Outro dia, relendo um ensaio de Carlos Heitor Cony, deparei-me com uma velha questão que alguns críticos gostavam de levantar sobre a obra de Machado de Assis: uma suposta ausência de paisagem. Vejam só. Como se isso fosse um defeito, uma falta que o diminuía como autor. Ao invés de verem nisso uma novidade do gênio machadiano, comparado com autores de seu tempo tão afeitos à descrição exaustiva dos ambientes externos e internos, viram nisso uma debilidade, uma fraqueza literária. Coisas da época, certamente.
Edgar Degas
De fato, Machado não se detém na paisagem, no arvoredo, e no colorido da cena urbana carioca, tão exuberante em praias, montanhas e florestas, como sabemos. Poderia ter se detido, claro, como outros o fizeram. Mas optou por não, exercendo uma preferência e um direito seus. Afinal, o criador é livre para incluir ou excluir isso ou aquilo em suas narrativas. Agora, se ele o fazia como uma autodefesa, para não se deparar com “as cruezas da rua e da vista também crua dos morros plebeus”, isto já é outra história. Trata-se tão somente de uma hipótese e nada mais que isso.
Rio de Janeiro (1907)
Gustavo Dall'Ara
Gustavo Dall'Ara
Sua notória preferência pelos interiores das casas e, mais ainda, pelo que ia no íntimo de seus personagens, seus dramas grandes e pequenos, seus vícios e suas eventuais virtudes, sua psicologia, enfim, pode estar ligada simplesmente a uma escolha de ponto de vista literário, a partir do qual baseou seu olhar autoral e criou seu mundo ficcional. Poderia ter feito outra opção. Mas aí correria o risco de não ter se tornado quem se tornou, ou seja, o maior escritor brasileiro até hoje. Ou pode refletir o seu temperamento reservado, sua timidez e sua discrição.
Grant Wood
Fizeram falta à obra machadiana a paisagem, o arvoredo, o sol e as cores de que falou Gilberto Freyre? Parece-me que não. Pelo contrário. Ao evitar descrições extensas – e estéreis – dos ambientes externos, Machado voltou sua atenção e sua fina perspicácia de observador da fauna humana ao que realmente interessa em literatura: os interiores das casas e das pessoas que nelas habitam e coabitam. As tramas da vida acontecem mais em casa que na rua. É um fato. Em Dom Casmurro, por exemplo, que acrescentaria ao enredo a deslumbrante paisagem do Rio? É suficiente ao leitor saber que Bentinho morou em Matacavalos e depois no Engenho Novo.
Não por coincidência, deparei-me com uma frase que consta do Quincas Borba e que pode lançar alguma (ou muita) luz sobre o assunto: “A paisagem depende do ponto de vista”. Aí temos a opinião do autor. O exterior subordinado ao interior. O objeto
Carl Holsøe
Entretanto, mesmo prescindindo de minuciosas e cansativas descrições, a cidade do Rio de Janeiro está muito presente, qual um personagem, na obra machadiana. Os vários bairros do século XIX e o centro da cidade, tudo comparece aos textos de Machado, é só procurar. Mas apenas de forma rápida, sem detalhamentos excessivos. A cidade é somente o pano de fundo, não lhe cabe nunca o papel principal.
Cony refere-se a Zola, que escreveu duzentas páginas para descrever um jardim. Renan chamou-o de gênio por isso. Deus me livre de tais genialidades perdulárias. Por esse parâmetro, Machado seria um bronco. Concluo então, machadianamente, que, como as paisagens, de fato tudo (ou quase) depende do ponto de vista.