Numa das costumeiras visitas a Pilar, a pequena cidade do Baixo Vale do Rio Paraíba, ouvi de um ex-secretário municipal, pessoa a quem muito estimo, o desejo de levar à Câmara dos Vereadores o processo de concessão do título que faria de mim, oficialmente, um cidadão pilarense. Ele descobrira o que poucos dos meus amigos sabem: nascido em outras paragens, cheguei à Terra de José Lins do Rego, aos seis meses de idade, quando meu pai ali se estabeleceu como panificador.
Vista aérea de Pilar-PB, na primeira metade do Século XX. A cidade, localizada às margens do rio Paraíba, é o local de nascimento do escritor José Lins do Rego (1901—1957) ▪ Fonte: facebook
Divisa entre os estados da Paraíba e de Pernambuco, no trecho que atravessa as zonas urbanas de Ibiranga (distrito de Itambé-PE) e da cidade de Juripiranga (antigo distrito de Pilar-PB).
Mas vamos aos fatos. Meu registro de nascimento dá-me como nascido em Pernambuco. Determina, com precisão cartorária, a casa sob cujo teto eu vim ao mundo, em Serrinha, nome então dado ao núcleo urbano formado pela soma de duas povoações: Ibiranga, distrito da pernambucana Itambé, e Juripiranga, à época pertencente a Pilar.
A calçada da padaria do velho Frutuoso, meu avô, emendava-se à da mercearia do meu pai, bodegueiro, na ocasião, antes que padeiro também se tornasse. Sou pernambucano por conta disso. Por ter calçada itambeense. Ainda hoje é assim: basta atravessar a rua e se pisará na Paraíba. A diferença é que Juripiranga libertou-se de Pilar, a antiga sede. Virou cidade.
Divisa entre os estados de Pernambuco e da Paraíba, marcada simbolicamente por uma fileira de paralelepípedos que percorre as ruas de Ibiranga (distrito de Itambé-PE) e de Juripiranga-PB. ▪ Fonte: GMaps
Amélia e Noel, avós maternos do autor.
S. Juca, pai do autor.
É que, passado o resguardo, minha mãe punha-se a ajudar o marido no atendimento aos fregueses, razão pela qual eu era despachado, com mamadeira e fraldas, aos zelos da cunhada. Meu pai, em pessoa, encarregava-se disso. O problema é que assim o fazia sem aviso nenhum: invadia o quarto da irmã adormecida e me punha ao seu lado. Os chutes e tapas era o que a despertavam, entre satisfeita e apreensiva. E se, durante o sono, virasse sobre mim?
Pessoalmente, acho que eu não corria qualquer risco. Os anjos não pesam. Com o passar dos anos, o avô que me tornei e de quem os desígnios divinos já haviam subtraído pai e mãe, ainda teve a oportunidade do feliz convívio com a tia que o acalentou. Ela se foi no dezembro de 2015, aos 94 anos de idade, sóbria, absolutamente, sóbria. Eu estava próximo dos 70.
D. Vininha, mãe do autor
Ouvir suas histórias, folhear velhos álbuns de fotografias, descobrir manuscritos da minha avó (mãe dela), reencontrar-me (e aos primos) em velocípedes e bicicletas remoçavam, nessas ocasiões, meu corpo e meu espírito. Em tempos de sufoco, visitá-la foi, de fato, uma terapia. Desgraçadamente, pais, mães, tios e tias costumam faltar – involuntariamente, é claro – àqueles aos quais a Organização Mundial da Saúde inscreve no capítulo da terceira (e última) idade.
Tem sido assim comigo, desde que ela se foi: um sujeito carente de acalantos, não de títulos de cidadania, porquanto bem sei de onde sou e de onde venho. Sei a quem pertenço e a quem me dou. Repito: sou pernambucano por uma questão de calçada.
Ao amigo Rubens Nóbrega, que me sugeriu o tema.



















