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Augusto dos Anjos e a poesia como um continuum
A partir daí, podemos aplicar esse raciocínio a um dos veios da poesia de Augusto dos Anjos – o da evolução da espécie –, constatando que um ser que vem “do cosmopolitismo das moneras”, um “polipo de recônditas reentrâncias” (Monólogo de uma Sombra), uma “actissa radiolar” (Os Doentes), um “gérmen” (A um Gérmen), “larvas” (O Pântano), um peixe “malacopterígio subraquiano” (Alucinação à Beira-Mar), um “amniota subterrâneo”, um “sapo” (As Cismas do Destino), um “animal inferior que urra nos bosques” (Monólogo de uma Sombra), um “cachorro a ganir incompreendidos verbos” (As Cismas do Destino), um “macaco catarríneo” (Os Doentes), o homem em suas versões de “filósofo moderno”, “sátiro peralta” (Monólogo de uma Sombra) ou visionário noturno (Noite de um Visionário) são os elos de uma cadeia ininterrupta de evolução da espécie, todos filhos do “carbono e do amoníaco” (Psicologia de um Vencido) ou do “Protilo” (Sonho de um Monista), que não podem ser vistos de maneira isolada, pois se assim enfocados, nada dirão.
O outro veio, o da evolução espiritual estagnada, este se materializa como, já afirmei em estudo anterior, na “angústia da evolução”. O propagador dessa assincronia é a Sombra, uma espécie de alter-ego do aflito eu-póetico, diante da degradação do espírito humano, que ela sintetiza metonimicamente, sentido em si “a dor de todas essas vidas”. Assim como não podemos ver de maneira isolada as referências sólidas e bem tramadas da evolução da espécie, ao longo do texto augustano, também não podemos ignorar o continuum existente e incontornável, em busca da espiritualização, que começa com “Monólogo de uma Sombra”, um poema-manifesto de sua profissão de fé. A conexão se faz em “Sonho de um Monista” em que o eu-poético enxerga “a verdade espantosa do Protilo”, cuja alma vê “Deus – essa mônada esquisita”, tudo fazendo parte da “evolução orgânica da argila” (As Cismas do Destino). Aquilo que a Sombra deixa implícito, principalmente no final de seu discurso, é o que se dirá com todas as letras em “Anseio”, como um remate claro para a ligação entre os dois veios poéticos:
Quem sou eu, neste ergástulo das vidas Danadamente, a soluçar de dor?! – Trinta trilhões de células vencidas, Nutrindo uma efeméride inferior. Branda, entanto, a afagar tantas feridas, A áurea mão taumatúrgica do Amor Traça, nas minhas formas carcomidas, A estrutura de um mundo superior! Alta noite, esse mundo incoerente, Essa elementaríssima semente Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal… Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto, E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto Não poder dar-lhe vida material!
De cunho neoplatônico, o soneto nos traz a vida material como prisão e dor, com o ser humano gastando suas células, para nutrir uma inferioridade, que o tornará em vida um “esqueleto exausto”. Os dois primeiros versos encerram uma pergunta retórica, em que a admiração se sobrepõe à interrogação, pois o eu-poético sabe perfeitamente a resposta, que nos é dada nos dois versos seguintes. A prisão que encarcera o eu-poético não é uma prisão qualquer, mas um ergástulo, aquela que faz do ser humano, um escravo e devedor, diante dos saques incontáveis à vida material, cuja efemeridade ele não alcança, pensando-a eterna. A dor vem lhe trazer o quanto o homem perdeu diante de sua entrega a uma materialidade que o aprisiona e, “danadamente”, o condena. O último verso da primeira estrofe se constrói numa espetacular aliteração, com base no fonema fricativo /f/, levando-nos a ouvir a vida que se escapa inutilmente – Nutrindo uma efemeridade inferior.
O lamento que se expressa em soluço e dor é semelhante à crítica que a Sombra faz ao Filósofo Moderno e ao Sátiro Peralta, nas suas entregas à materialidade, estragando o seu “vibrátil plasma todo”. Mas, em “Anseio”, há o diferencial que pode remediar essa situação: o Amor (assim com letra maiúscula) é o único meio possível de transformação do ser humano, para livrá-lo da prisão da materialidade, para livrá-lo da danação. O Amor é o taumaturgo, o operador de milagres, e causa o prodígio da transformação, trazendo o consolo à dor e ao soluço, com a sua mão branda, afagando as feridas, transformando as formas carcomidas, numa estrutura de um mundo superior.
É pelo Amor e pelo consolo que ele traz, que a dor, o sofrimento, a prisão, a inferioridade se transformarão em liberdade, em alívio, em eternidade e vida superior, em luz, conforme sugere a sua “áurea mão”. Na beleza do paradoxo que contrapõe e funde “as formas carcomidas” e a “estrutura de um mundo superior”, o eu-poético expõe a certeza de que já se encontra, na degradação, a purificação; igualmente, na morte, se encontra a vida: é a podridão servindo de Evangelho, é a "eucaristia negra", é a graça que se encontra na desgraça. A evolução material é o passo para a evolução espiritual, porque, enfim, tudo se encontra em tudo. O eu-poético revela esse anseio no hausto em que se alarga o seu grito de dor, que diz dessa necessidade de um sorvo profundo de espiritualidade.
Para que isso ocorra, contudo, o homem tem de ter consciência de sua pequenez e imperfeição; de que está perdido em vidas sucessivas que o aprisionam – “Quem sou eu neste ergástulo daS vidaS/Danadamente a soluçar de dor!?”. Ter a consciência de que é uma “elementaríssima semente do que há de ser”, para, a partir daí, buscar o ideal do espírito. Como sabemos, o uso do superlativo em Augusto dos Anjos, é característico. Nesse caso, ele enfatiza a pequenez do homem, não para diminuí-lo, mas para que ele saiba que é da pequena semente que ocorre a transformação na grande árvore. Para que isto aconteça, a semente precisa morrer ou não frutifica. O homem precisa morrer materialmente para dar o fruto do renascimento no espírito. Isto se aplica para o puramente biológico, em que o espermatozoide encontra o óvulo, deixando ambos de ser o que são, “morrendo”, para gerar o que há de ser, e se aplica também, com relação ao transcendental, em que o espírito vai passar algum tempo aprendendo, como habitante da vida etérea, conforme mostra a bela metáfora do espírito “vestido de hidrogênio incandescente”, no poema “Solilóquio de um Visionário”.
A matéria nutre uma inferioridade, enquanto o espírito busca a superioridade, é o que nos revela a antítese entre a primeira e a segunda estrofes. O homem precisa sair dessa noite que o envolve — característica marcante do eu-poético angustiado —, noite mais interna do que externa, e buscar alívio para a sua dor, através do Amor. Salvo engano, este é o único poema de Augusto dos Anjos em que o Amor aparece, com todas as letras, pleno e redentor, bem diferente do “amor do sibarita e da hetaíra,/De Messalina e de Sardanapalo” (Idealismo). Não basta, no entanto, saber que o Amor transforma e espiritualiza, é preciso praticá-lo. Aí vem outra lição: a angústia de não poder realizar na matéria a espiritualidade. A matéria é um meio de aprimoramento, é na matéria que se prepara a espiritualidade, numa batalha constante de transpor o Ideal. Ao homem que perdeu sua vida, consumindo-a e tornando-se “esqueleto exausto”, a nova vida só será possível através da espiritualidade, cujo agente é o Amor. Sem ele, o homem está perpetuamente condenado ao sansara (Monólogo de uma Sombra, Viagem de um Vencido), como um escravo no ergástulo.
Acredito que este soneto “Anseio” é um exemplo de que a poesia de Augusto dos Anjos exige ser lida como um sistema. Não podemos ignorar isto e submeter seus poemas a nossas crenças pessoais, sejam elas quais forem, científicas ou religiosas. Como exemplo, ainda mais claro desse sistema, temos o tríptico magistral em que o eu-poético fala do pai morto. Lidos separadamente, os três sonetos dirão menos da espiritualidade do que se lidos no sistema em que foram produzidos.
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