A infância já foi feita de papel colorido e ponteiras de coqueiro. Refiro-me àquela hastezinha, àquela nervura central na extensão de ...

Tempos de cravos e rosas

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A infância já foi feita de papel colorido e ponteiras de coqueiro. Refiro-me àquela hastezinha, àquela nervura central na extensão de cada folha. Essas duas coisas trabalhadas com tesoura e cola rendiam papagaios de altos voos.

Falo das pipas, ou raias, assim conhecidas noutras paragens. Colado o papel nas ponteiras armadas em losango, bastava ajustar o cabresto, confeccionar o rabo com retalhos de pano e encontrar linha no armazém da esquina, ou na gaveta das mães. A depender do volume do novelo, aquilo quase nos permitia arranhar as nuvens.
Este avô analógico, com seus exageros, tem contado isso ao neto digital.

A infância, na verdade, já foi feita de piões, bolas de gude, carrinhos de lata, ou de madeira, digo eu a quem agora me escuta sem bater as pestanas. Quatro ou mais latinhas de leite em pó preenchidas com pedrinhas (para ganho de peso) e enfileiradas após furos na tampa e no fundo (para transposição do arame necessário à amarração) nos propiciavam belos trens.

Os ônibus e caminhões surgidos do fabrico em quintais e terreiros tinham feixes de mola confeccionados com aspas metálicas, aquelas que sustinham algumas embalagens e caixas. E tinham volantes de arames grossos e compridos manejados de fora, posto que em suas cabines não cabiam motoristas de verdade, por pequenos que fôssemos.

As virolas de pneus rendiam motos tocadas a pedaços de pau. Empurradas com batidas ininterruptas elas se equilibravam, mundo a fora, na velocidade das nossas pernas. Uma roda só? Não importava. A fantasia nos fornecia o resto. E tínhamos modelos épicos, a exemplo da Harley-Davidson, da Triumph, ou da Indian, todas vindas dos Estados Unidos com barulho capaz de fazer tremer o chão.

Falo ao meu embevecido neto do tempo em que o tempo governava os brinquedos. Havia a temporada do pião, da bola de gude, dos carrinhos e do papagaio.

Já contei por aqui o quanto me impressionava o mundo por mim visto da janela do trem: o real, o que me conduzia, ida e volta, para os estudos primários no Recife desde a casa dos meus pais, na cidadezinha onde vivíamos. Estação após estação, a meninada parecia combinar o mesmo tipo de brincadeira, seja nas férias de junho, seja nas de dezembro. O avanço dos anos e a decorrente compreensão das coisas me fariam perceber, enfim, que tudo dependia do sol, do vento e da chuva. Quem soltaria papagaio no inverno?

E a vida não era menos risonha para as meninas com suas bonecas, algumas de confecção doméstica, feitas de pano por mães, ou avós, mas com requintes e vestes para Barbie nenhuma botar defeito. Também, com seus jogos de pedrinhas e carretéis. Mais tarde, quando começavam a afinar a cintura, as garotas entoavam cantigas de roda e escondiam anéis nas mãos fechadas dos meninos, a fim de que o restante do grupo adivinhasse quem os recebia.

Miguelzinho consegue perceber o quanto eram bons aqueles dias nos quais o cravo brigava com a rosa e os escravos de Jó jogavam caxangá.


Preciso dizer, porém, que este avô grudento e de conversa comprida não trata disso para convencê-lo, nem a quem quer que seja, de que os nascidos no passado tiveram infância melhor do que a dos recém-chegados ao mundo.

O septuagenário que sou entende que todas as épocas têm seus costumes e encantos. As brincadeiras de agora não são menos proveitosas à garotada. Equivalem-se, então, a tudo aquilo que alegrou os da minha e de outras passadas gerações.
Se afastada da fome, da doença e das tragédias, toda criança estará feliz entre os seus e com os jogos que lhe disponham o computador, o tablet e o smartfone.

Torço para que meu neto possa falar aos netos que lhe virão da infância que agora tem. Isso, quando suas memórias estiverem no fundo de uma caixa de lembranças igual àquelas onde eu, por minha vez, e seu pai, depois de mim, depositamos os brinquedos e os corações.

Provoco o assunto e ele me responde: “Você vai ver. Meus netos vão brincar com carrinhos que voam e robôs que andam e falam”.

Verei não, querido. O que te conto advém do desejo de que o tempo também não sepulte a emoção e o encantamento. Assim te falo a fim de que sejas o mensageiro de coisas idas. Se desse modo também o fizerem os teus contemporâneos, é possível que o robô dos teus netos saiba de saudades e diga palavras de amor. Que assim seja.

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  1. Anônimo3/3/24 08:58

    Belo texto, Frutuoso. O avô amoroso e o hábil escritor de mãos dadas. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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    1. Anônimo3/3/24 10:58

      Gratíssimo, Gil. Um abraço, Frutuoso.

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