No último dia 27 de julho, foi celebrada a memória litúrgica de São Tito Brandsma (1881-1942), um frade camelita holandês, que enfren...

Tito Brandsma, o padroeiro dos jornalistas — e a pintura que ganhei de um monge budista

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No último dia 27 de julho, foi celebrada a memória litúrgica de São Tito Brandsma (1881-1942), um frade camelita holandês, que enfrentou o regime nazista e morreu no campo de concentração de Dachau. Canonizado pelo papa Francisco em 2022, ele é o primeiro jornalista profissional elevado à honra dos altares pela Igreja Católica.

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Tito Brandsma (1881—1942), sacerdote carmelita e professor de filosofia, canonizado pelo papa Francisco em 2002. ▪ Fonte: Nederlands Carmelitaans Instituut — NCI (adapt.)
Entre a cruz e a caneta

Nascido Anno Sjoerd Brandsma, em 23 de fevereiro de 1881, na província da Frísia, Tito era filho de camponeses abastados e profundamente devotos, Tito Brandsma e Gisge Postma. Dos seis filhos do casal, apenas uma não seguiu a vocação religiosa.

Aos 11 anos, ingressou no Seminário Franciscano Menor, mas foi na espiritualidade carmelitana que ele encontrou sua verdadeira vocação. Aos 17 anos,
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O jovem Tito Brandsma, 1990s ▪ Fonte: NCI
entrou no convento carmelita de Boxmeer, onde fez sua profissão religiosa e adotou o nome de Tito, em homenagem ao seu pai e ao discípulo de São Paulo.

Foi ordenado sacerdote em 1905, aos 24 anos. No ano seguinte, foi enviado para Roma para cursar o doutorado em Filosofia na Universidade Gregoriana. De volta à Holanda três anos depois, dedicou-se ao ensino de Filosofia e ao jornalismo. Colaborou com mais de 20 jornais locais e nacionais, escrevendo não apenas sobre religião, mas também sobre temas sociais e políticos. Em 1923, ajudou a fundar a Universidade Católica de Nimega (atual Radboud), onde se tornou reitor em 1932.

Uma voz contra o nazismo

Quando o exército nazista invadiu a Holanda, em 10 de maio de 1940, o nome do Frei Tito já figurava nas listas da Gestapo como um inimigo a ser combatido.

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Maio de 1940: o exército alemão invade a Holanda.
O religioso não se intimidou ante a invasão estrangeira. Muito pelo contrário. Tanto nos jornais, quanto na cátedra universitária ou mesmo no púlpito da igreja, denunciava a tirania do nazismo, definindo-o como “pagão” e comparando-o à “peste negra”.

No livro Tito Brandsma: o mártir da liberdade (Edições Paulinas, 1992), o autor Giovanni Ciravegna reproduziu um trecho de uma carta na qual o frei expôs a familiares a estratégia alemã de “controlar toda forma de comunicação, refrear todos os meios de transmissão, reprimir toda expressão de liberdade”:

“A imprensa e o jornalismo não procedem como desejamos. Existem dificuldades. Fora das igrejas, a imprensa é o primeiro púlpito do pensamento católico; é a força contra as violências inimigas, porque não apenas responde aos que gritam contra nós, como também prega positivamente a verdade, dia por dia”.
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Tito Brandsma, na Holanda, 1930s ▪ Fonte: NCI
Os bispos holandeses, alinhados com a postura de Tito, protestaram publicamente contra a perseguição aos judeus e proibiram os sacramentos a quem colaborasse com o regime nazista. Nomearam Tito como consultor eclesiástico para a imprensa católica. Investido dessa condição, o religioso elaborou uma carta endereçada aos diretores e redatores-chefe dos diários católicos, orientando-os a recusar toda e qualquer cooperação com o nazismo. Instava-os a conservar o caráter católico de suas publicações, sob pena de multa, suspensão ou até mesmo supressão de jornais. A carta terminava com a frase: “Deus tem a última palavra e recompensa o servo fiel”.

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Tito Brandsma e correligionários, Holanda, 1940s ▪ Fonte: NCI
A atitude subversiva do religioso atraiu a fúria dos oficiais nazistas. Giovanni Ciravegna também reproduziu o trecho de uma carta do chefe do escritório da imprensa nazista na Holanda, Janke, ao seu superior, o general Schmidt:

“Estamos informados de que [...] o padre católico Tito Brandsma de Nimega viaja por todo o país, por ordem dos bispos, convidando as direções e os chefes redatores da imprensa católica a tomar parte nesta campanha de protesto. Visto ser oportuno responder imediatamente a esta ação com uma contra-manobra, proponho que Pe. Tito Brandsma seja preso de súbito e colocado no campo de concentração”.

Prisão e Martírio

Pouco mais de um ano depois da invasão alemã, Tito recebeu voz de prisão no convento de Boxmeer, sendo levado para o cárcere na cidade holandesa de Scheveningen. Era o dia 19 de fevereiro de 1942. Durante quase dois meses, a cela de nº 577 tornou-se o novo convento do carmelita. Ali, ele rezava, escrevia meditações sobre a Via-sacra, compunha poesias e chegou a iniciar uma biografia de Santa Teresa d’Ávila.

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Tito Brandsma, retratado na prisão. ▪ Fonte: NCI
No cárcere, foi instado por um dos interrogadores a explicar por escrito a tenaz oposição dos holandeses ao nazismo. Giovanni Ciravegna reproduziu o seguinte trecho:

“Os holandeses são possuidores de uma fé madura e disso deram prova em muitas ocasiões, tanto os protestantes quanto os católicos.
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Se necessário, daremos a vida por nossa religião. O movimento nazista é considerado pelos holandeses um insulto a Deus, pela violência praticada contra suas criaturas, e também uma ofensa às gloriosas tradições da nação holandesa. Deus abençoe a Holanda. Deus abençoe a Alemanha. Deus conceda que estes dois povos estejam novamente, muito em breve, um ao lado do outro, em paz, unidos no reconhecê-lo e no adorá-lo, pela saúde e prosperidade de ambos”.

Em março de 1942, foi transferido para realizar trabalhos forçados em Amersfoort, e, em junho, para o campo de concentração de Dachau – praticamente uma sentença de morte.

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O campo de concentração de Dachau, após a libertação pelos soldados norte-americanos, em 1945. ▪ Fonte: Memorial da Segunda Guerra
Destinado ao bloco 28, juntamente com outros mil sacerdotes e religiosos de diferentes países, Pe. Tito é para todos conforto e esperança. Quando possível, convida todos a rezarem juntos, entendendo ser esta a única pregação possível: ‘Não nos resta outra coisa a não ser pôr em prática o que aprendemos e ensinamos aos outros’”.

Em Dachau, a extenuante jornada de trabalho começava às quatro da manhã. Frei Tito caminhava por duas horas até chegar ao local onde haveria de revolver a terra, arrancar a grama e
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Campo de concentração de Dachau, durante a Guerra. ▪ Fonte: Memorial da Segunda Guerra
transportar saibros e pedras por longas onze horas.

Por conta de sua frágil compleição física e pelas violentas agressões sofridas em Dachau, ele não suportaria muito tempo. Com os pés inchados por conta de um edema e com uma grande desinteria, foi enviado para a enfermaria do campo, de onde não mais voltaria.

Enquanto era atendido pela enfermeira, entregou-lhe um pequeno terço de contas de madeira que trazia consigo:


Tito ficou inconsciente por dois dias. O médico ordenou à enfermeira que lhe aplicasse uma injeção de ácido fênico. Era por volta das 14 horas do dia 26 de julho de 1942 quando teve uma parada cardíaca e morreu. Tinha 61 anos.

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Memoriais às vitimas do Holocausto e o Convento Carmelita do Sangue Sagrado, construído no local do campo de concentração de Dachau. ▪ Fonte: dachau.de
Canonização e o quadro de Taishin

A canonização de São Tito Brandsma ocorreu em 15 de maio de 2022, pelo Papa Francisco, na Praça de São Pedro, em Roma. Ele foi reconhecido como santo após a Igreja Católica confirmar um milagre atribuído à sua intercessão: a cura de um sacerdote carmelita de um “melanoma metastático dos linfonodos”, em 2004, nos Estados Unidos.

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O autor (DIR.) e o monge Taishin, no campus da UFPB.
Poucos meses depois, recebi um presente especial: um ícone de São Tito Brandsma pintado pelo meu colega de trabalho na Universidade Federal da Paraíba, Ivonaldo Dantas, carinhosamente chamado de Ivo pelos amigos. O curioso é que Ivo é monge Zen-budista, tendo recebido o nome religioso de Taishin, que significa “mente sem medida”, “coração imenso”. Eu prefiro chamá-lo de “bonzo” Taishin, termo tradicionalmente usado em português para se referir aos monges budistas.

Ivo — ou Taishin — pertence à comunidade Zen-budista Daissen em João Pessoa, que mantém um templo no bairro de Jaguaribe. Desde março ele está fazendo um treinamento de um ano no Japão. Ivo é um dos grandes amigos que a UFPB me apresentou, e seu nome religioso não poderia defini-lo melhor. Sua trajetória é singular: ele iniciou sua jornada religiosa no catolicismo como monge beneditino, teve experiências com os cartuxos e jesuítas, passou por uma crise de fé, e, muitos anos depois, encontrou no zen-budismo o caminho que procurava. Prometo fazer um perfil seu para o ALCR quando retornar de sua licença.

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Ícone de São Tito Brandsma, pintado pelo monge Taishin. Acervo do autor
Taishin pintou o ícone de São Tito Brandsma num forro de gaveta que achou no lixo. Na iconografia bizantina, a cor dourada que envolve o santo mártir representa a luz de Deus. O vermelho, presente no nome e no halo que adorna sua cabeça, simboliza o sangue do sacrifício e o amor – porque o amor de São Tito Brandsma foi a causa principal do seu martírio.

São Tito está vestido com o hábito carmelita. Ele traz na mão direita uma cruz bizantina, um tipo de cruz cristã com três travessas horizontais, sendo a inferior inclinada. Na mão esquerda, segura um pergaminho no qual se lê: “A verdade no púlpito da imprensa”. Taishin se inspirou numa das frases de São Tito: “A imprensa, depois dos templos, é o primeiro púlpito para ensinar a verdade. É a força da palavra contra a violência das armas”.

No canto inferior esquerdo está a assinatura de Taishin na grafia japonesa: o caractere (Tai), que significa “grande”, e, logo abaixo, o caractere (shin), que significa “coração”.


Na biografia de São Tito Brandsma, Giovanni Ciravegna narra que o santo valorizava o diálogo inter-religioso, “fazendo-o com muito amor, em atitude de constante fidelidade à Igreja católica e de total abertura em relação às pessoas pertencentes a outras confissões religiosas”. Enquanto católico praticante, sinto-me assim também em relação a Taishin. O papa Francisco, que canonizou São Tito Brandsma, falava da necessidade de se construir pontes, não muros.

Enfim, resta pedir que São Tito Brandsma interceda por todos os jornalistas nestes tempos de tantas incertezas. Que ele também possa nos ajudar a construir pontes e a resistir a todo tipo de totalitarismo.

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