Há três milênios, a Ilíada conserva intacta a sua capacidade de inquietar e comover, revelando a beleza, as contradições e a dor da condição humana. Este mês a reli – pela sétima vez – e ao terminar fiz uma torta de maçã. Há uma razão para unir essas duas tarefas. Eis as minhas anotações e recomendações para quem deseja ler o grande poema homérico.
Por que a Ilíada nos inquieta? Porque é o nosso espelho. Literatura, histórias narradas ao pé do fogo ou em livros, falam de nós, humanos, e dos nossos paradoxos. Desde a Antiguidade, Homero é professor.
Imite o poeta, um observador sereno da vida e das paixões humanas. Ouça-o a revelar as ilusões, as teimosias e os desvarios que levam às tragédias individuais e coletivas, os enganos que conduzem perda do discernimento e à ruína. Esse olhar penetrante nos oferece oportunidade de meditação sobre situações que nos afetam. Uma narrativa que nos encanta com as cenas de um mundo há muito perdido e nos convida a refletir sobre o que (e quem) nos move em direção a estrelas ou abismos.
Embora a ira de Aquiles seja o fio condutor da narrativa, o poeta nos permite contemplar honra, orgulho, desejo, manipulação e tragédia. Também nos desafia a encarar a mortalidade, explorando a inevitabilidade da finitude e a busca pela eternidade através da glória (kleos).
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Um dos momentos mais sublimes do texto é a descrição do escudo de Aquiles, forjado pelo deus Hefesto. Uma joia do artesanato homérico em que homem e natureza se fundem. Homero grava ali casamento e colheita, rios, sol, lua e as estações do ano, constelações e um microcosmo de contrastes: cidades em paz e em guerra, ordem e caos, dor e alegria. Eis a totalidade da vida e do universo. Aquiles carrega diante do peito o mundo que ele defende e simultaneamente destrói.
Escudo de Aquiles Anônimo
No mesmo Canto 18, o poema menciona as Plêiades, Touro, Órion e Ursa Maior. Observe a precisão astronômica dos gregos da época: já haviam percebido que a Ursa Maior, uma constelação circumpolar, não se punha no horizonte. Ou, nas palavras do poeta, “a única a não mergulhar nas correntes do Oceano”.
Delicie-se com o ritmo e a sofisticada técnica narrativa de Homero, que construiu um poema coeso, no qual faz incursões ao passado e ao futuro. Em vez de narrar toda a Guerra de Troia, concentra a ação na ira de Aquiles, inserindo outros eventos como episódios paralelos. Esse foco garante unidade e clareza. Parece simples aos olhos atuais, quando as experimentações literárias são abundantes. Mas lembre-se que isso foi feito há três mil anos, antes mesmo da invenção da escrita. Na Retórica, Aristóteles cita Homero como exemplo de linguagem eficaz, uso magistral da metáfora e fonte de persuasão. A retórica é a arte da persuasão. Note como os personagens homéricos empregam técnicas retóricas para persuadir uns
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Homero inventou a descrição cinematográfica (ou há outro modo de definir a entrada triunfal de Apolo “chegando como a noite”, das rodas dos carros de guerra salpicadas de sangue a passar sobre os cadáveres, a agilidade das cenas de batalha ou Pátroclo levantando um troiano com a lança e atirando-o do carro?). Note a força dos discursos plenos de emoção, os lamentos de saudade e perda. E o que dizer da frase final "E assim foi o funeral de Heitor, domador de cavalos"? Há uma quietude natural após essa frase. Toda a vida e luta heroica de Heitor desfilam diante do leitor. Leio-a repetindo Shakespeare: "O resto é silêncio".
Capture no coração a originalidade da cena de Aquiles tocando a lira e cantando os feitos dos heróis — o guerreiro em paz com a música e a memória; e de Helena, em sua primeira aparição no poema, tecendo uma tapeçaria que retrata a guerra de Troia: a arte contempla a si mesma.
A ira de Aquiles Michel Martin Drolling
A epopeia começa e termina com o apelo de um pai. O primeiro, Crises, é repelido e desrespeitado, dando início à sequência de eventos trágicos. O último, Príamo, rei de Troia, é acolhido. É o único a romper a ira de Aquiles: beija as mãos do assassino de seus filhos e implora pelo corpo de Heitor. Mesmo após a vingança sangrenta, Aquiles não encontrara a paz. A morte de Pátroclo o consome. Vingou o amigo promovendo uma matança generalizada. Não satisfeito, arrastou e profanou o cadáver de Heitor, queimou doze troianos inocentes na pira funerária de Pátroclo e promoveu jogos fúnebres. E ainda assim, não dorme. A ira o devora. Então levanta-se em plena noite para arrastar novamente o cadáver de Heitor atado ao seu carro de guerra. A paz só desce sobre ele quando tem piedade de um pai que se humilha. A compaixão o redime e completa-se o arco narrativo de ira e perdão.
A ira de Aquiles Charles-Antoine Coypel
Atente, ainda, para outros personagens: a prudência de Nestor, a bravura de Ajax e Diomedes, a astúcia de Odisseu. Diomedes, no Canto V, vive a primeira aristeia da Ilíada (o momento em que um herói, possuído por força divina, realiza façanhas sobre-humanas. Sua lança fere Afrodite e Ares, atravessando corpo e mito. O sangue dos deuses se mistura ao dos homens. Eis ali a mais pura tradução da fúria heroica: a glória conquistada à beira da loucura. Diomedes torna-se precursor de Aquiles: mostra o que o homem pode fazer quando o sopro dos deuses o atravessa, mas também é um prenúncio do perigo da hybris (a desmedida).
Príamo e Aquiles Aleksander Ivanov
Há muitos detalhes que podem lhe distrair ou entediar na leitura da Ilíada. Fuja disso. Não se aborreça com os longos trechos em que genealogias e naus são descritas. Aquilo é uma reverência à memória. O “Catálogo das Naus”, no Canto II, é mais que um longo inventário dos chefes e exércitos gregos que sitiaram Troia. Tem função, sentido e valor
Fabio Fabbi
Também não se prenda a anacronismos. Sim, as mulheres são prêmios de guerra na Ilíada, cadáveres eram saqueados de suas valiosas armas e cabeças de líderes eram exibidas. É o retrato de um mundo em que os ritos e costumes estavam organizados de outra maneira. Registro implacável da brutalidade humana na aurora dos tempos.
Prestes a terminar este texto, falemos de maçãs. Antes da ira de Aquiles, houve o fruto. Um dos mais famosos mitos gregos é o “pomo de ouro”, lançado por Éris, deusa da discórdia, com a inscrição “καλλίστῃ” (à mais bela). Hera, Atena e Afrodite disputam o prêmio. Zeus se abstém e entrega o julgamento a Páris. Hera promete poder; Atena, sabedoria e vitória; Afrodite, a mulher mais bela: Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta. Assim nasceu a guerra. Egos feridos e desejo de vingança fazem Hera e Athena serem implacáveis contra Troia. A maçã desencadeou o ciclo troiano.
Julgamento de Paris (National Gallery) Peter Paul Rubens (1635)






















