Com o título traduzido como "Uma bela vida", em cartaz nos cinemas, o filme Le dernier souffle aborda, com leveza, a finitu...

''Le dernier souffle'', um filme de Costa-Gavras

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Com o título traduzido como "Uma bela vida", em cartaz nos cinemas, o filme Le dernier souffle aborda, com leveza, a finitude, o medo do fim, os cuidados paliativos, e aponta para o importante aumento da população idosa na França.

A história — baseada no livro Le dernier souffle (O último suspiro, em tradução literal), de Régis Debray e Claude Grange — é recheada de citações literárias, de Balzac e François Mauriac a Foucault, Prévert, Freud e Platão.
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Com isso, Costa-Gavras conseguiu imprimir poesia e leveza em um tema sensível, complexo e de difícil abordagem. Uma pena não poder anotar — nem sequer memorizar — aquelas citações incríveis, que servem tão bem para pensar a finitude.

Então pesquisei algumas frases sobre a morte de alguns escritores nomeados por Costa-Gavras:

Mauriac é um autor cujo tema da morte é muito presente em sua obra. Ele sugere que talvez a morte não seja um fim, mas uma transformação, uma passagem para outra forma de vida. Para Balzac, a finitude está ligada à perda da alegria de viver, da paixão pela vida. Em A arqueologia do saber Foucault mostra que o homem não é atemporal, e diz que o homem (enquanto conceito) é entendido como uma construção histórica. Surge como uma figura como uma figura produzida por saberes específicos de certos períodos, e serve-se do conceito de Nietzsche sobre a morte de Deus para dizer que o homem é produzido para substituir esse Deus que não funciona mais.

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Mauriac ▪ 1885—1970
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Balzac ▪ 1799—1850
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Nietzsche ▪ 1844—1900

O livro (no qual se baseia o filme) é um diálogo entre o escritor Régis Debray e o médico Claude Grange. Publicada em 2023, pela Gallimard, a obra explora os ensaios de um médico especialista em cuidados paliativos e as reflexões filosóficas de Régis Debray em torno do fim da vida.

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Régis Debray
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Claude Grange

O filme começa por um exame de rotina de um escritor que descobre uma pequena mancha no pulmão. Alguns médicos aconselham a biópsia, outros indicam apenas o acompanhamento com exames periódicos para observar se houve mudanças na mancha. Com essa preocupação o escritor começa a refletir sobre o fim da vida e decide compartilhar o cotidiano de um médico
Denis Podalydès (Fabrice), em Uma bela vida (2024).
especialista em cuidados paliativos para compreender os aspectos humanos, filosóficos e morais de uma morte assistida e depois escrever a respeito.

Para abordar o tema discursivo, Costa-Gavras adaptou o livro colocando em cena o cotidiano de um Serviço de cuidados paliativos, no qual médicos, enfermos e familiares acompanham o fim da vida do paciente. Ao observar as situações clínicas, as ocorrências médicas do estado final do paciente e o comportamento dos familiares, o escritor passa a compreender melhor e obtém matéria para seu livro, ao mesmo tempo que se vê sob a pressão do seu próprio caso: o medo da evolução da mancha no seu pulmão. “Se pergunte sempre, e tente responder você mesmo”, aconselha o médico.

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Hiam Abbass (Sra. Broquet), Denis Podalydès (Fabrice) e Kad Merad (Dr. Masset), em Uma bela vida (2024).
Intenso, comovente, belo. Mais que isso, o filme instrui sobre o direito do paciente de decidir sua própria partida, a individualidade de cada um e a dignidade de ter voz para decidir. A atividade dos cuidados paliativos mostra uma Unidade Clínica ou um Corpo de Médicos qualificados e capacitados diante da compreensão do fim, e que são habilitados para apoiar e fornecer ajuda ao paciente que decide partir quando a ciência já não responde pela cura, pois, em geral, os médicos querem prolongar a vida, prisioneiros de uma maneira de ver a ciência, voltados mais para a performance médica do que para uma vida que já não faz sentido.

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Costa-Gavras, em 1970, aos 37 anos.
Em uma entrevista, o cineasta diz que também se inspirou em um poema de Jacques Prévert: À l’enterrement d’une feuille morte (No enterro de uma folha morta). Dois caramujos vão ao enterro de uma folha morta numa bela noite de outono. Mas, quando chegam, já é primavera e as folhas que estavam mortas estão ressuscitadas. Há aí o tema da transformação, ou da renovação.

Todos conhecemos a cinematografia de Costa-Gavras: Z; A confissão; Estado de sítio; Um homem, uma mulher; uma noite; Hanna K; O quarto poder etc., sempre mostrando os conflitos sociais e humanos, os dois lados dos conflitos, a dignidade, a grandeza do que é humano...

Neste filme, ele mostra a reflexão, a ética e o respeito diante da escolha individual de quem decide partir quando a ciência já não consegue responder pela cura. Aprende-se sobre o que é moralmente necessário para nortear decisões em momentos tão decisivos da vida.


Li, na imprensa francesa, que, com esse filme, Costa-Gavras, “no crepúsculo da vida (ele está com 92 anos), assina uma vibrante celebração da vida”.

No filme há uma tentativa de desdramatizar a morte. Em um convite à resiliência, e com a dignidade da personagem representada por Charlotte Rampling, ele nos convida a nos reconciliar com nossa própria finitude.

Costa-Gavras, em 2025, aos 92 anos.
Em nossa sociedade, na qual a ciência constitui um tipo de religião capaz de tudo explicar e tudo resolver, esse momento-chave permanece tabu.

O cineasta exprime um verdadeiro louvor a favor da ajuda para morrer, quando a ciência já não consegue curar. Em entrevista, Costa-Gavras comenta que ainda trabalha, mas, quando isso não for mais possível, ele perderá o gosto pela vida, e então se pergunta por que receber ajuda para permanecer e não a ajuda para partir como acontece na Bélgica e na Suíça? afirma isso ao criticar a França, que ainda não oferece a possibilidade legal da morte assistida. Diz que, em grego antigo, a palavra eutanásia significa boa morte.

Raros são os filmes que conseguem abordar o tema da morte com tanto brilho. Penso na obra-prima de Ingmar Bergman: O sétimo selo. Um cavaleiro que retorna das Cruzadas e se vê diante da peste negra reflete sobre o significado da vida. Pensa em ganhar tempo e propõe à morte um jogo de xadrez. A morte concorda, pois sabe que sairá vencedora.

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Fonte: Imdb
Bengt Ekerot (A morte) e Max von Sydow (Antonius Block) em O sétimo selo (1957), de Ingmar Bergman.
Em seu livro O perigo de estar lúcida, a escritora e correspondente do jornal El Pais, Rosa Montero, que participa da FLIP deste ano, fala sobre a loucura que acomete escritores e artistas, ressaltando que viver a velhice é manter a curiosidade, mas que morrer é um fato profundamente humano... faz parte da vida.

Régis Debray é um filósofo e escritor francês com uma longa lista de obras publicadas. Nos anos 1960, foi para Cuba, engajou-se na política e seguiu Che Guevara na Bolívia.

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