Há palavras latinas que se incorporaram ao léxico português, seguindo as regras ortográficas da nossa acentuação, como superávit (do pretérito perfeito do verbo superare, “sobrar”), déficit (do presente do indicativo do verbo deficere, “faltar”), hábitat (do presente do indicativo do verbo habitare, “morar”), hábeas (de habeas corpus, “que tenhas o corpo”, do verbo habere, “haver,ter” + corpus = corpo), fórum (do neutro latino forum, i, “praça pública”),
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quórum (do genitivo plural do pronome relativo qui, quae, quod, “o qual”, “a qual”, “o qual”), etc.
Está certo que expressões ou partes de expressões latinas, como ad hoc, curriculum vitae, in limine, statu quo, etc. se submetam (ainda que com restrições), às normas gramaticais do latim, uma vez que, embora partes de expressões, mantêm sua coesão sintática. Estranhamente, o Aurélio registra status quo, desrespeitando a lição de Paulo Rónai, no livro Não perca o seu latim, editado pela Nova Fronteira, a mesma do Dicionário, e feito com a colaboração do próprio dicionarista! Statu quo é parte da expressão “in statu quo ante” (no estado em que estava antes). Dizer ou escrever “status quo” é uma impropriedade. Status é nominativo; statu é ablativo. Ambos os termos da expressão statu quo estão no ablativo.
Os defensores do plural campi (nominativo) para campus, no entanto, incorrem em duas contradições: l) aí, o respeito à gramática do latim deveria implicar respeito à declinação toda; dever-se-ia, pois, dizer “vou ao campum” (acusativo singular), “estou no campo” (ablativo singular), “o governo deu verba extra aos vários campis” (dativo plural); não há razão para que apenas no nominativo se respeite a norma; 2) quem diz campi não deveria dizer o quórum, uma vez que quorum significa “dos quais”, genitivo plural do pronome relativo qui (masculino),
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quae (feminino), quod (neutro)... Por que respeitar a gramática latina por um lado (e parcialmente) e desrespeitá-la por outro?
Se a ideia é respeitar a gramática latina, então o plural de habitat teria de ser habitant; e o de superavit, superaverunt. O leitor poderá contestar que aí se trata de verbo substantivado. Concordemos. Mas, se o escrúpulo é grande assim, por que o acento em déficit ou em superávit, por exemplo, já que não havia acento em latim? Será que expressões latinas obedecem realmente à sintaxe latina? A expressão de cujus não tem sentido em latim, pois significa literalmente “de cuja”, que também não quer dizer nada em português. De cujus é parte da frase Is de cujus successione agitur (“aquele de cuja sucessão se trata”). Cujus é genitivo do pronome relativo acima referido, forma singular equivalente ao plural genitivo quorum. Em português, “de cujus” designa o defunto, o falecido, algo distante de sua significação original.
Ora, se escrevemos quórum e fórum, com acento, por que não aportuguesamos também campus e não escrevemos com acento: câmpus? Se o plural de campus é campi, por que o plural de bônus não é boni, o de ônus não é ônera,
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o de fórum não é fora, de acordo com o latim? Aliás, foi por oposição a domus (casa) que fora passou a ter o sentido atual: quem não estava em casa deveria estar “nas praças públicas”.
O ideal seria aportuguesar também o substantivo campus e torná-lo invariável em número, exatamente como outros nomes terminados em -s em sílaba átona, como lápis, pires, ônus, bônus, ônibus, simples, reles, por exemplo. Seria uma solução melhor que o pretensioso e erudito campi, que, na verdade, não respeita a gramática latina. Antes serve para esnobação de novos ricos, ou, para sermos mais exatos, dos rastaqueras que Molière satirizou na figura do seu personagem, o Sr. Jourdain, na sua comédia em prosa Le bourgeois gentilhomme. Por que aportuguesar campus, como invariável, no plural, se se pode esnobar e complicar dizendo eruditamente campi? Os rábulas adoram.