geração 59, não se pode dizer que os seus poemas de então já revelassem um menino-prodígio. E ainda bem que foi assim, pois a condição de menino-prodígio nem sempre vaticina ou assegura um futuro promissor ao poeta-aprendiz. O de Jurandy foi conquistado a duras penas, a custo de muitas leituras, conquanto ele já o delineasse nos sete poemas publicados na coletânea. Ou seja, nos poemas de “Iluminuras”, “reencontramos quase as mesmas linhas de força da poesia inicial”, o que já mostra um poeta consciente do seu “projeto-do-mundo e do seu ofício de escrever/criando”.
Os poemas da antologia nos revelam um Jurandy tributário da Geração de 45, do surrealismo, de um certo Jorge de Lima, e das múltiplas influências do leitor voraz e veraz que sempre foi e continuou a ser por toda a vida. Mas apesar da visão original do mundo, nem sempre a articulava e a resolvia através da linguagem. Às vezes, a emoção corria à frente da linguagem, sem que esta conseguisse alcançá-la para evitar os exageros das efusões ingenuamente sentimentais. Que o diga o poema “Louca loucura”, em que o poeta, diferentemente dos seus poemas que soam como música de câmera, quase sempre em surdina, grita a plenos pulmões:
Esse é o Jurandy Moura compatível com os seus verdes anos. O outro, embora já se entremostre na antologia, somente se revelará aos poucos, quando, fruto do labor e da pertinácia, saberá encontrar e diferençar a sua voz entre as muitas com as quais dialogou para a elaboração dos seus poemas.
Há um poema sem título, em “Iluminuras”, que desnuda o Jurandy de vida dionisíaca, gauche, “marginal”, agônica, compatível com o final que lhe foi reservado pelo destino. Ou, antes, por ele mesmo, uma vez que se deixou levar de roldão, à deriva, cegamente, vida afora insubmisso à vontade dos homens e dos deuses, administrando, ao seu modo, a sua trajetória terrena:
O verso “MELHOR MORRER DE VÍCIO/ QUE DE DELICADEZAS”, se não chega a ser uma apropriação intertextual, remete o leitor para o Arthur Rimbaud do poema “Canção da torre mais alta”, mais especificamente aos seguintes versos do simbolista francês: “Mocidade presa/A tudo oprimida/ Por delicadeza/ Eu perdi a vida”.
Este, aliás, é um poema que destoa do universo da poesia de Jurandy Moura. E isso porque os demais, na sua maioria absoluta, primam pela elegância, pelo comedimento, pelo decoro, pelos bons modos. São, enfim, poemas delicados, lhanos, suaves, contemplativos, nos quais o eu lírico, em nenhum momento, utiliza a palavra MERDA ou termos afins.
No caso, é necessário observar, a palavra MERDA reina única, absoluta, soberana e insubstituível, pois só ela, apenas ela, pode expressar o clima de angústia em que se debate um eu lírico que, atento às lamúrias de Rimbaud ante a mocidade perdida, extraviada, por conta da repressão e das conveniências sociais, grita em letras garrafais: “MELHOR MORRER DE VÍCIO/ QUE DE DELICADEZAS”.
Quando convocado para prestar um depoimento sobre João Cabral de Melo Neto, no livro “João Cabral de Melo Neto – Retrato falado do poeta”, da professora Selma Vasconcelos, da Universidade Federal de Pernambuco, Ferreira Gullar estabeleceu um lúcido cotejo entre o homem Cabral e a sua poesia: “A razão da poesia de João Cabral é esta que já falei primeiro, como todo poeta é uma necessidade existencial dele, psicológica inclusive, necessidade de ordem numa pessoa que tem uma fragilidade interior muito grande. Ele então se constrói, porque o mundo é inventado por nós, nós somos invenções nossas, nós nos inventamos, então João Cabral se inventou o contrário do que ele era, ele se inventou um poeta racional, objetivo, equilibrado e formal”.
Enfim, se o apuro formal, a contenção e a harmonia dos poemas de Jurandy Moura serviram de ponto de apoio e de equilíbrio à sua fragilidade, o verso “MELHOR MORRER DE VÍCIOS/ QUE DE DELICADEZAS” resume o seu estilo de vida e soa como um epitáfio.
Rua Barão de Jaguaripe, Ipanema, Rio de Janeiro. Não recordo o número do apartamento. Só sei que lá fui levado pelas mãos amigas de Gilber...
'Sabadoyle', Nava, Drummond e outros
O que se observa na poesia brasileira contemporânea é uma verdadeira enxurrada de livros que pretendem apreender o momento conturbado por ...
A poesia panfletária
Por aí já se conclui que motivos não faltam para indignar os poetas de bom senso, embora não faltem também aqueles que, na contramão dos princípios fundamentais da democracia, façam coro com o “Pátria, família e Deus acima de tudo”, um dos lemas que resumem exemplarmente o ideário neofacista da trupe miliciana. Isso sem contar os omissos de todos os gêneros, para os quais Dante Alighieri dedicou as seguintes palavras: “No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise”.
Ocorre, porém, que a indignação é má conselheira, sobretudo quando o poeta deseja transformá-la em poema, pois, escrevendo no calor da hora, no olho do furacão, ele tem tudo para esquecer a sábia lição de Wordsworth: “A poesia é emoção recolhida na tranquilidade”.
Quando Ferreira Gullar recorreu à literatura de cordel como instrumento de doutrinação para despertar a consciência adormecida dos leitores, justamente por ser esse um gênero mais acessível, mais palatável, nada ou quase nada acrescentou à sua obra, embora não se deva nivelar os seus livros de poemas engajados com a safra dos livros participantes de hoje, a grande maioria natimorta, já que repousa na vala comum onde jaz a pretensa poesia de extração unicamente política. Comparados com esses, os livros de Gullar são obras do mais fino lavor.
Nesse ponto, cabe observar que a literatura só faz revolução no âmbito da linguagem, dentro dos seus próprios limites, jamais fora dos seus domínios, de sua circunscrição, sendo-lhe praticamente impossível instaurar uma ruptura com o status-quo, com o estamento social.
Mas a boa literatura pode provocar, sim, uma espécie de revolução silenciosa, pois ao término de um livro de ficção ou de um poema, o leitor já não é o mesmo de antes, uma vez que passa a adquirir uma nova percepção da vida e do mundo.
Os poemas excessivamente políticos, por serem geralmente diretos, objetivos, desprezam as metáforas, o jogo imagético, o apuro formal, na medida em que apostam na mimese como único recurso capaz de captar a realidade em toda sua completude, como se ao eu-lírico cumprisse apenas a tarefa de testemunhar os fatos e de esmiuçá-los à semelhança dos realistas empedernidos, de carteirinha, que, pretendendo ser mais realistas do que a própria realidade, só se dariam por satisfeitos caso pudessem dar conta, tim-tim por tim-tim, com uma precisão milimétrica, “(...) do número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha”.
Se os vanguardistas mais ortodoxos apostavam tão só no virtuosismo verbal, nas paronomásias, no jogo de palavra-puxa-palavra etc., a maioria quase absoluta dos poetas engajados atenta menos na textura do poema do que na carnadura da realidade objetiva, que, nos seus poemas, já vem pronta e acabada como um prato feito para ingestão dos incautos e para a indigestão de leitores que sabem distinguir entre a poesia política de alto nível e a poesia meramente panfletária, tribunícia, muitas vezes vociferante e até mesmo histérica, que não fala nas entrelinhas, nos meios-tons. Poesia que se nutre do dejà vu, das metáforas envelhecidas, das catacreses, de uma espécie de pot-pourri de tudo o que já se escreveu sobre a liberdade e a repressão.
Quando injetava sangue novo em formas poéticas já debilitadas e conseguia soerguê-las sob uma nova aparência, Mario Quintana procedia com...
Mário Quintana
Quando os alunos do Curso de Letras me pedem sugestões de leitura, sobretudo de livros de poesia, recomendo os dos poetas líricos...
A força da poesia lírica
No que pese a importância dos estruturalismos, houve quem utilizasse os gráficos, os esquemas, as chaves, os colchetes etc., como se foss...
O visgo das coisas
Nasci em João Pessoa, no dia 25 de abril de 1947. Tenho 73 anos. Melhor: já os tive. Estou às vésperas dos 74. Portanto, são...
A poesia é o meu estandarte
Faz algum tempo, escrevi: “O meu Drummond de cabeceira era o de alguns poemas experimentais do livro ‘Lição de coisas” e o de ‘No meio do ...
Depoimento sobre Manuel Bandeira
A Geração 65, de Pernambuco, reúne um grupo...
'O inquisidor e as lições de passagem'
Conheço José Bezerra Filho desde os tempos imemoriais da hoje extinta Fundação Cultural do Estado da Paraíba (FUNCEP), quando esse órgão ...
Uma personalidade singular e plural
Sobre os poemas de “A Chave selvagem do sonho” (Editora Tribuna, João Pessoa, 2020), de Anna Apolinário, faço minhas as palavras do poeta ...
Trouxeste a chave?
Tantas são as peripécias do eu lírico para enfrentar as tormentas, as borrascas, as procelas do dia a dia, que os poemas de “A Voz do vent...
A voz do ventríloquo, de Ademir Assunção
TODO OUVIDOS O eu lírico sofre de delírios esquizofrenoides: Ponge ouve coisas; Bilac ouve estrelas; Gullar, muitas vozes.
Livros crepitam no forno das estantes
O eu lírico sofre de delírios esquizofrenoides: Ponge ouve coisas; Bilac ouve estrelas; Gullar, muitas vozes.
Durante um certo período, a crônica foi considerada um gênero de quem jogava conversa fora. Pouco a pouco, porém, parte do público lei...
A crônica de Adhailton
Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, já advertia: “(...) a função do livro infantil é fazer compreender às crianças que a leitur...
Criança, poesia, livro, etc
Eu não gosto da junção de palavras que, por força do uso, da repetição, dissemina o lugar-comum, o já lido e relido, os clichês, os chavões...
Mostruário Persa, de Letícia Palmeira
Eu não gosto da junção de palavras que, por força do uso, da repetição, dissemina o lugar-comum, o já lido e relido, os clichês, os chavões, o dejà vu. Antes, gosto dos paralelos insólitos, das palavras ou dos temas que só aparentemente se repelem. Enfim, gosto da poesia e da ficção que guardem uma certa semelhança com a loja de belchior do conto do “Bruxo de Cosme Velho”, onde convivem objetos heteróclitos, desencontrados, mas que se compõem e se complementam: panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, caixilhos, binóculos, um cão empalhado, dois cabides...*
Jovem ainda, Astier Basílio deixou de ser apenas uma promessa, uma revelação, para se firmar como um poeta que reservará boas surpresas ao ...
'Antimercadoria', de Astier Basílio
A frase é meio batida, surrada até, mas foi a que me ocorreu quando da leitura do livro “Harpia”, de Aline Cardoso: “Hay que endurecerse, p...
Flores de aço
A frase é meio batida, surrada até, mas foi a que me ocorreu quando da leitura do livro “Harpia”, de Aline Cardoso: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Seja ou não da autoria de Che Guevara, a mim apenas importa que poderia servir de epígrafe para o livro, uma vez que encerra, condensa, a atmosfera da maioria dos poemas que o compõem. Poemas fortes, incisivos, diria quase aforismáticos, e que aprofundam o conflito entre a “vida vivida e a vida pensada”, pois já não disse Oscar Wilde que, “Para a maioria de nós, a vida real é a vida que não vivemos?”
Ângela Bezerra de Castro não escreve com o propósito de demonstrar conhecimento, embora seja uma erudita sem “erudição”. Aliás, ela e os qu...
Ângela: Um certo modo de ver
Ângela Bezerra de Castro não escreve com o propósito de demonstrar conhecimento, embora seja uma erudita sem “erudição”. Aliás, ela e os que verdadeiramente dominam as muitas vertentes da teoria literária, da história da literatura etc., evitam não só a utilização de termos absconsos, abstrusos, que dificultem a compreensão do leitor, como também disfarçam “o profundo conhecimento das teorias literárias, (...) para mostrar (...) o entendimento, a reflexão, o conhecimento amadurecido na leitura dos escritores da melhor cepa”.
Diria que Ângela é fruto da consorciação da crítica, da ensaísta e da professora, esta última uma das principais responsáveis pela inclusão do autor paraibano em sala de aula. E isso numa época em que os ensaístas da província somente se mostravam receptivos aos autores canônicos. Que o diga Juarez da Gama Batista, estudioso da obra de Gilberto Freyre, Jorge Amado, José Lins do Rego e outros.
Já outro ensaísta, Virgínius da Gama e Melo, só eventualmente escrevia sobre a produção literária paraibana, como o fez a respeito da Geração 59 e do poeta Jomar Moraes Souto, cujo prefácio da 1ª edição do livro “Itinerário lírico da cidade de João Pessoa”, foi de sua autoria. Mesmo assim, aqui e acolá, saudava os novos autores que surgiam, mostrando-se benevolente com os estreantes, talvez movido pela intenção de incentivá-los no enfrentamento dos caminhos sempre árduos da literatura.
Geraldo Carvalho, este era uma exceção, pois além de dirigir uma editora artesanal – “Caravela” –, responsável pela publicação dos então jovens autores José Leite Guerra, Maria José Limeira, Jurandy Moura e Archidy Picado, acompanhava passo a passo a produção literária da época, resenhando-a na coluna semanal “Pro-textos”, que mantinha no jornal “Correio da Paraíba”.
Virginius, pela sua condição de professor de Teoria da Literatura, bem que poderia ter adotado os autores paraibanos em sala de aula, mas não o fez. Geraldo, talvez o fizesse, mas não exercia o magistério.
Por outro lado, na medida em que procurava descobrir as recorrências estilísticas e temáticas dos autores federais, estaduais e municipais, Ângela não fazia distinção entre eles, pois procedia de modo a demonstrar que Augusto dos Anjos, José Lins do Rêgo, Vanildo Brito, J. J. Torres, Natanael Alves, Juarez da Gama Batista, Eduardo Martins, Aurélio de Albuquerque, entre outros, eram autores de suas “afinidades eletivas”. Daí, com muita propriedade, Luiz Augusto Crispim ter observado que “Ângela Bezerra de Castro desencantou o escritor paraibano”.
Ainda com relação à Ângela, quando ela faz a leitura de um texto, só posteriormente o submete às muitas teorias das quais se abastece, escolhendo, numa etapa seguinte, a que melhor se presta à exegese do poema ou da prosa de ficção. Em suma, o seu tipo de abordagem é reivindicado pelo próprio texto, diferentemente dos críticos e ensaístas que, a reboque de teorias mal assimiladas, adotam, de maneira apriorística, os mesmíssimos modelos de análise aos quais submetem os mais diferentes mecanismos de criação.
Todo e qualquer crítico ou ensaísta, por mais aparelhado teoricamente que seja, contém a sua porção impressionista, embora o impressionismo seja demonizado por muitos que, obstinada e cegamente, não reconhecem os momentos de absoluto rigor reflexivo do pernambucano Álvaro Lins, um dos mais legítimos representantes dessa vertente crítica.
Em outras palavras, eu diria que o crítico não deve se munir apenas da teoria, mas também da “intuição”, espécie de impressionismo que longe de se originar de um insight ou de uma epifania, provém da experiência acumulada do leitor voraz e veraz que todo crítico que se preza o é, a exemplo de Ângela Bezerra de Castro, conforme ratificam a sua obra anterior e o seu livro mais recente, “Um Certo modo de ler”.