Há três milênios, a Ilíada conserva intacta a sua capacidade de inquietar e comover, revelando a beleza, as contradições e a dor da ...

A torta de maçã e a guerra de Troia

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Há três milênios, a Ilíada conserva intacta a sua capacidade de inquietar e comover, revelando a beleza, as contradições e a dor da condição humana. Este mês a reli – pela sétima vez – e ao terminar fiz uma torta de maçã. Há uma razão para unir essas duas tarefas. Eis as minhas anotações e recomendações para quem deseja ler o grande poema homérico.

Por que a Ilíada nos inquieta? Porque é o nosso espelho. Literatura, histórias narradas ao pé do fogo ou em livros, falam de nós, humanos, e dos nossos paradoxos. Desde a Antiguidade, Homero é professor.

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Ler a Ilíada deveria ser uma espécie de ritual sagrado. Ela está além de uma simples sucessão de eventos e deve ser apreciada em múltiplos aspectos. Homero, artista supremo da motivação, jamais nos conta algo sem estabelecer uma elaborada conexão de causa e consequência. Da primeira à última linha, a narrativa dramática se desenrola até seu fim lógico.

Imite o poeta, um observador sereno da vida e das paixões humanas. Ouça-o a revelar as ilusões, as teimosias e os desvarios que levam às tragédias individuais e coletivas, os enganos que conduzem perda do discernimento e à ruína. Esse olhar penetrante nos oferece oportunidade de meditação sobre situações que nos afetam. Uma narrativa que nos encanta com as cenas de um mundo há muito perdido e nos convida a refletir sobre o que (e quem) nos move em direção a estrelas ou abismos.

Embora a ira de Aquiles seja o fio condutor da narrativa, o poeta nos permite contemplar honra, orgulho, desejo, manipulação e tragédia. Também nos desafia a encarar a mortalidade, explorando a inevitabilidade da finitude e a busca pela eternidade através da glória (kleos).

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GD'Art
Você há de dizer que a Ilíada é masculina demais, sangrenta em excesso. E terá razão. Em seu curso férreo há descrições brutais e cenas gráficas da destruição dos corpos. Não são gratuitas. São advertências sobre a realidade crua da guerra, a fragilidade da carne e o horror compartilhado. Em contraponto, o poeta nos oferece metáforas que nos retiram imediatamente do campo de batalha e nos transportam para os cenários idílicos e cenas domésticas, onde a vida cotidiana nos surge atraente em sua singeleza. Ou nos põe como observadores da natureza, em sua grandiosidade e rudeza. Os símiles homéricos – 180 no total - retardam a ação e iluminam o momento presente, aprofundando sua cor e sentido. Note-os. Medite sobre eles.

Um dos momentos mais sublimes do texto é a descrição do escudo de Aquiles, forjado pelo deus Hefesto. Uma joia do artesanato homérico em que homem e natureza se fundem. Homero grava ali casamento e colheita, rios, sol, lua e as estações do ano, constelações e um microcosmo de contrastes: cidades em paz e em guerra, ordem e caos, dor e alegria. Eis a totalidade da vida e do universo. Aquiles carrega diante do peito o mundo que ele defende e simultaneamente destrói.
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Escudo de Aquiles Anônimo
Ao vestir sua armadura, veste o cosmos e tudo o que ele, em sua ira, esqueceu: dança, amor, trabalho, nascimento e a existência com suas lutas e prazeres.

No mesmo Canto 18, o poema menciona as Plêiades, Touro, Órion e Ursa Maior. Observe a precisão astronômica dos gregos da época: já haviam percebido que a Ursa Maior, uma constelação circumpolar, não se punha no horizonte. Ou, nas palavras do poeta, “a única a não mergulhar nas correntes do Oceano”.

Delicie-se com o ritmo e a sofisticada técnica narrativa de Homero, que construiu um poema coeso, no qual faz incursões ao passado e ao futuro. Em vez de narrar toda a Guerra de Troia, concentra a ação na ira de Aquiles, inserindo outros eventos como episódios paralelos. Esse foco garante unidade e clareza. Parece simples aos olhos atuais, quando as experimentações literárias são abundantes. Mas lembre-se que isso foi feito há três mil anos, antes mesmo da invenção da escrita. Na Retórica, Aristóteles cita Homero como exemplo de linguagem eficaz, uso magistral da metáfora e fonte de persuasão. A retórica é a arte da persuasão. Note como os personagens homéricos empregam técnicas retóricas para persuadir uns
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aos outros. Isso sugere que Homero não apenas era um mestre da narrativa, mas compreendia profundamente o poder da palavra. Ouça a voz do poeta. Ele é tão hábil que por vezes esquecemos que está lá.

Homero inventou a descrição cinematográfica (ou há outro modo de definir a entrada triunfal de Apolo “chegando como a noite”, das rodas dos carros de guerra salpicadas de sangue a passar sobre os cadáveres, a agilidade das cenas de batalha ou Pátroclo levantando um troiano com a lança e atirando-o do carro?). Note a força dos discursos plenos de emoção, os lamentos de saudade e perda. E o que dizer da frase final "E assim foi o funeral de Heitor, domador de cavalos"? Há uma quietude natural após essa frase. Toda a vida e luta heroica de Heitor desfilam diante do leitor. Leio-a repetindo Shakespeare: "O resto é silêncio".

Capture no coração a originalidade da cena de Aquiles tocando a lira e cantando os feitos dos heróis — o guerreiro em paz com a música e a memória; e de Helena, em sua primeira aparição no poema, tecendo uma tapeçaria que retrata a guerra de Troia: a arte contempla a si mesma.

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A ira de Aquiles Michel Martin Drolling
“Ira” é a primeira palavra da Ilíada. Espinha dorsal do poema. E embora Homero logo nos avise que a ira de Aquiles trouxe incontáveis mortes, o que se observa é que a ira atinge outros além do herói. Deuses e mortais se engajam na fúria destruidora, surdos aos apelos dos que buscam o entendimento e a razão. Pagam o tributo do sangue. A dor de um alimenta a ira do outro, compondo um círculo vicioso de sofrimentos.

A epopeia começa e termina com o apelo de um pai. O primeiro, Crises, é repelido e desrespeitado, dando início à sequência de eventos trágicos. O último, Príamo, rei de Troia, é acolhido. É o único a romper a ira de Aquiles: beija as mãos do assassino de seus filhos e implora pelo corpo de Heitor. Mesmo após a vingança sangrenta, Aquiles não encontrara a paz. A morte de Pátroclo o consome. Vingou o amigo promovendo uma matança generalizada. Não satisfeito, arrastou e profanou o cadáver de Heitor, queimou doze troianos inocentes na pira funerária de Pátroclo e promoveu jogos fúnebres. E ainda assim, não dorme. A ira o devora. Então levanta-se em plena noite para arrastar novamente o cadáver de Heitor atado ao seu carro de guerra. A paz só desce sobre ele quando tem piedade de um pai que se humilha. A compaixão o redime e completa-se o arco narrativo de ira e perdão.

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A ira de Aquiles Charles-Antoine Coypel
Esse Aquiles – que se mostra tão impiedoso – é o herói do poema. Em Homero há espaço para grandeza e bondade convivendo com momentos de fúria. Virtudes e imperfeições habitam o mesmo peito. Pátroclo é igualmente paradoxal: no campo de batalha é feroz e sangrento e em várias outras ocasiões é descrito como bondoso, manso e gentil. O poeta nos oferece assim o grande espelho das contradições humanas: a mão que afaga é a mesma que apedreja.

Atente, ainda, para outros personagens: a prudência de Nestor, a bravura de Ajax e Diomedes, a astúcia de Odisseu. Diomedes, no Canto V, vive a primeira aristeia da Ilíada (o momento em que um herói, possuído por força divina, realiza façanhas sobre-humanas. Sua lança fere Afrodite e Ares, atravessando corpo e mito. O sangue dos deuses se mistura ao dos homens. Eis ali a mais pura tradução da fúria heroica: a glória conquistada à beira da loucura. Diomedes torna-se precursor de Aquiles: mostra o que o homem pode fazer quando o sopro dos deuses o atravessa, mas também é um prenúncio do perigo da hybris (a desmedida).

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Príamo e Aquiles Aleksander Ivanov
Um dos mais sagrados ritos gregos era o cuidado dedicado aos mortos. Na Ilíada, é notável o temor dos guerreiros de que seus cadáveres sejam profanados. Em várias passagens, heróis ameaçam seus oponentes prometendo não permitir que eles tivessem ritos fúnebres nos quais seus familiares pudessem lamentá-los. “Não me deixes ser devorado pelos cães”, suplica o agonizante Heitor. Aquiles não se comove. Mas quando Príamo o procura, o herói chora. Reconhece o pai no velho rei e concede: “Ao luto devemos trégua”. Devolve o corpo e garante onze dias de paz. No décimo segundo, recomeça a guerra.

Há muitos detalhes que podem lhe distrair ou entediar na leitura da Ilíada. Fuja disso. Não se aborreça com os longos trechos em que genealogias e naus são descritas. Aquilo é uma reverência à memória. O “Catálogo das Naus”, no Canto II, é mais que um longo inventário dos chefes e exércitos gregos que sitiaram Troia. Tem função, sentido e valor
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Fabio Fabbi
simbólico. Está ali para registro. Homero enumera trinta contingentes, mais de mil navios e 40 cidades. Apresenta a geografia do mundo grego arcaico. Passe reverente por esse trecho (talvez o mais antigo do poema). É a primeira cartografia da alma helênica, um mapa cantado em versos e não coroado. Respeite o que está diante dos seus olhos acostumados à velocidade dos dias: você está contemplando o nascimento de uma identidade cultural.

Também não se prenda a anacronismos. Sim, as mulheres são prêmios de guerra na Ilíada, cadáveres eram saqueados de suas valiosas armas e cabeças de líderes eram exibidas. É o retrato de um mundo em que os ritos e costumes estavam organizados de outra maneira. Registro implacável da brutalidade humana na aurora dos tempos.

Prestes a terminar este texto, falemos de maçãs. Antes da ira de Aquiles, houve o fruto. Um dos mais famosos mitos gregos é o “pomo de ouro”, lançado por Éris, deusa da discórdia, com a inscrição “καλλίστῃ” (à mais bela). Hera, Atena e Afrodite disputam o prêmio. Zeus se abstém e entrega o julgamento a Páris. Hera promete poder; Atena, sabedoria e vitória; Afrodite, a mulher mais bela: Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta. Assim nasceu a guerra. Egos feridos e desejo de vingança fazem Hera e Athena serem implacáveis contra Troia. A maçã desencadeou o ciclo troiano.

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Julgamento de Paris (National Gallery) Peter Paul Rubens (1635)
Encerremos, então, com uma verdade: a Ilíada é desafiadora. Não serve a leitores preguiçosos. Exige atenção, entrega e um coração aberto a novas perspectivas. Aristóteles observou que Homero domina o inverossímil e faz o impossível parecer natural. Mergulhe nesse mundo de imaginação delirante, de deuses feridos, mitos vivos e heróis trágicos, tão semelhantes a nós. Enquanto houver humanidade, Homero será professor.

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