A infância já foi feita de papel colorido e ponteiras de coqueiro. Refiro-me àquela hastezinha, àquela nervura central na extensão de cada folha. Essas duas coisas trabalhadas com tesoura e cola rendiam papagaios de altos voos.
Falo das pipas, ou raias, assim conhecidas noutras paragens. Colado o papel nas ponteiras armadas em losango, bastava ajustar o cabresto, confeccionar o rabo com retalhos de pano e encontrar linha no armazém da esquina, ou na gaveta das mães. A depender do volume do novelo, aquilo quase nos permitia arranhar as nuvens.
A infância, na verdade, já foi feita de piões, bolas de gude, carrinhos de lata, ou de madeira, digo eu a quem agora me escuta sem bater as pestanas. Quatro ou mais latinhas de leite em pó preenchidas com pedrinhas (para ganho de peso) e enfileiradas após furos na tampa e no fundo (para transposição do arame necessário à amarração) nos propiciavam belos trens.
Os ônibus e caminhões surgidos do fabrico em quintais e terreiros tinham feixes de mola confeccionados com aspas metálicas, aquelas que sustinham algumas embalagens e caixas. E tinham volantes de arames grossos e compridos manejados de fora, posto que em suas cabines não cabiam motoristas de verdade, por pequenos que fôssemos.
Falo ao meu embevecido neto do tempo em que o tempo governava os brinquedos. Havia a temporada do pião, da bola de gude, dos carrinhos e do papagaio.
Já contei por aqui o quanto me impressionava o mundo por mim visto da janela do trem: o real, o que me conduzia, ida e volta, para os estudos primários no Recife desde a casa dos meus pais, na cidadezinha onde vivíamos. Estação após estação, a meninada parecia combinar o mesmo tipo de brincadeira, seja nas férias de junho, seja nas de dezembro. O avanço dos anos e a decorrente compreensão das coisas me fariam perceber, enfim, que tudo dependia do sol, do vento e da chuva. Quem soltaria papagaio no inverno?
Miguelzinho consegue perceber o quanto eram bons aqueles dias nos quais o cravo brigava com a rosa e os escravos de Jó jogavam caxangá.
Preciso dizer, porém, que este avô grudento e de conversa comprida não trata disso para convencê-lo, nem a quem quer que seja, de que os nascidos no passado tiveram infância melhor do que a dos recém-chegados ao mundo.
O septuagenário que sou entende que todas as épocas têm seus costumes e encantos. As brincadeiras de agora não são menos proveitosas à garotada. Equivalem-se, então, a tudo aquilo que alegrou os da minha e de outras passadas gerações.
Torço para que meu neto possa falar aos netos que lhe virão da infância que agora tem. Isso, quando suas memórias estiverem no fundo de uma caixa de lembranças igual àquelas onde eu, por minha vez, e seu pai, depois de mim, depositamos os brinquedos e os corações.
Provoco o assunto e ele me responde: “Você vai ver. Meus netos vão brincar com carrinhos que voam e robôs que andam e falam”.
Verei não, querido. O que te conto advém do desejo de que o tempo também não sepulte a emoção e o encantamento. Assim te falo a fim de que sejas o mensageiro de coisas idas. Se desse modo também o fizerem os teus contemporâneos, é possível que o robô dos teus netos saiba de saudades e diga palavras de amor. Que assim seja.