Enquanto realizava as pesquisas para o meu último texto aqui no ALCR, Linduarte Noronha: dois fracassos e um sucesso, deparei-me com uma informação muito interessante e que eu, até então, desconhecia: Gonzaga Rodrigues, nosso cronista maior, também se aventurou a escrever contos.
1950s: o jovem Gonzaga Rodrigues, escritor, cronista e jornalista paraibano, natural de Alagoa Nova.
Tanto é assim que remeteu dois textos de sua lavra para o Concurso Permanente de Contos da revista A Cigarra.
A primeira vez que Gonzaga assinou uma crônica na imprensa paraibana foi em maio de 1954, no jornal O Norte, quando tinha apenas 20 anos. Já no ano seguinte, 1955, enviou seu primeiro conto para A Cigarra, que tinha os notáveis Aurélio Buarque de Holanda, Paulo Rónai e Constantino Paleólogo como membros da comissão julgadora. Em agosto, saiu a avaliação do conto Dentro da Noite:
Embora “Dentro da Noite” não tenha sido classificado, pois a história não chega a despertar o necessário interêsse, você revela qualidades que devem ser cultivadas [sic.]
Gonzaga seguiu com afinco o conselho da comissão e continuou a cultivar suas qualidades de contista. No ano seguinte, 1956, enviou o conto Horas de Angústia para ser avaliado. Muito embora não tenha vencido o pleito, o texto foi bastante elogiado pela comissão, no parecer publicado na edição de setembro:
Mereceu menção honrosa “Horas de Angústia”. Cumprimentamo-lo pelo estilo firme e escorreito, pela concisão e pela elegância. Esperamos que torne a concorrer.
“Estilo firme e escorreito”, “concisão”, “elegância”. O dedo indicador de Gonzaga deteve-se nos adjetivos elogiosos da comissão, e um leve sorriso se insinuou debaixo do seu bigode grisalho, enquanto ele os repetia em voz alta. Sete décadas depois, o veterano Gonzaga, aos 92 anos, reencontrou-se com o jovem de 22, que ainda começava a galgar o batente da labuta jornalística na sua aldeia — mas que já chamava a atenção pela inegável qualidade do seu texto.
Foi por intermédio do seu filho, Paulo Emmanuel Rodrigues, que nos encontramos na Livraria A União — Poeta Juca Pontes, no Espaço Cultural, há poucos dias. Foi também lá que nos cumprimentamos, pela primeira vez,
Encontro do autor (DIR), com o cronista Gonzaga Rodrigues (CENTRO) e seu filho, Paulo Emmanuel, na livraria A União (Juca Pontes).
no início do ano, durante o lançamento do livro Deu no Jornal, de Agnaldo Almeida, organizado por Naná Garcez. O ambiente barulhento, contudo, não foi propício à conversa. Por uma série de circunstâncias, Gonzaga não deu seu depoimento para a biografia que escrevi sobre Biu Ramos — uma grave falha no livro, reconheço.
Levei impressas as duas avaliações da Cigarra para mostrar-lhe. Gonzaga, contudo, não se recordava de ter enviado o primeiro conto, Dentro da Noite, para a revista. O segundo, Horas de Angústia, sim. Quando perguntei se mantinha um acervo com essas produções do início da carreira, respondeu-me que não — uma pontada no coração de quem trabalha com memória, como eu. Dentro da Noite e Horas de Angústia perderam-se para sempre. Jamais virão a lume. Não se conservam sequer na memória prodigiosa de seu autor. Uma pena, certamente.
Mas se nunca terei acesso aos contos do início da carreira de Gonzaga, fui presenteado com uma verdadeira aula particular sobre gêneros literários, que não me furtarei a compartilhar com os leitores. Perguntei-lhe:
2025: Gonzaga Rodrigues lê as notas elogiosas aos seus dois contos, enviados para a revista A Cigarra, na década de 1950.
⏤ Ora, se seu trabalho de estreia em O Norte foi uma crônica, e se o senhor permanece nesse métier até hoje, o que o levou a aventurar-se como contista?
Pegando firme em meu braço, Gonzaga explicou:
⏤ Samuel, se você analisar bem, a minha crônica é feita, sem eu querer, trilhando a estrutura de um conto. Só que o meu conto é o conto maupassantiano. O conto de [Guy de] Maupassant é o conto clássico; é o conto em que a história tem começo, meio e fim.
Gonzaga, então, começou a discorrer sobre o estilo dos contos do russo Anton Tchekhov, que exploravam a profundidade humana, e da inglesa Katherine Mansfield, marcada por sua capacidade de capturar instantes e flagrantes da vida cotidiana.
⏤ Eu me preparei para ser um prosador — confessou Gonzaga. — Meu sonho era [escrever] ficção. Eu vivia na Casa do Estudante; não ia ao Lyceu, por causa de Eça de Queiroz, Aluísio de Azevedo, Lima Barreto, Graciliano Ramos...
Paulo Emmanuel, Samuel Amaral e Gonzaga Rodrigues, na livraria A União (Juca Pontes), localizada no Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa.
Gonzaga revelou que nunca conseguiu desvencilhar a literatura de um profundo senso de consciência social. Por isso, a realidade — o cotidiano — acabou se impondo sobre o ficcionismo que ele, um dia, sonhou em fazer.
A amizade com Adalberto Barreto
Além das tentativas de ingressar no universo do conto, um tema inescapável da nossa conversa foi a profunda amizade que Gonzaga nutriu com meu tio-bisavô, Adalberto Barreto, que já perfilei em dois textos aqui no ALCR.
Adalberto Barreto (1934—2008), jornalista paraibano, nascido em Catolé do Rocha.
Aliás, quando já havíamos nos despedido, fiquei pensando se não teria sido Adalberto Barreto o responsável por despertar os pendores de Gonzaga para o conto. Afinal, foi em janeiro de 1955 — o mesmo ano em que Gonzaga enviou Dentro da Noite — que Adalberto se envolveu num verdadeiro imbróglio com A Cigarra, após a revista duvidar da autoria do conto O Tesouro da Pedra.
Adalberto, então, escreveu ao Jornal do Comércio, do Recife, tecendo duras críticas ao certame e à comissão julgadora. Depois, decidiu não prolongar a polêmica e acabou cedendo: remeteu uma carta à Cigarra, acompanhada de outro conto de sua autoria, intitulado A Marca do Beijo, a fim de provar que O Tesouro da Pedra realmente havia sido escrito por ele.
A comissão do Concurso Permanente de Contos deu-se por satisfeita. Finalmente, seis meses depois do início da controvérsia, em junho de 1955, Adalberto teve o conto O Tesouro da Pedra publicado nas páginas da revista.
Em 2004, Adalberto reuniu alguns contos de sua pena no livro A Cidade dos Loucos. Gonzaga foi o prefaciador da obra, e relembrou o episódio envolvendo A Cigarra, no já longínquo 1955:
Quem é este senhor, da revista, de prosa euclidiana? — foi a pergunta de uma das cabeças mais respeitáveis da antiga ágora — é o nome que merecia o Ponto de Cem Réis de então — leitor afortunado da melhor prosa portuguesa, o promotor Messias Leite. Tendo nas mãos o exemplar de “A Cigarra” que premiara o conto de Adalberto, julgado “surpreendente”, “comovente”, “excelente” por ninguém menos que Aurélio Buarque de Holanda, Paulo Rónai e Constantino Paleólogo, da comissão julgadora do certame mensal.
Na nossa conversa, Gonzaga presenteou-me com um exemplar autografado de Café Alvear: Ponto de Encontro Perdido. A orelha do livro conta
com a assinatura de Adalberto, que o chamava de “Luiz” — privilégio íntimo concedido somente a ele e aos pais do autor. No texto, Adalberto discorre sobre as razões pelas quais Gonzaga estava destinado a ser mesmo um cronista. Não prosador, romancista, ou… contista:
[...] Podia ter ficado com a prosa espontânea e coloquial de Lins do Rego, de exemplo caseiro. Ou com o estilo solto e corrido do baiano prolífico. Ou ainda com a exuberância frouxa de Balzac, cuja orgia criativa se gabava de competir com o registro civil.
Mas não. Luiz havia de eleger, para nelas mirar-se, manifestações olímpicas do desempenho expressivo. Porque Luiz tem paixão cartesiana, de lúcido apetite, pela transcrição exata dos objetos, pela determinação precisa do significado, que vai além da perfeição aparente da forma que se consome para revelar a substância com sua luz invisível.
Como diria Vinicius de Moraes em Samba da Bênção, “A vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida”. E Gonzaga e Adalberto tiveram seus encontros e desencontros ao longo do tempo. Mas agora, o encontro tão esperado foi comigo. E desejo que não nos desencontremos jamais.
Heráclito de Éfeso dizia que “nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio... pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tampouco o homem”. O Gonzaga de hoje não é o mesmo de 70 anos atrás. As águas do Sanhauá, tão cantado em suas crônicas, também não são mais as mesmas. Mas uma coisa não muda: Gonzaga permanece escrevendo “com estilo firme e escorreito”, e jamais perdeu a “concisão” e a “elegância”.