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Na década de 1990 tive a oportunidade de entrar no Espaço Cultural José Lins do Rêgo e dar de cara com enormes fotografias de artistas ...

Na década de 1990 tive a oportunidade de entrar no Espaço Cultural José Lins do Rêgo e dar de cara com enormes fotografias de artistas mascarados, fotografados por Rodolfo Athayde, já conhecido artista visual da cidade. Estava começando minhas aproximações com as artes visuais, sem saber que, com o passar dos anos, algumas pessoas ali retratadas fariam parte da cena da minha vida cotidiana, inclusive o próprio Athayde.

Há dez anos eu estava prestes a concluir uma etapa importante da vida, meu doutorado. E para escapar da angústia da pressão interior, depo...



Há dez anos eu estava prestes a concluir uma etapa importante da vida, meu doutorado. E para escapar da angústia da pressão interior, depois de um dia de trabalho, eu ficava navegando na internet olhando lindas paisagens. E assim me deparei com uma fotografia da pequena cidade baiana de Mucugê. No dia seguinte falei para o meu filho: “vamos para Mucugê?”. Então com 7 anos me perguntava: “o que é isso mamãe?”. Respondia: um lugar lindo!!!!!!

Quando dizia vamos para Mucugê aspirava profundamente deixar os papéis, as ideias, as pressões, o cansaço, o vazio, a solidão, a cobrança interna, o labirinto dos livros que lia, todas as teorias, sair correndo, colocar a mochila nas costas e partir. Mas naquele momento da vida não era possível. Meses depois, concluí o doutorado e, logo em seguida, assumi outras responsabilidades.

Esperei longos anos por motivos sérios ou banais para pegar o rumo sentido Chapada Diamantina. Eu que tenho uma quase devoção por cachoeiras e sou tomada por forte emoção quando vejo uma. Assim foi na Chapada dos Guimarães, ou no Roncador e Ouricuri. Penso que onde tiver uma cachoeira ali estará um pouco de minha alma.

O que pude descobrir recentemente na Chapada Diamantina foi um caminho de retorno para dentro de mim. Não que houvesse me deixado, ao contrário, me conjugo no tempo presente. Só que me senti como o protagonista do livro “Jemmy Button: o menino que Darwin levou de volta para casa” (Jeneffer Uman, Alix Barzelay e Valerio Vidali. Ed. Pequeno Zahar, 2013). O personagem, nascido na Terra do Fogo, foi “levado” para a Inglaterra para ser “civilizado” e “educado”, por uma expedição que trouxe Darwin a América do Sul. O final desse livro que não vou contar, é um dos mais lindos finais de livros que já li. E na singularidade de um livro infanto-juvenil ele nos diz dos lugares mais profundos que existem dentro da gente, por vezes adormecidos, esquecidos. Que estão e estarão sempre lá, mesmo que a gente feche a porta e engula as chaves. Esse lugar nunca vai deixar de existir.

A gente pode até passar dez anos para poder abrir uma porta novamente, só que as frestas vão se formando, encontrando os lugares de ruptura e espalhando luz. Chegar recentemente na Chapada Diamantina foi uma jornada, não a do herói de Joseph Campbell. Foi uma trilha de volta a um lugar existente sempre, só que submerso por vezes numa total escuridão. Tão simples: meus pés alados, e as paisagens se movendo pelas “janelas do carro, pela tela, pela janela”… e tudo de mais singular acontecendo nesse movimento subjetivo, indivisível. Ou não acontecendo nada, simplesmente existindo sem mais nem menos, assim como anoitece e amanhece.

E sabe que no trajeto até desisti de ir, nesse momento, a Mucugê, só para ter uma razão para voltar. Fui fazendo outras trilhas, caminhos que custam descrever porque as palavras nesse momento não alcançam a profundidade desse poço que voltei a mergulhar. Assim fui percorrendo as cachoeiras, os rios, as cavernas, com “o sol na cabeça”.

Na primeira Lua Cheia do ano, não temer a mata. Estar na noite, em silêncio, escutando as águas como se fossem parte de minhas veias. Inundada no azul-marinho do céu, observando a Constelação de Órion. Tocando com meus pés pedras milenares, torneadas pelas águas, ora duras, ora macias, frias e suaves, que formavam um mosaico que nunca Gaudí alcançou compor.

Não era estranho, era um lugar de retorno, mesmo sendo um espaço onde nunca estivera. Aparentemente. Nesse processo evolutivo, muito do que somos está em tantos lugares espalhados Universo a dentro, mundo afora. E mesmo que tudo possa parecer um déjà vu, a sensação é de redescoberta do mundo.

Nessa experiência desci as profundezas de uma caverna, e nunca pensei que o silêncio e a escuridão profunda num lugar como esses me falassem tanto à alma, fossem como uma meditação, um religare. Mesmo com todos os obstáculos, não foi difícil descer a caverna, mas simplesmente ter que deixá-la. Quis me deixar por lá vagando naquela escuridão pertinente. Inevitável não lembrar de Platão. Será que havia entrado numa dessas? Será que a Terra seria essa ilusão, alegoria?

Desde que tive que sair de lá e voltar para o mundo exterior fiquei me sentindo diferente, como se o anoitecer, e o crepúsculo me chamassem de volta à poesia daquele lugar, como se as galáxias e seus buracos negros fossem uma extensão daquilo que sou...

Nossos fios de missangas “A vida é um colar: Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas...” (Mia Couto) Cer...


Nossos fios de missangas

“A vida é um colar: Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas...” (Mia Couto)

Certo dia, não lembro como, há muito tempo, chegou em minhas mãos, um texto de Mia Couto. Fiquei surpresa inicialmente com o nome do escritor, para mim bem enigmático, que trazia uma sonoridade que me atraía. “Cada homem é uma raça” foi um dos primeiros textos lidos. Tanto impacto trouxe, que mesmo com todo respeito a obra de Saramago, passei a ter em Mia meu próprio “Saramago”. Como se ele fosse meu Prêmio Nobel particular, tamanha admiração pela escrita que pensei ser inimaginável. Não entendo de crítica literária, mas como leitora, considero, assim como a Clarice Lispector, que esse o autor representa uma experiência ímpar de escritura.

Apesar de, depois desse primeiro contato com a leitura, desejar muitíssimo encontrar com ele, perdi as duas oportunidades que tive. Uma na cidade de João Pessoa e outra em Salvador. Mas mantenho um reencontro constante com ele na literatura. Todos os anos a gente se reencontra em algum momento da vida, dos dias, das circunstâncias mais malucas em que no meio de tantas coisas eu parto em direção às vozes que sal- tam das palavras escritas de Mia Couto. Assim foi no “Histórias Abensonhadas”, “Terra Sonâmbula”, “O Fio das Missangas” e mais recentemente com “E se Obama fosse africano?”.

Eu só posso imaginar e crer que escrever seja algo sagrado, e mais sagrada ainda seja a escuta que escritores e escritoras fazem de seu Tempo. No caso de Mia, penso, como em Manoel de Barros, é essa entrega ao Outro, capaz de perfazer uma narrativa não centrada em si mesmo. Ao ler esses textos fico imaginando como a oralidade é capaz de tanto, do Todo, do inimaginável, como é capaz de filosofar ultrapassando a racionalidade e fazendo tanto sentido suas metáforas, dizendo tan- to e de um modo tão simples.

Os textos nos tiram de gaiolas, são vOos imensos. Essas narrativas me fazem voltar aos banhos de chuvas torrenciais correndo pelas ruas de minha cidade natal, indo de biqueira em biqueira, ficando rosa a cada clarão dos relâmpagos loucos estalando nos céus.

Em 2019 tive outro reencontro com Mia Couto, no corpo em cena de André Morais, multiartista paraibano, que no espetáculo Memórias de Terra e Água me trouxe de volta para Mia. O corpo cênico do André me lembrou muitíssimo os derviches, protagonistas das danças sufis (danças oriundas da Síria). No espetáculo os textos sobre finitude e eternidade viravam dança, um bailar.

O corpo do ator dançou rodopiando, tecendo no palco os fios invisíveis, juntando as missangas de Mia Couto oriundas de seu povo, também tecidas como narrativas de si. A África que habita em cada um de nós. É muito bom poder costurar inicialmente o invisível, o que está por dentro. Costurar pelo avesso. No espetáculo dirigido por Lúcia Serpa, André costurou e muito risos e lágrimas, acho que chegou de certo modo ao Infinito do Ser, se refazendo da saudade de seu pai. André juntou muitas missangas de formas e cores diferentes, pegando cada texto e sendo capaz de narrar com Fabiano Diniz, que fez a iluminação do espetáculo, e Victor Figueiredo, a poética do Mia Couto e a sua própria.

Quando a gente costura pelo avesso ninguém vê, só nós mesmos. O que as pessoas vêem é o que está por fora, o alinhavo só a gente sabe o trabalho que dá, os furos de agulha que a gente leva, deixando pequenos bordados dos poros sangrando.

Quando finalmente a gente vira a cena pelo avesso tenta, na medida do possível, harmonizar, expressar com segurança a tentativa de consertar e criar. Encontrar novos “fios de missangas” trazidos por André Morais, Victor Figueiredo, Fabiano Diniz, Lúcia Serpa e Wigne Nadjare foi me deixar seguir na descoberta do mundo, um vasto mundo...