Hiperativos, imperativos. Comecei a semana dizendo “não” para poder dizer “sim” a um outro “eu”, que não se manifesta e que está cansad...

Hiperativos, imperativos

psicanalise vontade eu interior
Hiperativos, imperativos. Comecei a semana dizendo “não” para poder dizer “sim” a um outro “eu”, que não se manifesta e que está cansado de ser demandado – e sufocado – pela vontade alheia. Cancelei compromissos que me impus para atender o outro, retirei cursos da lista, me desinscrevi de canais de Youtube, risquei livros da lista, doei alguns, suspendi a assinatura de algumas plataformas de “streaming”, organizei computador, pastas digitais, documentos, tudo isso na tentativa de organizar minha mente.

psicanalise vontade eu interior
Mia Couto Fronteiras do Pensamento
Tenho evitado novos compromissos – não como desistência da vida, mas como forma de me apropriar daquilo que me convoca e que já é muito. Alguém disse que simplicidade é desejar uma coisa só. Estou longe de ser simples, sou demasiadamente desejoso, sedento e, portanto, angustiado. Estou recalculando a rota, aprendendo a dizer não àquilo que me exterioriza, que me retira da minha essência e me aparta de quem desejo ser. Diz o poeta Mia Couto: “Entre o desejo de ser/ e o receio de parecer/ o tormento da hora cindida”.

A “hora cindida” é disputada pelos inúmeros estímulos daquilo que o ser humano criou na tentativa de preencher seus vazios e suprir as necessidades inventadas para nos esquecermos do essencial. Está cada vez mais desafiador manter o equilíbrio em meio à sociedade neoliberal. Por isso, é preciso almejar uma vida que funcione de fato — não no sentido restrito de cumprir funções, pois estas são passageiras, mas no de encontrar significado e propósito.

psicanalise vontade eu interior
Pedro di SantiCelyn Kang
De acordo com o psicanalista Pedro di Santi, nossa energia alterna entre o mundo externo e a introspecção, mas somos constantemente levados para fora, o que nos priva do descanso e da assimilação. Isso impede a consolidação de memórias e conhecimentos, dificultando até distinguir o que é verdadeiro ou falso diante do excesso de informações. Isso implica dizer que sequer sabemos diferenciar as nossas amizades, quem e o que merecem a nossa atenção, haja vista que estamos perdendo nossa capacidade interpretativa e, por conseguinte, nosso poder de contemplação.

O verbo “contemplar”, para além de “admirar”, tem a acepção de “levar em conta, considerar”. Se não assumimos uma postura contemplativa diante da vida, então estamos descredibilizando nossas experiências e tornando-as apenas um tempo vazado – e apressado – de tal maneira que essa dessensibilização tem feito muita gente ansiar pelo fim de tudo...

O fluxo incessante de conectividade nos impossibilita o aprendizado oriundo da espera e do vazio. Como resultado, não se aprende a ter paciência, a lidar com o tédio e com a frustração. Quando não desenvolvemos essa competência, tornamo-nos reativos, agressivos e passamos a acreditar que a vida existe para nos servir e pouco servimos para a vida. Contudo, como diz a frase atribuída a Mahatma Gandhi: “Quem não vive para servir, não serve para viver”. Antes de sermos na coletividade, é preciso refletir sobre o que significa ser indivíduo.

psicanalise vontade eu interior
Donald Winnicott @casadosaber.com.br
Donald Winnicott, psicanalista britânico, nos lembra que a saúde mental está profundamente ligada à capacidade de estar só — não no sentido de isolamento, mas como uma habilidade interna de sustentar a própria presença sem a necessidade de se evadir. Estar só é reconhecer-se sem a mediação constante do outro ou da máquina, é aprender a suportar o vazio sem colapsar, é resistir à exigência de estar sempre em função.

Na contramão disso, vemos crescer a concorrência consigo mesmo: o sujeito não apenas disputa espaços com os outros, mas também com sua própria versão idealizada. O “eu” de ontem já não basta para o hoje; é preciso superar-se sempre, manter-se produtivo, visível, conectado. Essa corrida constante gera esgotamento psíquico e físico — o chamado Burnout. A mente, ao não encontrar pausas nem espaços de refazimento, adoece.

Se a vida tem se tornado insustentável, talvez seja hora de nos perguntarmos: o que estamos sustentando? E, mais importante, o que ainda vale a pena sustentar? Talvez o silêncio, a pausa, a presença. Talvez menos metas e mais sentido.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Perfeito, Leo. Seu minimalismo é sábio - e necessário, pelo menos de vez em quando. É preciso tempo para nós mesmos, é preciso silêncio e um pouco de solidão para nos reencontrarmos. Parabéns e obrigado. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir

leia também