Em junho de 1585, fracassava mais uma tentativa de ocupação pelos portugueses e espanhóis das terras do litoral da Paraíba. Acossado pelos ataques dos Potiguara e premido pela fome, o capitão castelhano Francisco de Castrejón destruiu o Forte de São Filipe e São Tiago que ele comandava e que fora construído, um ano antes, pelo general Diego Flores de Valdés na margem esquerda do rio Paraíba próximo a sua foz. A fortificação fora erguida com a finalidade de proteger a barra do rio contra
Possível localização do Forte de São Filipe e São Tiago, no estuário do rio Paraíba ▪ Fonte: NMaps
incursões de traficantes franceses e possibilitar o estabelecimento de uma povoação na região.
Para os acontecimentos daquele tempo é indispensável se recorrer ao valiosíssimo relato contemporâneo feito por um padre jesuíta e que ficou com o extenso título de Sumário das armadas que se fizeram, e guerras que se deram na conquista do rio Paraíba; escrito e feito por mandado do muito reverendo padre em Cristo, Cristóvão de Gouveia, visitador da Companhia de Jesus, de toda província do Brasil, mas que é comumente conhecido, de forma reduzida, como o Sumário das armadas.
Conforme a narrativa do documento jesuíta, Francisco de Castrejón “nas perguntas não deu outra razão senão da fome” para abandonar o forte de São Filipe e São Tiago e, em decorrência, os espanhóis que estavam sob seu comando “vingaram-se em deitar a artilharia ao mar, e uma nau, que lá estava, ao fundo, e pôr o fogo ao forte”. Cerca de dois meses antes da debandada de Castrejón a situação da fortificação já era insustentável, dedução que se faz ao ler o relato do padre redator do Sumário, que chegara ao forte acompanhando uma expedição que partira de Olinda para dar combate aos Potiguara na Paraíba:
“chegamos ao forte, que era coisa piedosa de ver, assim o danificamento, como as pessoas dos soldados, que bem mostravam as fomes, e misérias, que tinham passado, como as ruínas, que, por ser de taipa, havia tudo mister reparado!”.
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A propósito do forte de São Filipe e São Tiago, alguns historiadores paraibanos difundem, como se fosse um fato inquestionável, a afirmação incorreta de que as ruínas de uma atalaia existente na localidade Forte Velho no município de Santa Rita seriam escombros da fortificação construída por determinação do espanhol Diego Valdés. Essa afirmação não se fundamenta em documentos ou registros históricos e nem mesmo atenta para a diferenciação na técnica e no material que foram utilizados na construção do forte e da atalaia. Assegura o Sumário das armadas que o forte era “de taipa” e localizava-se próximo
Ruínas da Atalaia do Forte Velho ▪ Imagem: Raffael Willian + Maurilialila / Wikimedia
à margem do rio (“lugar, por ser baixo”), ao contrário da atalaia que não foi construída em taipa e situa-se em um terreno alto. O Sumário também acrescenta que os espanhóis puseram “fogo ao forte” e deixaram “tudo arrasado”. Outro aspecto a ser considerado é o de que as atalaias, que eram postos de vigia e sinalização, nem sempre faziam parte de uma fortificação. Como exemplo, tome-se uma atalaia edificada na Baía da Traição no final do século 17 com “hua peça de artelharia com três soldados com seus mosquetes para darem avizo, assim ao capitão mor, como a mesma companhia de cavallos, e aos mais moradores daquella campanha para se ajuntarem e acomodarem a sua defensa”, conforme descrito em documento que tramitou em Portugal no Conselho Ultramarino. Por fim, meu saudoso amigo e mestre Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins, um dos mais rigorosos pesquisadores da História Colonial da Paraíba, conjecturava que a atalaia existente no Forte Velho seria uma construção possivelmente de meados do século 17, o século seguinte ao da construção da fortaleza levantada por Valdés.
Além do mais, o forte “velho” que dá nome à localidade de Santa Rita não se refere àquele forte construído pelo general espanhol. Com a descoberta do manuscrito do escrivão-mor da Armada de Valdés que veio à Paraíba, publicado em 2023 pela Editora da Universidade de Salamanca com estudo introdutório da historiadora paraibana Sylvia Brandão Ramalho de Brito, se tomou conhecimento de que no local os franceses tinham, antes da chegada de Valdés, uma fortificação com oito peças de artilharia e outros armamentos. Essa nova informação confirma o que já era conhecido através do insuspeito depoimento do holandês Elias Herckmans, que governou por quase três anos a Paraíba na primeira metade do século 17, e que trata da origem da denominação do lugar:
“o lugar chamado Forte Velho que foi dos Franceses, e aí faziam eles o seu negócio com os Potiguara ou índios da terra [...] Esse forte, apesar de estar bem guarnecido de soldados Franceses e de terem eles, além disso, os índios por amigos foi cercado e tomado pelos Portugueses”.
Conforme a narrativa do Sumário das armadas, quando a notícia da destruição do forte de São Felipe e São Tiago, “arruinado por os que tinham obrigação de defender”, chegou a Olinda “se juntou toda a vila às avemarias em casa do ouvidor-geral (cousa lastimosa!)” e começaram os preparativos para uma expedição à Paraíba para “ir-se fazer um forte, recuperar a artilharia e assentar a povoação”.
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No final do mês de julho, chegaram a Pernambuco “2 índios de aviso de Braço-de-Peixe ao ouvidor-geral, pedindo-lhe socorro contra os petiguares”. Braço-de-Peixe era um dos líderes de um grupo Tabajara que chegara ao litoral paraibano no início daquele ano. Os Tabajara eram inimigos dos Potiguara e estavam desavindos com os portugueses dos quais já haviam sido amigos. Por determinação do governador-geral do Brasil, o ouvidor-geral Martim Leitão fora para Pernambuco com a armada de Diego Valdés, “com todos os poderes bastantes, para efeito da conquista e povoação da Paraíba”. Aproveitando a oportunidade do apelo de Braço-de-Peixe, Martim Leitão decidiu enviar ao encontro dos Tabajara João Tavares, escrivão da câmara de Olinda que, “havia anos, ao mesmo Braço no sertão havia feito” contato.
No dia 3 de agosto, João Tavares chegava à barra do Paraíba “em uma caravela equipada e concertada para tudo”, com 12 espanhóis e 8 portugueses. A pequena expedição subiu o rio e, dois dias depois, se encontrou com “Braço-de-Peixe, e mais principais” dos Tabajara:
“Assombrados os petiguares, primeiro com alguns tiros, presumindo mais força fugiram e assentaram as pazes; e dadas suas dádivas e arreféns, saiu o capitão João Tavares, dia de Nsa. Sra. das Neves, por cujo respeito depois se pôs esse nome à povoação, e a tomaram por patrona, e advogada, debaixo de cujo amparo se sustenta”
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A reativação da amizade dos portugueses com os Tabajara seria de fundamental importância para o enfrentamento dos Potiguara e a colonização das terras paraibanas. Apesar do simbolismo daquele encontro realizado às margens do rio Sanhauá na data em que se homenageia a Nossa Senhora das Neves, nenhuma povoação foi iniciada naquele dia, nem mesmo um simples marco foi fincado em algum lugar e muito menos, como alguns chegam ao absurdo de afirmar, a Paraíba foi “fundada” naquele momento.
Em Olinda, “avisado logo o ouvidor-geral, se alvoroçou toda a vila”. Logo depois, chegavam 40 índios, “com embaixada do Braço-de-Peixe e dos principais, aos quais todos o ouvidor-geral em sua casa agasalhou, vestiu, e festejou, vestindo os cabeças”.
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De imediato, decidiu-se enviar um reforço de 25 homens para João Tavares, que ficara na Paraíba, e “vestidos finos para os principais, e grandes mimos” para os Tabajara. Somente em 15 de outubro, Martim Leitão partiria para a Paraíba com 25 homens a cavalo e 40 a pé “levando pedreiros e carpinteiros, e todos o recado necessário para fazer forte, e o que mais cumprisse; e chegou lá aos 29”. No dia seguinte à sua chegada à Paraíba, o ouvidor-geral saiu para ver locais onde pudesse começar a povoação, mas não conseguiu uma definição sobre o lugar. Na narrativa do Sumário das armadas, Martim Leitão “se recolheu à noite enfadado [...] encomendando a Nossa Senhora devotamente, foi Deus servido à sua intercessão, como padroeira daquela nova planta” e se concluiu que a povoação fosse assentada “naquela parte sobre o porto, onde agora está a cidade, planície de mais de meia légua, muito chão, de todas as partes cercada d’água, senhora do porto”.
Escolhido o local onde seria iniciada a povoação, começaram as providências para a construção de um forte na margem direita do rio Sanhauá, “com as costas no rio”, nas proximidades de um porto natural que existia, o “varadouro das naus”. O Sumário das armadas registra o início da construção da fortificação que ficaria com o nome de “Forte do Varadouro” ou “Forte da Cidade”
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e seria o marco inicial da futura Cidade de Nossa Senhora das Neves: “e tudo roçado e limpo, a 4 de novembro se marcou o forte, de 150 palmos de vão em quadra [...] os alicerces e cunhais só eram de pedra e cal, e o mais de taipa de pilão, de quatro palmos de largo”.
Deixando os trabalhos de construção do forte em andamento, Martim Leitão organizou uma expedição para combater os franceses que estavam instalados na Baía da Traição, de lá retornando somente em meados de janeiro do ano seguinte, encontrando a fortificação já quase concluída. Ao partir para Pernambuco, “a 20 de janeiro de 86”, o ouvidor-geral deixou João Tavares como capitão do forte “com 35 homens de peleja providos para 4 meses”. Com a defesa proporcionada pelo Forte do Varadouro, as primeiras casas da primitiva povoação de Nossa Senhora das Neves podem ter surgido naquele mesmo ano ou, mais provavelmente, no ano seguinte, em 1587.
Os relatos e os documentos da época relacionados com as jornadas para a conquista das terras do rio Paraíba sempre mencionam como o objetivo das expedições a ocupação do território para impedir a ação de traficantes franceses que, ajudados pelos Potiguara, retiravam pau-brasil da região.
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O chamado “pau de tinta” era uma madeira de grande valor comercial pela sua utilização no tingimento de tecidos. Mas, a partir de determinado momento, o açúcar suplantaria o pau-brasil como o produto mais valioso, do ponto de vista econômico, para o Brasil. E, em razão disso, o foco das expedições passou a ser não mais unicamente evitar a retirada de pau-brasil da área, mas ocupar com canaviais as fertilíssimas várzeas da bacia hidrográfica do rio Paraíba próximas ao litoral com a finalidade de produzir açúcar para exportação. O próprio jesuíta autor do Sumário das armadas ressaltava que as terras do Paraíba eram bastante apropriadas para as lavouras de cana: “Este rio [...] tem uma várzea [...] toda retalhada de esteiros e rios caudais de água doce, que podem dar mais de 40 engenhos de açúcar, por toda a terra ser singular para a cana”. E foi o que ocorreu.
Na narrativa do Sumário das armadas, em 23 de dezembro de 1586, Martim Leitão voltava novamente à “nossa povoação do Paraíba, a que os moradores chamam cidade de Nossa Senhora das Neves”. Desta vez, no comando de uma expedição para combater os Potiguara na serra da Copaoba,
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“aonde teve por novas que estava todo gentio com alguns franceses fazendo-lhes o pau-brasil para carga das naus”. Antes de partir para a serra, o ouvidor-geral provavelmente determinara, às expensas da Coroa, a instalação do primeiro engenho de açúcar da Paraíba, que foi denominada inicialmente como “Engenho d’El Rei”, localizado na margem direita do rio Tibiri, pequeno afluente do rio Paraíba. Um mês depois, Martim Leitão ao retornar da sua jornada à Copaoba foi ao Tibiri construir uma fortificação para proteger o Engenho d’El Rei, “que lá tinha começado”, e uma aldeia Tabajara que ficava nas imediações. É o que relata o Sumário:
“no fim do mês de janeiro de oitenta e sete, se foi o ouvidor-geral ao rio Tiberi, duas léguas acima da cidade, e ao longo do Paraíba, fazer o forte para o engenho de açúcar d’el-rei, que ele lá tinha começado, e para defender a aldeia do Assento-de-Pássaro, e mais fronteiras, com o qual se segurava tudo, e povoaria a várzea do Paraíba”
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Ao que tudo indica, ao mesmo tempo que se construíam as primeiras casas na nascente povoação de Nossa Senhora das Neves faziam-se também as primeiras plantações de canas-de-açúcar na Paraíba. Gilberto Freyre, em “A cultura da canna no Nordeste – aspectos do seu desenvolvimento histórico”, escrito de 1935, escreveu que “de Pernambuco foi a canna de assucar levada á Parahyba, onde encontrou terra excepcionalmente doce e fácil para a cultura”. A expansão do número de engenhos na Paraíba foi bastante rápida. Três anos depois da instalação, na margem do rio Tibiri, do “Engenho d’El Rei”, a primeira fábrica de açúcar paraibana, já existiam nas várzeas do rio Paraíba seis engenhos moendo canas e outro sendo construído.