No meu caminho tem uma loja de carros. Não é fácil sair à rua sem se achar à frente de uma loja dessas. Ou de uma farmácia de rede, poi...

O carro e os carretéis

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No meu caminho tem uma loja de carros. Não é fácil sair à rua sem se achar à frente de uma loja dessas. Ou de uma farmácia de rede, pois a dos farmacêuticos que receitavam, por aqui só a de Arnaldo.

E me surpreendo parado, infantilmente atraído por uma loja por onde até pouco passava todas as manhãs. Vinha caminhando nos passos da idade e, de mãos para trás, sem mais
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Andrei Anghel
nem menos, me vi com os olhos num modelo sem data, marca indefinida, como quem regressa ao remoto prazer de acariciar um brinquedo, uma réplica que se movia, trocava de marcha, corria, freava e tornava a correr ao zuuum soprado pelos beiços do antigo menino.

Entrei sem sentir. O moço vendedor, sem outra leitura a não ser a do manual de vendas, começa a enumerar as vantagens da promoção de fim de estoque. Entre elas a do parcelamento, a primeira prestação daqui a 90 dias, além dos anos de garantia.

“Três anos de garantia?!” – ponderou o velho, os olhos baixos, retraídos do brilho faiscante do carro para as sombras do seu tempo.

É quando o velho que sou entra em si a fazer as contas, a associar a vantagem do prazo às desvantagens da sua idade. Mas não são apenas desvantagens. Na verdade, nunca sentira o automóvel ligado tão impositivamente às suas pernas, como extensão física e psíquica de si mesmo. Subindo a serra de Petrópolis, Alceu Amoroso, ainda escrevendo no antigo JB, descreve feliz essa mesma extensão.

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GD'Art
“Daqui a três anos!?” – põe-se a avaliar. Com Alceu ou sem Alceu é soma que o diminui. E vem o contraponto: “Olha, meu caro, na nossa idade tudo o que resta a fazer, desde se possa, é investir no instante presente”. É a fala de um amigo rico.

“É um carro que não lhe maltrata a coluna” – insiste o vendedor, de olhos na corcunda que a lei sagrada trata com respeito.

E nesse vai e vem ressurge verdinho o menino que ainda me restava, com as peculiaridades inatas a cada ser sensível conforme o ambiente, o meio social, o espírito de casa e o de seu povo, como vamos sentir na expressão poética perene de um Luiz Augusto Crispim, que vendo a morte chegar, enfia os pés no tênis do Grupo Escolar Epitácio Pessoa, sai no cheiro dos eucaliptos, das mangueiras floradas, nos jasmins de Tambiá a deixar seus rastros nas vielas de barro, no casario único de cidade do interior que ainda possuímos. E com eles, em 22 crônicas de quem se despede, sai garantindo a perpetuidade de tudo o que as mãos do adolescente chegaram a tocar.

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Luiz Augusto Crispim Acervo de família
O menino de Crispim acorda e chama o menino do velho e o traz para bem perto. O carro da loja ganha um vermelho reluzente, de brilho e matizes que a infinidade de prismas das cores computadorizadas não conseguiu ainda produzir. É uma força, um zunido de carro sobre carretéis que só as subidas e descidas traçadas na orografia imaginária da antiga mesa grande da sala de jantar podiam oferecer. Era uma pequena trincha de tábua com cava para dois carretéis que nunca deixarão de rolar na estrada recapeada de uma vida que sobrevive no velho de agora.

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