O senhor Antônio, aposentado, observa a fila do supermercado. Enquanto aguarda, seu olhar perde-se na prateleira de arroz. Não calcul...

Criaturas pensantes

O senhor Antônio, aposentado, observa a fila do supermercado. Enquanto aguarda, seu olhar perde-se na prateleira de arroz. Não calcula preços, não compara marcas. Ele rememora, num lampejo súbito, uma discussão antiga na oficina: "O que é o Justo?".

Era perto da hora do almoço, o cheiro de graxa no ar, e Zé, o mecânico mais velho, soltara a pergunta como quem solta fumaça do cigarro. Na época, Antônio rira. "Coisa de filósofo desocupado", pensara.
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Agora, décadas depois, vendo um cliente reclamar furioso porque o "estoque mínimo" do arroz preferido acabara, a pergunta volta, teimosa. Justiça seria garantir o arroz de todos? Ou respeitar o estoque? É um pensamento filosófico, cru e despretensioso, nascido no calor do cotidiano.

A filosofia, essa senhora de toga que imaginamos trancada em bibliotecas empoeiradas, discursando sobre conceitos abstratos, na verdade, é uma vizinha atenta. Ela não espera ser convidada para jantares sofisticados; entra sorrateira pela porta dos fundos, nos momentos mais prosaicos.

Quando Carla, exausta, se pergunta se deveria aceitar aquela promoção que a afastaria dos filhos por mais horas, ela está diante de uma encruzilhada ética. Aristóteles e sua busca pela "eudaimonia" (a vida plena) sussurram em seu ouvido. O que pesa mais: o bem material ou o bem relacional? Qual caminho leva à verdadeira realização? Não é um tratado, é um gemido silencioso no metrô lotado.

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Quando Pedro discute política acaloradamente com os amigos no bar, não é apenas sobre partidos ou impostos. É sobre o que é o Bem Comum. Platão e sua República invisível pairam sobre as latinhas de cerveja. É sobre como conciliar liberdade individual e organização social. Hobbes e Locke, sem querer, viram tema de mesa de boteco. A filosofia fornece as perguntas fundamentais que estruturam o debate, mesmo quando os nomes dos filósofos são desconhecidos.

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Quando sentimos aquela angústia vaga num domingo à tarde, um vazio que nem Netflix nem redes sociais preenchem, pode ser Sócrates cutucando: "Estás cuidando de tua alma? Conheces a ti mesmo?". É a filosofia questionando o sentido, convidando à introspecção, mesmo que só resulte num suspiro profundo diante da janela.

O valor da filosofia no cotidiano não está em dar respostas prontas, ela raramente as tem. Está em nos equipar com as ferramentas certas para pensar o mundo e a nós mesmos. Ela é o antídoto contra o pensamento automático, o questionador incômodo da obviedade. Ensina-nos a buscar sentido, encontrar coerência, propósito e beleza, mesmo nas pequenas coisas, conectando a experiência pessoal a questões humanas universais.

É a filosofia que nos impede de sermos apenas consumidores passivos da realidade, robôs programados pela rotina e pelo senso comum. Ela nos lembra, discretamente, na fila do banco, no conflito familiar, na escolha profissional, na contemplação de um pôr-do-sol, que somos criaturas pensantes, capazes de interrogar, duvidar, buscar significado. Não é um luxo para intelectuais. É um kit de sobrevivência mental para qualquer humano que queira navegar as complexidades da existência com um pouco mais de lucidez e, quem sabe, um pouco mais de sabedoria.

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No fim, o senhor Antônio escolheu outro arroz, sem drama. Mas a pergunta sobre a Justiça ficou, como uma pedrinha no sapato. Não mudou o mundo, mas mudou, um pouco, o jeito como ele olha para a próxima fila, para a próxima reclamação. A filosofia, afinal, não precisa de púlpito. Basta um instante de pausa, e uma mente aberta ao espanto. Ela está sempre à mão, como uma bússola invisível no bolso do casaco, pronta para nos ajudar a encontrar o Norte quando nos perdemos no mapa do dia a dia.

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