O que difere Aldo Lopes de outros escritores contemporâneos, mesmo os que se consagraram recentemente no cenário nacional, não é só a forma, mas maneira de usá-la para expressar o conteúdo de sua narrativa. Aldo Lopes sabe que mais importante do que aquilo que se conta é a maneira como se conta.
Aldo Lopes, escritor e jornalista paraibano, membro da Academia Paraibana de Letras.
E, diga-se, o seu texto não tem nada de revolucionário ou de experimental, mas o que tem de espontaneidade e de naturalidade o põe acima de muitos.
Aldo Lopes não é o escritor que está preocupado com agradar a grupos ou ideologias. Ele escreve o que tem de escrever, e sentimos, na sua ficção, não a procura de uma imitação, como cópia de uma realidade, mas aquilo que o ficcional deve ser: uma recriação muito próxima da realidade, que chega a se confundir com ela, mas não se deixando limitar por tempo, por espaço ou por ativismos, tendo em vista o que ele deve comportar de universal e de atemporal.
O seu mais recente livro, Azeite, senhora avó! (Natal, Caule de Papiro, 2025), é a prova disso. Utilizando a sua prerrogativa de autor, Aldo Lopes determina o arquitexto de sua narrativa, chamando-a de contos. Desconfiemos sempre dos escritores, que, por natureza, costumam enganar os leitores e os críticos.
Respeitando a classificação e não querendo entrar em polêmicas estéreis, preferimos chamá-la de romance articulável ou desarticulado, cujos quatro capítulos (“Sapatos de vaga-lumes”, “Como uma horda de selvagens a nos atacar”, “Cão Maior”, “A passagem do cometa”) podem ser lidos sem que o leitor tenha a necessidade de seguir a ordem estabelecida no índice. Ao leitor avisado, o impacto será o mesmo, tendo em vista que a ordem previamente estabelecida pelo autor não segue uma linearidade previsível.
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A mim, particularmente, o texto impactou muito antes de virar livro, pois conheci o primeiro capítulo, “Sapatos de vaga-lumes”, no seu nascedouro, ainda como um conto. Conheci-o, portanto, inédito e sem estar ligado aos outros três que formam o seu livro. Para mim, já se tratava de um texto literário de uma qualidade inquestionável, pronto, acabado, na singularidade em que foi apresentado. Associado aos demais, o texto cresce, sua dimensão se amplia e o núcleo apresentado, tratando do menino que não cumpre as ordens do pai e vai ao cinema, para poder contar ao irmão o filme assistido, ganha nova significância, desvelando aos olhos do autor, não apenas o fantástico que a narrativa encerra, mas uma violência entranhada, quase determinista, beirando um atavismo difícil de ser quebrado:
“Quando ele descia o braço, na ponta dessa parte de seu corpo vinha a mão fechada segurando algo que podia ser uma vara, corda, chicote, relho, trave, porrete, borracha, cinturão, às vezes ela vinha sozinha, aquela mãozona aberta, pesada, espalmada, e tome-lhe murro no meio do espinhaço, sem falar nos catiripapos e nos murros que ele dava em nós. Acho que nosso pai nunca foi menino, deve ter nascido já grande, na oficina do Diabo”.
p. 22
Como se pode ver, acima e abaixo, o tratamento que Aldo Lopes dá à linguagem revela um entranhamento com a oralidade, sem qualquer artificialidade, e, ao mesmo tempo, não faz concessão alguma, a não ser à criatividade, como o aproveitamento do verbo vociferar, empregado à avó do menino, resultando em “Vovociferava” (p.73), sem superficialismos ou adiposidades:
“Quando despertei, tive a certeza de que nasci com vocação para sofrer. Até nos sonhos eu me fodia”.
p. 14
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É importante ressaltar que, apesar da violência explícita, na narrativa de Aldo Lopes não há vitimismos. Há indignação, um sentimento de retaliação, mesclados a uma ironia amarga, produzida pelo mundo nos quais os personagens vivem. Mundo de carência, da insensibilidade, da necessidade, da miséria quase absoluta que o menino narrador das histórias faz brotar através de uma tentativa de enfrentamento da realidade, em que a construção de uma fantasia torna-se elemento essencial para suportá-lo ou para destruí-lo. Mundo, cuja violência se cristaliza na figura do pai ou na indiferença da avó:
“Meu irmão Eliaquim nu como Jesus, e nosso pai tome borracha, a tira de pneu estalava em suas costas, e vovó chupando o canudo do cachimbo como se nada estivesse acontecendo”.
p. 17
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Aldo Lopes não patina em identitarismos, nem precisa fazer panfleto, para falar da situação social. Basta a imersão no universo do menino, traduzindo-o em um monólogo interior, quase fluxo de consciência, com alguns parágrafos até grandes, mas de frases curtas, muitas vezes incisivas, de poucos diálogos, em que prevalece o turbilhão sincopado, entrecortado de uma situação adversa, estampada na cara do menino, numa condição quase animalesca:
“Então lembro que em nossa casa não há gatos. Nem gato nem cachorro, bicho nenhum. Nossa avó nunca gostou de bichos. Eu e meu irmão éramos os únicos animais da casa. E ela nos odiava”.
p. 54
A realidade é um soco na boca do estômago, que leva à dificuldade de respirar, mas cujos resultados vêm em forma de uma consciência, às vezes, nebulosa do que se encontra ao redor:
“Tudo ficava para trás, menos o medo do velho e a lembrança do irmão Eliaquim que eu levava comigo junto com as cenas do filme desenroladas do carretel da minha cabeça”.
p. 12
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A seca, a carência material (“Triste ter de soletrar a seca, essa esponja do Inferno que castigou o Sarafim, chupou os açudes, torrou as lavouras e chegou ao cúmulo de matar de forme e sede a nossa condução”, p. 47), a falta de carinho (“Antes tivesse matado vovó, que parecia ter um século de sono acumulado naquele quarto onde duas paredes nos separavam: uma de tijolos e outra de indiferença”, p. 47), a orfandade, as doenças (“Eu era um menino sem mãe, com oito anos de seca e três invernos,
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sozinho no meio da escuridão”, p. 24), a violência (“Eu e meu irmão, dois sofredores nas unhas de Oliveira Sabino, nosso pai”, p. 15), a vida num mundo esquecido por quem de direito (“O Sarafim é a terra do fim do mundo, do Ente Capão e da Pavoa Devoradora”, p. 55), tudo seria um terrível lugar-comum não fosse o tratamento da linguagem operado por Aldo Lopes.
“Como o pensamento não se engancha em nada” (p. 62), basta uma frase de Aldo Lopes, para derrubar a narrativa insossa e frouxa dos identitarismos e do panfletarismo social, travestidos de literatura, como podemos constatar nos exemplos abaixo:
“E eu aqui, com uma puta dor nas pernas e o pescoço inchado de torcicolo, não sei se por conta do peso da cabeça, pois levo dentro dela o filme inteiro, levo também meus medo, minha orfandade, meus aperreios de vida, meu coração despedaçado”.
p. 21
“Vivemos num ligar onde o verbo divino tem seu tempo, seu modo próprio de conjugação”.
p. 46
“O criador mandou as trevas na frente, a luz chegou depois, junto com o arrependimento, imagino”.
p. 50
“Ainda ontem tirei o Sarafim das goelas, vomitei, cuspi fora todas as lembranças, as boas e as ruins, apaguei minha história. Foi fácil não. Faltava agora consultar vovó, apertá-la, espremê-la. Os velhos têm raízes profundas e guardam coisas como diabo, por isso dão mais trabalho”.
p. 84
É óbvio que nas entrelinhas da indignação e do ódio de menino ao pai e à avó, que, no pensamento chega a recriar a situação da fábula de João e Maria, que dá título ao livro, nas entrelinhas se encontra também a raiva contra o descaso de sempre,
da parte dos sucessivos governos manipuladores da situação de ignorância dos mais necessitados, aprofundando-as e gerando uma miséria recorrente, totalmente desconectada das promessas cínicas de desenvolvimento e progresso, “apagando o último lampião” e “levando água para todas as torneiras”:
“E assim, promessas vagas se perderam por essas grutas e socavões, onde de concreto só restou o paredão e a placa de bronze com os nomes do presidente, do governador e do diretor de um tal Departamento de Obras Contra as Secas, quando deveria de se chamar Departamento de Obras Contra Nós”.
p. 74
Aldo Lopes merece realmente ser chamado de escritor. Não é nenhum favor. Seu texto flui, se espraia e penetra na alma. Sem artificialidades. O resultado é uma narrativa com um linguajar que não só não se afasta do leitor, mas, sobretudo, não afasta o leitor.