Não, nem tudo deve estar perdido. Ainda parece haver solução para a encrenca em que se meteu a humanidade. As guerras sucessivas e a de...

Alma de beija-flor

solidariedade ajuda
Não, nem tudo deve estar perdido. Ainda parece haver solução para a encrenca em que se meteu a humanidade. As guerras sucessivas e a destruição gradativa do planeta – fenômeno resultante da devastação das florestas, da degradação do solo, da poluição atmosférica e do envenenamento das águas – podem findar antes que findemos todos. Assim, também, o ódio, a intolerância, a cobiça, a soberba, a inveja. Virá a ultimação, certamente, de todas as perversões, todos os maus sentimentos que, individual ou coletivamente,
nos afastam do decoro, da decência e de Deus, para os que nele creiam.

O que me faz confiar na reversão dos nossos mais gritantes problemas, até o ponto de um mundo menos injusto, mais pacífico e igual, pode ser explicado pela fábula do beija-flor, a avezinha que tentava apagar o fogo na mata com pingos d’água retirados da lagoa e lançados do bico às chamas. “Faço a minha parte”, respondeu ao resto da bicharada que dela então zombava.

Acreditem, há à nossa volta muita gente do tipo beija-flor. Pode ser identificada por atitudes simples e gestos corriqueiros. Um bebê nos braços maternos deixou cair a chupeta e alguém a recuperou antes que a mãe pudesse fazê-lo? Um jovem ofereceu a cadeira a um idoso num ônibus superlotado? A sacola tombada teve de volta os pertences espalhados no chão com o auxílio de mãos obsequiosas?

E o que dizer dos heróis anônimos que arriscam a própria sorte no socorro a vítimas dos desastres ocorridos num mundo que ainda reserva aos desafortunados suas áreas de risco?

Pois bem, vejo muito além dos bons ensinamentos, da boa educação doméstica, da preleção de padres, pastores, ou rabinos, em cada auxílio desses. Vejo corações de passarinhos.

Poucas coisas me tocaram tanto quanto a recente leitura do pequeno texto de uma jovem médica, no Facebook. Até porque a conheço desde o nascimento. A boa sorte a pôs na minha vizinhança e no círculo de amizades do mais novo dos meus três filhos.

“Você sabe que não precisa fazer isso, não é? Não é trabalho de médico. Deixa para lá”, ouviu ela de alguém (um supervisor, deduzo eu) quando limpava, para a aplicação dos curativos, as escoriações de um paciente hospitalizado após a queda da motocicleta. E se indignou: “Por não ser meu trabalho o paciente fica sujo? Fica esperando por tempo além do devido pois isso também não seria trabalho do enfermeiro encarregado de levá-lo à sala de exame? É trabalho de quem?”. Não poderia ser de modo melhor esta sua conclusão: “Não era trabalho de médico. Era trabalho de gente”. Que bela menina.

Dias atrás, eu me atrapalhava com as luvas de plástico fino e transparente dispostas à clientela de um restaurante, tipo self service, instalado na Praça da Alimentação do principal shopping center da cidade. Não havia como me utilizar daquilo, até que uma mocinha veio em meu socorro. Pediu-me para deixar os dedos semiabertos, abriu aquela luva com uma facilidade espantosa e com ela me vestiu a mão direita que logo mais me serviria ao uso de conchas, colheres, garfos e pinças sobre os balcões térmicos com suas carnes, cremes, grãos, massas e saladas. O moço que a acompanhava sequer observava a cena. Não tive tempo de apanhar o prato e os talheres individuais. Ela o fez por mim com
o desvelo de uma filha e, de pronto, se despediu.

Deixou-me agoniado. Como explicar o que me ocorrera? Teria eu cometido o vexame de não a ter reconhecido de encontros passados, em algum lugar? Assim fosse, aquele anjo poderia estar com os pais numa recepção qualquer, dessas em que se reúnem velhos colegas de Redação, ou amigos feitos, ocasionalmente, em lançamentos literários e coquetéis.

Quando resolvi abordá-la, já não mais se encontrava à mesa situada a poucos metros da minha. Ela e seu acompanhante sisudo já haviam dali partido com as pressas da juventude. Como eu gostaria de revê-la, saber de suas origens, o que estuda, onde vive, o que a fez olhar para mim daquele jeito e me socorrer com modos de filha.

Atino, porém, agora, que todos conhecemos pessoas assim: afáveis, solícitas, prestimosas. São agentes do amparo. Não raramente, são seres distintos dos advindos, como eles, do mesmo ventre e do mesmo teto.

Nenhuma educação familiar nem religiosa, nenhuma herança genética os compele à bondade. Isso é coisa do bom instinto e dos bons propósitos. Essa gente vem ao mundo desse jeito: anjos sem asas, mas com a alma daquele beija-flor da fábula. Vem a fim de que não percamos de todo a fé na humanidade. Assim creio.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também