Eu já pensei em parar de fuçar os costumes, os acontecimentos e as artes do mundo como tenho feito em publicações quase furtivas, des...

A vida como ela foi

shakespeare romeu julieta sinatra
Eu já pensei em parar de fuçar os costumes, os acontecimentos e as artes do mundo como tenho feito em publicações quase furtivas, dessas avessas à consagração de mitos, peças e fatos. Acontece que não resisto às histórias “não oficiais”, aos enredos agora soprados, também, pelos ventos da Internet.

Antes, nós nos valíamos apenas de edições raras, ocasionais, em papel e tinta, para vasculhar intimidades, redesenhar perfis, detectar mentiras, ou impossibilidades. Presentemente, é o computador e o smartphone, sobretudo eles,
Shakespeare
que mais nos trazem o lado oculto da vida como, realmente, ela foi. A ampliação dessas fontes fez de mim um moleque em loja de doces extasiado, extasiado.

Desisti da desistência, mas constato, pesaroso, que isso tem um preço. Por exemplo, nunca mais vi Romeu e Julieta com aqueles meus primeiros sentidos por mais que ainda me emocionem e envolvam. A mim e à torcida do Flamengo, dado que esse drama tem encantado gerações e gerações ao longo dos séculos, em todas as línguas e direções da Rosa dos Ventos.

Para que fui me inteirar de que aquele belo e doce par não escovaria os dentes e federia como o diabo se escapados da ficção para o mundo real nos idos do Século 16? Nem aqueles dois nem, aí sim, o gênio que os pariu, William Shaskepeare, o maior escritor do idioma inglês, o Bardo do Avon, o dramaturgo mais influente do mundo, como é tido, merecidamente.

Aquela Verona, minha gente, estava mais de 400 anos distante da massificação das escovas de cerdas de nylon, tais como a conhecemos. Isso foi invenção do americano Robert Hudson, lá por volta de 1938. A pasta um tanto parecida com a que hoje temos até que veio antes, se merecer crédito a informação de que surgiu por obra e graça de outro americano, um camarada de nome Washington Sheffield. Ele a teria feito com giz e sal, em 1850, ainda assim muito longe dos Capuleto e Montecchio. À falta da escova podia-se usar o dedo.

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G. Gostiaux, Séc. XIX
Preciso ler os livros das senhoras Katerine Ashenburg (O lado sujo da limpeza) e Virginia Smith (Limpo: Uma história da higiene pessoal) dos quais ouvi falar. Preciso me inteirar, mais profundamente, de como a Igreja com sua influência social e política entronizou a imundície nos costados da Idade Média.

Difícil aceitar que tomar banho já foi abrir o corpo para o diabo. Que o Papa Gregório I isso proibia e que São Francisco tomou apenas um em toda a vida. Também não é fácil admitir que o Palácio de Versalhes tinha cocô pelos corredores e que força humana nenhuma era capaz de fazer Luís 14 tomar algum banho que não fosse por ordem médica. E o que dizer daquele recado de Napoleão para sua Josefina? “Retorno a Paris, amanhã. Não se lave”.

Simon Francois Ravenet
E pensar que os humanos, antes disso, já teriam sido muito mais limpos. Leio que os chineses do Século 15 possuíam escova feita de ramos de bambu e pelos de porco, embora disposta, cada uma delas, ao uso familiar. Também se conta que a aristocracia romana, no tempo dos Césares, mantinha escravos com a tarefa de limpar-lhes boca e dentes com uma mistura de ervas e cinzas de ossos.

Outras leituras dão-me conta de que ninguém, antes e depois de Cristo, tomava tanto banho quanto gregos e romanos. Banhos coletivos, demorados, todos com pouca, ou sem roupa nenhuma, em salões imensos.
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Charles-Louis Clérisseau
Talvez advenha disso a repulsa dos santos e papas aos banheiros e piscinas em geral. Estariam, ali, as muitas portas do inferno.

Ah, a belíssima Grace Kelly... Muito mais para cá, os jornais e revistas me falaram do casamento dos sonhos, o mais icônico dos matrimônios, aquele que a levou à Cathédrale Notre-Dame Imaculée de Mônaco onde receberia a aliança caríssima e seria beijada com o ardor das grandes paixões pelo príncipe Rainier.

Pois, sim. Não fosse a festa bancada pelo pai da noiva, o casório não teria aquele luxo espantoso, aquela dimensão inacreditável. É o que também leio.

Isso e mais a história de que Rainier não caía nas graças do sogro, homem de grandes posses. A este último desagradariam tanto o príncipe quanto sua Mônaco, terra de cassinos, um paraíso fiscal com a jogatina disposta à lavagem de dinheiro sujo provindo do crime organizado e da depravação em escala planetária.

Mas não foi isso o que mostraram as matérias da época e, de resto, quase tudo o que, posteriormente, veio a ser publicado no ocidente acerca da plebeia que obtivera a dádiva do principado. Lembro da minha e de outras mães devorando, entre suspiros, as páginas d’O CRUZEIRO com essa história muito mal contada.

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Palácio de Mônaco
Quanta informação as leituras paralelas, quase clandestinas, podem nos trazer. E como redefinem a história, os modos e o caráter de tanta gente.

O lado obscuro de John Kennedy, Sinatra e a Máfia, o namorador Tancredo, a vida íntima de Getúlio, são exemplos de temas facilmente revirados, hoje em dia, nos muitos textos produzidos por pesquisadores diligentes, ou por autores de biografias não autorizadas. Pensando bem, as mais críveis têm que dispensar a autorização dos biografados.

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Kennedy
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Sinatra

Que delícia saber que o “vai tomar banho”, insulto nosso de cada dia, teve sua origem na catinga dos colonizadores portugueses, todos, Cabral no meio, da turma do Gregório. Naqueles idos, mais do que insulto isso era uma ordem. Os índios, passada a curiosidade do primeiro contato, já não os aguentavam.

Que bom que o escrivão da frota de Cabral não tenha poupado o rei de tantos e tão primorosos detalhes do achamento disto que hoje temos por Brasil. Na carta a Dom Manuel Caminha não tratou do quanto fediam ele e os seus. Mas não escondeu a admiração pelos nativos: “São tão limpos e tão gordos e tão formosos que não podem ser mais”. Será que foram esses mesmos índios que de pais para filhos repassaram aos nossos matutos o hábito do juá, plantinha milagrosa que vai da cura do bafo ao da gripe?

Mas, concordemos: sem dúvida nenhuma, qualquer história fica mais interessante e saborosa quando incorpora o segredo, a impolidez, o deboche. Não é não?

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  1. Exato, caro amigo.
    Em qualquer desvão da história que visitemos vamos encontrar menções sobre esse assunto, que embora tenham as mais diversas versões, terminam sempre em um ponto básico: a falta de higiene de nossos antepassados.
    Infelizmente temos, ainda, a lamentar, que embora persista o encantamento da história, também ainda persiste a ojeriza aos hábitos mais salutares dos banhos e outros procedimentos sanitários.

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  2. Parabéns pelo brilhante texto, mts curiosidades e td com o viés histórico 👏👏👏👏

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