Como acentuei na crônica passada, o ingresso de Rubens Nóbrega na imprensa se deu quando dei as costas ao batente das redações, da afanosa responsabilidade com a notícia, dificilmente isenta por completo do julgamento velado do repórter ou redator, por mais que busque a exatidão. Fica explícita, na ressalva que faço, a experiência particular de quem fez tudo para seguir o manual, mas precisaria cortar as mãos para cobrir, com isenção, o conflito agrário que se estendeu às portas da nossa capital desde a criação das Ligas Camponesas, abafado pelo golpe de 1964. Com João Manuel, Adalberto Barreto, Severino Ramos, Hélio Zenaide, vivemos situações absurdas para quem tem noção dos direitos alheios. E só depois daquela manhã abençoada de 1973, quando Marcone Gois, sem motivo relevante, me despachou desses cuidados, alguns tormentosos, é que vim saber do verdadeiro significado do chamado “bilhete azul”.
Com atraso inexplicável, entro na leitura de Memórias do Batente, de Rubens Nóbrega. O inexplicável não vem de graça: primeiro, pelo que Rubens passou a representar no período em que dei as costas à redação, despedido um ano antes de seu ingresso; depois, pela influência que sua consciência social passou a exercer na opinião pública, da qual sempre cuidei de fazer parte.
A crônica, a que é fruto da subjetividade, infunde bem mais vivência (e certamente por isso) do que a sua versão historiográfica. Coriolano de Medeiros, corógrafo no tempo em que esse nome dava mais prestígio, escrevendo tão seguro quanto o mestre B. Rohan, identifica-nos com a alma da terra, com o nosso jeito um tanto desligado de ser — mais pela crônica do que mesmo pelos seus elaborados estudos e pesquisas de estilo ensaístico.
Em maio de 1841, o presidente da Província, Pedro Rodrigues Chaves, dirige-se ao Governo Imperial pedindo “alguma quantia” para consertar o Palácio em que reside, nos termos seguintes, recolhidos por Irineu Pinto em suas Datas e Notas:
... Lucas Arroxelas, poeta e cronista a quem me dirijo e, sem que a tanto tencione, sobrevém Arroxelas, Antônio Augusto, a quem não pude barrar a surgir dos guardados mais vivos da memória.
Roberto Guedes, um dos fotógrafos deste jornal, arranca-me da preguiça, do cansaço de quem faz a mesma coisa há setenta anos, e tange-me com seu clique aos pináculos mais altos e agudos onde trepa e se deita a João Pessoa de hoje. Não dá para contar os andares. E não há mais a menor possibilidade de ser diferente. Fechou-se o horizonte para quem fica do lado de cá.
Não, o corredor não é o mesmo nem a porta que dava para a diretoria de João Batista Simões. Corredor por onde transparecia a esperança angustiada dos que se valiam e se valem como a última crença, a que vem do Hospital Laureano. Acesso que incorporei aos meus cuidados desde a campanha que comoveu o Brasil com o mártir ainda na cruz, nas últimas doses de fel da doença.
Sem sair daqui, volto novamente à casa de D. Nininha, em minha Alagoa Nova. Há mais de setenta anos, ela me viu passar, adolescente, com o Eu de Augusto debaixo do braço, receosa em fazer-me seu reparo do alto de sua janela:
— Você é muito novo ainda para ler essa poesia.
A posse justa, meritória, tal como se inscreve na letra estatutária de uma entidade acadêmica, não só merece como cobra a presença solidária, sobretudo de todo um plenário de confrades a se sentir prestigiado.
Temos uma boa notícia a mais dentro do esforço de preservação dos postais simbólicos e históricos da cidade, nesta fase alvissareira do governo do Estado e de sua capital: o Pavilhão do Chá vai ser restaurado. Aos que passam por lá e querem bem à cidade (e param para admirá-la), não deixa de ser um bom auspício.
Ontem, Luiz Augusto Crispim fez oitenta anos. Digo fez porque, enquanto houver leitor da obra que ele nos legou, o menino que nasceu em Tambiá estará vivo.
A chuva da última sexta só fez aumentar a minha dívida com a amplidão acolhedora de Campina Grande.
Naquela cidade me fiz; de lá saí para o que tinha de ser. Um pequeno caboclo de sítio, tirado de um socavão de desfiladeiros e matas fechadas que estreitavam a terra e o céu, o horizonte, a pequena porção de terra de um pai que não sabia ler, que assinava em cruz, no entanto consorciado com minha mãe, uma ex-beatinha da Casa de Caridade do padre Ibiapina, que a tudo via com energia e com os olhos feitos no Evangelho.
No exercício da presidência da APL, substituindo Juarez Farias, dispus-me a reordenar o memorial que Luiz Augusto Crispim dedicara a Augusto dos Anjos. Falei aos confrades e, com duas ou três exceções, foi o mesmo que falar às paredes. Todos ouviram, assentiram em silenciosa boa vontade e, de costas para o que se pudesse fazer, foram cuidar de sua literatura pessoal. Nada mal.
Um amigo me indaga sobre a crônica publicada há três semanas em que trato do meu apego a João Pessoa, em detrimento de outras cidades, a exemplo de São Paulo.
O problema não é das metrópoles, é meu, inteiramente meu. Em verdade não andei muito, mas das poucas vezes em que me achei fora de casa, achei-me, também, fora de mim. Não me encontro em qualquer das situações, mais cômoda e animada que pareça. A vontade é voltar, entrar na ruazinha estreita e sinuosa de Cruz das Armas, medir-me com o muro baixo, a casinha em que, andando a pé, avista-se o telhado de lodo e heras.
Em setembro de 1922, sete meses depois da Semana de Arte Moderna de São Paulo, Analice Caldas, professora e militante da imprensa entre nós, organiza um álbum, tipo enquete, com perguntas como “Qual a sua divisa? O que desejaria ser? Que pensa do feminismo?”. E entre uma dezena de outras, as duas seguintes, que dão motivo a estas linhas: “Quais seus escritores prediletos? Quais os poetas de sua preferência?”
O título é recurso que me ocorre, tirado de uma página de Severino Ramos dedicada à solidão povoada vivida por José Américo quando se recolhe àquela Tambaú do tempo e do livro de Walfredo Rodriguez.
“Oh! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!“
Só que os anos e séculos sempre os trazem de volta. E tornarão a voltar, seja no poeta menino que trina pelas cordas do sabiá no exílio além-mar ou do homem fiel ao menino e ao trinado agudo a ressoar do gume e penhascos da sua Aroeiras.
Casimiro de Abreu CC0 (adap)
Quantas vezes alcei voo de pássaro de quem sai de si, desta prisão que as duras leis da vida impõem, nas asas do único voo feliz que não consegue terminar.
Criança interna, todas as manhãs eu acordava e levantava às seis, saía tangido em fila para o banheiro coletivo, o frio serrano juntando-se ao gelo da água. Tudo por severa obrigação. Obrigado à missa em jejum, a só falar no refeitório após o deo gratias, a quatro horas de leitura e do dever de casa - oito tantos de disciplina para quatro de recreio – de repente só um sabiá de livro me salvava.
GD'Art
Minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá. Sempre o sabiá de livro a nos dar asas e poderes sobre as nuvens do céu e os limites da terra e do tempo.
Quantas vezes senti dúvida se não existia uma vida além da que me obrigava a ficar entre paredes, sem estrada à vista, o olhar pregado na sisudez do inspetor ou limitado aos muros do internato.
No salão de estudos, minha carteira ficava colada a um janelão aberto para o nascente, o sol benzendo-me com seu clarão e seu calor, sem que eu desse por ele. Sol é o que mais tínhamos e temos, crestando a roça e faiscando no seixo dos caminhos. Mas aquele sopro raiado de luz forte e carregado pela apanha dos ventos e dos cheiros para as páginas da antologia aberta nos versos de Casimiro e Álvares de Azevedo levaram-me com eles. E vim esbarrar aqui, muito pouco para os que sonham alto, mas nas nuvens para o menino matuto dos meus grotões.
Não senti surpresa diferente, agora aos noventa anos, ao dar com Serafim, reino encantado, que o janelão do Gmail veio deixar no quarto três por quatro que é meu universo de hoje.
GD'Art
Trata-se de um poema de dez estrofes, de onze a quinze versos cada, cuja leitura vai sumindo como tal à medida que a poesia feliz por ser a vida mesma vai imergindo em você. Por mais que o autor tenha levado a vida a exaltar a palavra, a consagrá-la em todas as situações e diferentes circunstâncias, mais a palavra ingressa no abstrato ou atinge a transcendência que se realiza, como esperava Augusto. E com as palavras mais simples como as que Rubem Braga apontou em Camões.
E parecendo tão vulgar: “Nasci numa tarde de chuva/ o Cariri era uma escuridão só.” Mas vá dentro, leitor e leitora amigos, e veja como sai!
Não sei se estou maltratando um autor da mais fecunda vocação poética e apurada consciência crítica como o mestre Hildeberto Barbosa Filho. Mas não tenho dúvida que Manuel Bandeira, sob os signos de hoje, não me faria sentir maior e mais pura emoção.
De fato. São Paulo fica muito longe, nem tanto pelas léguas de terras ou pelas milhas de voo como pelo que pesa na cabeça dos paulistas ou dos que a eles se acostam para a vida inteira. É o que sempre pensei.
Fui reencontrar a cidade das minhas relações, amizades, camaradagens ou dos meus respeitos, a cidade por dentro, na releitura de um livro da minha estante paraibana, memórias de Haroldo Escorel Borges. E voltei a me ver no que sempre fui sem forçar a natureza: justamente aquilo que na cultura do meu interior brejeiro as comadres e compadres chamam de “uma pessoa dada”, que se dá com todos. Suponho-me entre elas até porque comecei dado a uma família que me acolheu de corpo inteiro.
Era a minha estreia no Rio de Janeiro, levado no meio de uma delegação de militantes da secção local da União Brasileira de Escritores, uma das muitas entidades culturais dos anos 1950 que funcionavam a pretexto de justificar o patrocínio dessas iniciativas. Íamos participar de um festival de escritores, creio que o primeiro no Brasil, e me incluíram nessa delegação beneficiada pelos estímulos à cultura no governo Pedro Gondim.