Campina Grande, final da década de 1940. A intensa vida noturna da cidade refletia os últimos anos de fastígio do comércio do algodão. No entorno do imponente Cassino Eldorado (que o descaso com o patrimônio cultural reduziu a ruínas) diversos estabelecimentos transacionavam outro tipo de mercadoria que não era o “ouro branco, que faz nossa gente feliz e que tanto enriquece o país”, cantado no baião de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, o produto que ficou como um dos símbolos da antiga Vila Nova da Rainha.
Cassino Eldorado, em Campina Grande: ontem e hoje.
“Fez? Ele fez a música? Eu não tinha ideia que alguém fazia uma música, eu pensava que a música vinha assim do ar. Ele falou compor, mas eu também não entendia a palavra compor”.
Naquela época, o rapaz que se chamava Antônio Barros Silva ia semanalmente ao povoado de Queimadas, então distrito de Campina Grande, onde, em 1930, ele havia nascido. Em uma das vezes, em que ele fez a viagem tangendo um jumento resolveu tentar fazer, durante a caminhada, uma música inspirada em um título de um filme que estava passando no Cine Capitólio e que era “Acordes do Coração”
Acordes do Coração (1946)
Desde criança, Antônio Barros já demonstrava uma ligação inerente com a música. Gostava de cantar dentro de uma lata vazia para ouvir o som da sua voz. Como não era muito de ligar para as tarefas escolares acabou logo cedo se envolvendo mesmo com a música. Aprendeu a tocar pandeiro e passou a ganhar algum dinheiro tocando na zona boêmia de Campina Grande e, depois, em Patos. Em outubro de 1950, com a inauguração da Rádio Caturité de Campina Grande, foi contratado como pandeirista da emissora, onde permaneceu por quase dois anos.
Em seguida, Antônio Barros se mudou para o Recife com o propósito de ser tornar marinheiro, mas não conseguiu o seu intento porque não tinha o curso primário concluído nem o físico exigido para o ingresso na Marinha. Passou a viver de pequenos biscates, entre eles o de retocador de retratos e conseguiu ser admitido como pandeirista na Rádio Tamandaré. Na mesma época, Jackson do Pandeiro,
Rádio Tamandaré, Recife, 1950s
Em 1946, a gravação de “Baião” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) feita pelo conjunto vocal Quatros Ases e um Coringa introduziu a “música do Nordeste” na cultura de massa do país. Para o historiador Durval Muniz de Albuquerque, autor de “A Invenção do Nordeste e outras Artes”, o baião veio “atender à necessidade de uma música nacional para dançar, que substituísse todas aquelas de origem estrangeira. Daí sua enorme acolhida num momento de nacionalismo intenso”. A partir daquele momento, tendo Luiz Gonzaga como o seu principal intérprete, a música nordestina foi crescentemente tomando conta do mercado fonográfico brasileiro, desbancando o bolero e o samba-canção abolerado que, durante certo tempo, dominaram a programação musical das rádios.
Nos primeiros anos da década de 1950, houve uma grande migração para o Rio de Janeiro, que era o centro cultural e do mercado da música do país, de compositores, intérpretes e instrumentistas nordestinos, aproveitando a grande “onda” do baião e dos ritmos da região. Jackson do Pandeiro, Zito Borborema, Genival Lacerda, Abdias e tantos outros com os quais Antônio Barros convivera em Campina Grande estavam gravando discos e até Marinês, uma jovem cantora que um dia pernoitara na sua paupérrima casa no Recife, também fora para o Rio, onde conseguira um feito extraordinário de fazer um dueto com Luiz Gonzaga em uma gravação. Antônio Barros decidiu que tinha que se mudar para a Capital Federal.
Campina Grande, 1940s ▪ Fonte: Arquivo Nacional
Antônio Barros ▪ Fonte: Lastfm
Naquele mesmo ano de 1959, Antônio Barros teria os seus primeiros êxitos como compositor, “Baião do Bambolê”, na voz de Jackson do Pandeiro, e “Estrela de Ouro”, grande sucesso de Luiz Gonzaga:
“Reinado, coroa
Tudo isso o baião me deu
Estrela de ouro
No meu chapéu
Roupa de couro e gibão
Como um milagre caído do céu
Fizeram-me rei do baião”
Em meados da década de 1960, começou a arrefecer o mercado para a música nordestina. Os sons dos Beatles influenciaram o nascimento do fortíssimo movimento nacional da Jovem Guarda e a Bossa Nova fez surgir uma canção destinada, principalmente, a um público de classe média e universitário. Apesar disso, Antônio Barros, que já adquirira certo conceito como compositor, conseguiu obter vários sucessos naqueles anos difíceis para a música regional, como “Brincadeira na Fogueira”, “Naquele São João” e “Procurando tu”, com o Trio Nordestino, “No balanço do mar” com Marinês, e “Óia eu aqui de novo”, uma música que deu título ao disco de Luiz Gonzaga de 1967 e cuja letra refletia a situação do Rei do Baião naquele momento: “Óia eu aqui de novo [...] Vou mostrar pra esses cabras / Que eu ainda dô no couro”.
Nas primeiras gravações de músicas de Antônio Barros chama a atenção o aparecimento de “parceiros comerciais” em algumas composições (como em “Baião do Bambolê”, com Almira Castilho, mulher de Jackson do Pandeiro), prática que se instalou no país desde que a indústria fonográfica começou a se tornar bastante lucrativa, da qual não escaparam nomes como Noel Rosa, Cartola e Nelson Cavaquinho e que foi bem detalhada pelo jornalista e compositor pernambucano Nestor de Holanda em “Memórias do Café Nice”, obra indispensável sobre o assunto. Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues em “O fole roncou – Uma História do Forró (Zahar, 2012)” relatam que em “Procurando tu”, o primeiro grande êxito nacional de Antônio Barros e uma das músicas mais executadas no Brasil no ano de 1970, aparece nos créditos da composição o nome de um radialista da Bahia que entrou na “parceria” como retribuição pela divulgação da música.
ESQ: Antônio Barros em apresentação no navio transatlântico Anna Nery / DIR: discos de sua carreira solo
Em 1971, um fato mudaria a vida pessoal e artística de Antônio Barros. Em uma viagem a Campina Grande o compositor conheceu Mary Maciel Ribeiro, que todos chamavam de Cecéu. Filha única de um dono de uma mercearia, Cecéu desde criança foi uma ouvinte atenta do que tocava no rádio e
Cecéu ▪ Fonte: Lastfm
No encontro de Antônio Barros com Cecéu em Campina Grande, o amor pela música fez com que eles se apaixonassem e, sete meses depois, já estivessem casados. Em uma conversa que tivemos, Cecéu me confessou emocionada que Antônio teria lhe afirmado quando resolveram seguir na vida juntos: “Cecéu, eu não tenho nada para te dar, possivelmente problemas”. Apesar de todos os percalços de uma carreira artística no Brasil, os dois, unidos pela música e vivendo, exclusivamente da música que produziram, permanecem juntos, há 51 anos, tendo construído uma das obras mais admiráveis na música popular do Brasil.
Existem vários exemplos, no Brasil, de renomados compositores que sem conhecer uma nota de música, sem tocar nenhum instrumento, fizeram suas músicas utilizando simplesmente a voz e deixaram obras imortais. O médico e compositor pernambucano Zé Dantas, grande parceiro de Luiz Gonzaga, era um desses casos.
Lamartine Babo (no alto) e Paulo Vanzolini ▪ Fonte: Wikimedia
Após o casamento, em 1972, Antônio Barros e Cecéu foram morar no Rio de Janeiro. Como a música nordestina estava em baixa e por sugestão de uma gravadora passaram a fazer e a cantar músicas românticas e formaram o duo Tony e Mary, fórmula que estava sendo utilizada na época, com a mudança do Antônio para o inglês Tony, o que também estava sendo comum em intérpretes e grupos naqueles anos em que a música internacional, majoritariamente de origem norte-americana, invadiu o mercado brasileiro. A dupla Tony e Mary, inicialmente gravou um disco compacto e, depois, em 1976, gravou outro no formato LP que teve boa repercussão.
A fase da dupla Tony e Mary teve vida breve e logo Antônio Barros e Cecéu voltaram-se para a música de raiz nordestina e a reunião da criatividade dos dois produziu um número enorme de composições que, cantadas por vários intérpretes, se tornaram grandes sucessos e que continuam, até hoje, sendo executadas e regravadas, como se constata por algumas gravações originais:
Trio Nordestino | É madrugada Já faz tempo não lhe vejo Forró desarmado O Nénem |
Marinês | Nosso amor foi uma aposta Sou o estopim Bate coração Rompeu aurora |
Jorge de Altinho | Xodó beleza Ninguém desata esse nó |
Luiz Gonzaga | Forró número 1 Forró da miadeira |
Os 3 do Nordeste | É proibido cochilar Homem com H Forró em São Miguel Forró do Poeirão Por debaixo dos panos Amor com café |
Antônio Barros e Cecéu também conseguiram grandes êxitos interpretando as suas próprias músicas, como “Forró do Xenhenhém”, “Casamento de Maria”, “Não lhe solto mais”, “Bulir com tu” e tantas outras.
Em 1981, Antônio Barros alcançou outro grande sucesso popular extrapolando, mais uma vez, o segmento restrito do mercado da música regional. Uma regravação de “Homem com H”, que foi feita por Ney Matogrosso, foi uma das músicas mais tocadas no ano e Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, no já citado livro “A canção no tempo”, destacaram-na como uma das mais representativas de 1981. Embora Ney Matogrosso tivesse relutado em gravar “Homem com H”, segundo Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano porque o xote de Antônio Barros seria “estranho ao seu estilo”, a música se tornou, nas palavras do próprio Ney Matogrosso, o maior sucesso da sua carreira e o cantor depois regravaria “Por debaixo dos panos”, autoria de Cecéu. A partir daí, a dupla de compositores paraibanos passou a ter músicas gravadas por Fagner, Elba Ramalho, Alcione, Amelinha, MPB4, Zé Ramalho, Dominguinhos e tantos outros intérpretes, além daqueles do segmento da música regional.
ESQ: Antônio Barros e Cecéu em apresentação na década de 1970, como Tony e Mary / DIR: discos da dupla.
“Autores de mais de setecentas obras, das quais umas duzentas se tornaram sucesso, Antônio Barros e Cecéu conhecem a fundo a linguagem da canção, da boa e simples canção que atinge todos os segmentos do público, sendo assobiada nas ruas e cantada com naturalidade em choupanas e palácios, por gente de todas as idades e condições sociais [...] eles são o exemplo mais perfeito de autores que sabem conciliar simplicidade e refinamento, picardia e criatividade, linguagem popular e bom-gosto”.
Cecéu e Antônio Barros