A Hélder Moura Gramático, crítico, filólogo, poeta, Musaios viveu em Alexandria, no Egito, entre os séculos V-VI, tendo sido conte...

Leandro e Hero: fortuna e infortúnio amorosos

hero leandro mitologia musaio poesia grega
A Hélder Moura

Gramático, crítico, filólogo, poeta, Musaios viveu em Alexandria, no Egito, entre os séculos V-VI, tendo sido contemporâneo de Nonnos de Panópolis e de Colutos. É por meio de um poema seu que o mito, envolvendo amantes desventurados, persistiu na tradição clássica. À maneira de Homero – metro, dialeto, vocabulário –, Musaios compôs Hero e Leandro (Paris, Les Belles Lettres, 2003), a história dos dois amantes trágicos separados pelo Helesponto,
hero leandro mitologia musaio poesia grega
um epílion, ainda menor que O rapto de Helena do seu contemporâneo Colutos.

Na época em que Musaios escreve o poema, século V de nossa era, a forma e o estilo de que ele se utiliza são sem dúvida um anacronismo. Por outro lado, é uma demonstração da permanência da épica homérica e da cultura grega, sobretudo na temática, num mundo que, aos poucos, vai se tornando, predominantemente, cristão, no Ocidente, e islâmico no Norte da África e no Oriente próximo e médio. O poema Hero e Leandro sobrevive ao tempo e encontra a sua primeira edição impressa no fim do século XV, em grego, nas cidades de Veneza e Florença. Dentre as diversas repercussões que o poema conheceu, talvez a mais famosa seja a de Byron, com “A Noiva de Ábidos”, poema em dois cantos com 42 estrofes.

Poema curto com apenas 343 versos, Leandro e Hero obedece à disposição tradicional do poema épico, em Proêmio (Proposição e Invocação), formado pelos 15 versos iniciais; Narração, compreendendo os versos de 16 a 342, e o Epílogo, situado no verso 343.

hero leandro mitologia musaio poesia grega
Hero e LeandroJMW Turner, 1837 ▪ Tate Gallery, Londres
No proêmio, a invocação à deusa (Θεά, verso 1), embora de acordo com o que faz Homero na Ilíada, não confere, necessariamente, ao poema o estatuto de épico. Voltaremos a este assunto mais adiante. Ainda no proêmio, os dois personagens são identificados. Leandro é o navegador noturno (νύχιον πλωτῆρα, v.3), Hero é indicada pelo seu nome. Também já se indicam os nomes das duas cidades de onde provêm os dois amantes (v. 4) – Sestos (cidade da região sudeste na Quersonésia da Trácia) e Ábydos (cidade na Ásia Menor, a noroeste da Dardânia) – uma de frente para a outra, separadas pelo Helesponto (atual Estreito de Dardanelos). O poeta fecha o proêmio com uma nova exortação à deusa (v. 14-15), para celebrar o canto conjunto (συνάειδε, v. 14) da extinção do lume da lâmpada e da morte de Leandro, numa perfeita combinação entre os sentidos de apagar e morrer.

hero leandro mitologia musaio poesia grega
hero leandro mitologia musaio poesia grega

O proêmio, portanto, não só encaminha uma visão geral do poema, revelando que o amor de Leandro e Hero terá como obstáculo um braço de mar separando os dois amantes, mas também para a infelicidade que atinge os dois jovens, primeiro com a morte de Leandro, dita de forma clara (ὀλλυμένοιο Λεάνδρου, v. 15); depois com a morte de Hero, metaforizada na lâmpada cujo fogo se extingue (λύχνου σβεννυμένοιο, v. 15). O proêmio ainda informa o leitor sobre esse fogo que continuará a iluminar e guiar os amantes, vez que Hero é transformada por Zeus, em estrela do amor dos noivos (νυμφοστόλον ἄστρον ἐρώτον v. 10).

hero leandro mitologia musaio poesia grega
JJ Taillasson, S.XVIII
Em Hero e Leandro, o verso final (343), o epílogo, não revela qualquer possibilidade de um novo canto, conforme se vê em outros poemas épicos. Com a morte de Leandro, afogado pelo mar revolto, Hero se mata, jogando-se do alto da torre embaixo. O final, que privilegia a emoção sobre a razão, é, por conseguinte, lírico-trágico, apontando para a felicidade dos amantes post-mortem. Se não conseguiram a felicidade do amor em vida, na morte irão desfrutar do prazer eterno um do outro. Isto é o que se pode chamar de uma bela antecipação das atitudes do Romantismo exacerbado do século XIX:

ἀλλήλων δ’ ἀπόναντο καὶ ἐν πθμάτῳ περ ὀλέθρῳ.
(e gozaram um ao outro também completamente no extremo da ruína.)

É na narração que se apresentam os principais fatos: a apresentação dos dois amantes – Leandro e Hero – e seus dois símbolos: a torre a partir da qual Hero guiava o amante, e o estreito que Leandro atravessava para ir ter com a amada. Ele, encantador (ἱμερόεις, v. 20); ela, virgem (παρτένος, v. 20); ambos astros magníficos (περικαλλέες ἀστέρες, v. 22) de suas respectivas cidades, unidos por Eros e sua flecha que inflama (ὀιστόν φλέξας, v. 18-19). Brilho, fogo, paixão... e morte, são, pois, os ingredientes desse poema, que se pode,
hero leandro mitologia musaio poesia grega
Paisagem com Leandro e o marE. Kanoldt, 1883 ▪ Staatliche Kunsthalle Karlsruhe
dentro dos padrões da teoria moderna, definir como lírico-trágico e não como épico.

Na apresentação de Hero, nutrida por Zeus, recebendo em partilha seu sangue (διοτρεφὲς αἷμα λαχοῦσα, v. 30), e na sua condição de sacerdotisa de Afrodite, em Sestos, que temia o carcás ardente (φλογερὲν φαρέτρην, v. 40), vemos a situação estranha da jovem e bela sacerdotisa de Afrodite que teme ser flechada por Amor..., mas, em sendo um poema que se define como lírico, conforme já vimos, é normal que as dificuldades se interponham aos amantes. Amor só vale a pena se for dificultoso. O amor de Leandro e Hero é a melhor representação dessa dificuldade.

O encontro dos amantes se dá na festa nacional, em homenagem a Afrodite Citereia e a Adônis, o jovem amado por Afrodite e por Perséfone, mas morto numa caçada a um javali. A beleza de Hero se destaca pela brancura do rosto em contraste com o vermelho das faces, de tal modo que o poeta comenta que os ancestrais erraram em definir em três o número das Graças: em apenas um olho sorridente da jovem sacerdotisa veem-se florescer nada menos que cem Graças (v. 64-65). Lua, neve, botão de rosa, eis o que faz o brilho resplandecente de Hero, verdadeiramente digna de ser sacerdotisa da deusa da beleza e do amor (v. 66), distinguindo-se, entre todas, mostrando-se uma nova Afrodite (νέν διεφαίνετο Κύπρις, v. 68) e penetrando o tenro espírito dos jovens (Δύσατο δ’ἠιθέων ἁπαλὰς φρένας, v. 69),
hero leandro mitologia musaio poesia grega
Leandro despede-se de Hero, antes de nadar no HelespontoWilliam Hamilton ▪ Yale Center for British Art.
cujo desejo de ter Hero na sua casa como esposa é maior do que o de ser deus no Olimpo (v. 80-81). Se Hero é bela, graciosa, uma nova Afrodite, Leandro é o jovem sofredor (αἰνοπαθὲς, 86, atributo que se repete no verso 319) que por ela se apaixona e cujo coração foi domado pelas flechas inflamadas do amor.

É com uma mistura de admiração, impudência, medo e respeito (θάμβος, ἀναιδείη, τρόμος, αἰδώς, v. 99), fazendo jus à etimologia do seu nome, herói da tropa, que Leandro se aproxima de Hero, atraído pela sua beleza, com o coração ardendo da chama invencível do amor, que faz expulsar a vergonha, o pudor (v. 98), sendo a audácia amorosa a grande vencedora desse embate. É com audácia, portanto, (θαρσαλέως, v. 118) que Leandro conduz Hero, puxando-a pela túnica, para um dos recantos recuados do templo (v. 119), mesmo sob a tímida reação da jovem sacerdotisa, o que não o impede de beijar a perfumada nuca da virgem, demonstrando seu desejo (v. 133).

A fala de Leandro (v. 135-157) se resume em dois pontos: divinizar Hero por sua beleza, por isso a faz mais que cara a Afrodite, pelo lado sacerdotal, ou a Atena, pelo zelo com a sua virgindade, tornando-a filha de Zeus, igualmente às duas deusas referidas; e suplicar o amor de Hero, chamando sua atenção para o perigo de afrontar a ira de Afrodite. Como sacerdotisa de Afrodite, que Hero persiga os trabalhos da Cípria (v. 141), pois uma virgem não convém ao serviço desta deusa (v. 143). A sacerdotisa, persuadida da lei de Amor, deve cuidar-se para não despertar a ira da deusa (v. 157).
hero leandro mitologia musaio poesia grega
Amor (Eros)
Hero se deixa convencer pelas palavras do amado, ela também é atraída pela beleza do jovem. O amor, depois das primeiras dificuldades, domina o coração dos jovens amantes. O que ressalta no trecho em que a jovem se deixa convencer é o seu flagrante pudor, em conflito com o desejo doce, que lhe desperta Leandro, flechada que foi pela seta agridoce do amor (γλυκερὴν φωνήν, v. 172).

Com a rara habilidade de excitar mesmo uma pedra e conhecedor das palavras de muitos desvios em que se perdem as pessoas, Leandro é o proibido que atrai e atiça o desejo, ajudado pelo próprio Amor, o que a todos submete (πανδαμάτωρ, v. 200). Ágil em astúcia (αἰολόμητις, v. 198), Amor submete (δαμάσσας, v. 198) e cura (ἀκέσσεται, v. 199) os mortais, com as mesmas flechas, levando-lhes suas vontades e seus conselhos (βουληφόρος, v. 200). Após ferir Leandro, pois, Amor, lhe dá a eloquência de muitos artifícios (πολυμήχανον μῦτον, v. 202), para ajudá-lo a persuadir Hero.

hero leandro mitologia musaio poesia grega
Leandro prepara-se para atravessar o HelespontoDomenico Fetti, 1822 ▪ Kunsthistorisches Museum, Viena
Leandro se mostra, então, disposto a enfrentar a nado a onda que se infla selvagem do Helesponto, o mar inavegável. Movido pela força do amor – que o transforma em barco do amor (ὁλκάς ἔρωτος, v. 212) –, o jovem apenas pede que Hera o oriente com uma lâmpada e que cuide para que o vento não a apague. Mais do que as constelações, o brilho do amor da lâmpada de Hero será o guia deste fogo do amor impetuoso de Leandro. Úmido esposo (ὑγρος ἀκοίτης, v.207), marido de Hero, cingida de bela coroa (εὐστεφάνου πόσις Ἡρους, v. 220), eis como se apresenta o rapaz à amada. É importante observar a contraposição existente no poema, entre luz e trevas, com o amor sendo a luz que tira o ser humano das trevas da solidão, fazendo-o enfrentar as mais perigosas adversidades. Assim é que temos κνέφας (obscuridade, v. 211) e νύξ (noite, v. 207), se opondo a λύχνος (lâmpada), a ἀστήρ (estrela), a ἀναφαίνω (fazer brilhar, fazer ver) e a φαεσφόρος (que porta a luz),
hero leandro mitologia musaio poesia grega
Hero aguarda o retorno de LeandroEvelyn De Morgan, 1885
além da alusão às constelações do Boieiro, Órion e a Grande Ursa. Como resultado das palavras de Leandro, Hero concorda com núpcias secretas e com amores noturnos, com ambos passando, fervorosamente, a desejar as Sombras que servem o tálamo (θαλαμηπόλον ὄρφνην, v. 231). Brilho e sombra, as duas faces do amor: se o brilho guia o amor, a sombra protege este mesmo amor, numa complementação da metáfora, chamando a dualidade do oxímoro: o brilho da lâmpada guia a felicidade do amor, o mesmo brilho que causará a desventura dos amantes.

A lâmpada no seu duplo de ventura e desventura, de guia e perdição, anuncia os prazeres escondidos (εὐνῆς κρυφίης, v. 237) e é, a um só tempo, a causa futura de muitas lágrimas (λύκνοιο πολυκλαύστοιο, v. 236). Ambiguidade que o termo εὐνῆ carrega consigo, podendo significar tanto leito nupcial, prazeres do casamento, quanto tumba, na fusão de um amor que leva os amantes à ruína, à morte. Na sua ansiedade amorosa, Leandro brilha como a lâmpada acesa por Hero, mas tem consciência da adversidade que o cerca. Amor lhe parece tão terrível (δεινὸς Ἔρως, v. 245), quanto são amargas as ondas (πόντος ἀμείλιχος, v. 245) que o aguardam na travessia. Pouco a pouco, o poema, na sua natureza lírico-trágica, vai se definindo, dirigindo-se para o infortúnio. Do fogo inicial que move os amantes à morte que os envolve, o poema passa pelo desfrute dos prazeres sempre acompanhados de angústia e de esforço.

hero leandro mitologia musaio poesia grega
Hero e LeandroFulchran-Jean Harriet, 1796 ▪ Musée des Beaux Arts, Rouen, França
Confiando em Afrodite como filha do mar (v. Teogonia de Hesíodo), Leandro se atira ao mar, temendo mais o amor que lhe queima o peito do que as ondas abundantes do estreito. Reconhecendo o sacrifício do amante, Hero o chama e o acolhe no seu íntimo, em suas entranhas (κόλποις, v. 271), numa conotação claramente sexual, depois de banhá-lo e massageá-lo com perfumado óleo de rosas, para retirar o cheiro de mar do corpo. Hero, virgem durante o dia, faz-se mulher à noite, num casamento sem ritos. E prevalece a ambiguidade: como não sabem dos seus amores noturnos e clandestinos com Leandro, para todos e
hero leandro mitologia musaio poesia grega
A última vigília de HeroFrederic Leighton, 1880
para os pais, sobretudo, ela é, durante o dia, a virgem sacerdotisa de Afrodite. Já durante a noite, ela gozava com seu amante de uma Citereia clandestina, isto é, de um amor clandestino.

O poema se encaminha para seu final, uma vez tendo os amantes gozado os amores. A felicidade, qualquer que seja ela, tem o seu duplo de infortúnio. O inverno não intimida Leandro, mas é o inverno e seus ventos que apagarão a lâmpada que o guia, levando-o à morte. A lâmpada, que não deveria ser iluminada no inverno, torna-se, assim, não mais a chama dos amores (δαλὸν Ἐρώτων, v. 308), mas a luz dos destinados à ruína (Μοιράων, v. 308), forçada que fora Hero pelo desejo e pelo destino a acendê-la. Para a infelicidade de Leandro, Amor não consegue distanciar ou proteger os amantes contra o Destino. As suas preces a Afrodite, Posídon e Bóreas de nada adiantam. O mar revolto é mais forte do que o jovem e o engole. Hero, por sua vez, se atira da torre, para encontrar na morte o amado e a ele juntar-se para a eternidade.

hero leandro mitologia musaio poesia grega
Hero atira-se da torreDomenico Fetti, 1822 ▪ Kunsthistorisches Museum, Viena
A curta narrativa de Hero e Leandro nos apresenta um momento lírico denso, em que os contrastes e conflitos próprios ao amor são representados pela oposição luz e noite; desejo e pudor; vida e morte. Se Hero é o modelo da personagem da beleza divina e cheia de pudores, como bem o mostra a brancura de sua tez, contrastando com o rubor de suas faces, Leandro é o jovem impetuoso a quem os obstáculos mais excitam do que intimidam. Atravessar o Helesponto a nado, todas as noites, é prova de amor suficiente para seduzir a mais indiferente das mulheres. A felicidade, porém, é sempre momentânea e fugaz. Os jovens esperam e anseiam pela noite, mas a noite metafórica da morte é o que vai prevalecer sobre ambos. É aí que reside o caráter lírico-trágico do poema. Como bem afirma Aristóteles, na Poética (1451b), não é o metro que faz o poema, mas a fábula. Se o metro de Hero e Leandro é o hexâmetro dactílico da épica, a fábula não trata da ação guerreira que move o herói, mas da ação do desejo que impele os amantes aos doces trabalhos de Afrodite, deusa que ignora os prélios sangrentos.

hero leandro mitologia musaio poesia grega
Hero lamenta a morte de LeandroW. Etty, 1829 ▪ Tate Gallery, Londres
Esta curta fábula lírico-trágica, além de ter inspirado o já citado poema de Byron, também chamou a atenção de Tomás Antônio Gonzaga, que põe na boca de Dirceu o discurso do enfrentamento das dificuldades, quaisquer que sejam elas, em nome do amor. Assim é que na Lira XIII da primeira parte de Marília de Dirceu, estrofes 2, 12 e 13, respectivamente, o mito é incorporado à longa fala sedutora de Dirceu para Marília, de beleza tão divinizada quanto a bela Hero. Dirceu, tanto quanto Leandro, se mostra capaz de sacrifícios por sua amada. Descer aos Infernos ou enfrentar o mar encapelado tem sempre a compensação dos prazeres de Eros e Afrodite. Se há um pudor maior no poema de Gonzaga, que resume o encontro dos dois amantes a uma conversa, o poema de Musaios é bem mais explícito, conforme já vimos, em nos apresentar a recompensa do esforço: ser recebido no íntimo da amada e aí depositar seus esforços. O prazer recompensa o infortúnio, parece-nos dizer os poemas. Assim é o amor: Leandro e Hero ou Marília e Dirceu não estão, por mais idealizados que sejam, imunes ao jugo do amor e à força maior do destino, quase sempre cruel para os amantes.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Lendo e aprendendo. Pergunto-me se na contemporaneidade existirão amores trágicos como os de antigamente. Parabéns, Milton. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Gil! Ainda existem, meu amigo, só que não se transformaram em poesia. Veja-se o exemplo de Sadi e Ágaba.

    ResponderExcluir

leia também