Há 40 anos, em 1985, Biu Ramos (1938-2018) estreou na seara literária com o livro Arca de Sonhos ou Mocidade e outros Heróis. O autor, que já contava mais de 30 anos de “batente” no jornalismo, notabilizando-se pelas reportagens, colunas políticas e pelas fragorosas polêmicas, revelou ao público uma nova faceta: o Biu Ramos cronista.
Capa de Arca de Sonhos (Grafset Editora). Capa de Tônio; foto de capa cedida por Custódia Magalhães e Ilustração Bico de Pena de Vilmar
Arca de Sonhos é uma crônica poético-sentimental da vida boêmia, intelectual, cultural e popular de João Pessoa nas décadas de 1950 e 1960. A obra é um misto de fantasia e realidade que compõe um verdadeiro “mural” da cidade, com seus redutos icônicos — como o Ponto de Cem Réis, a Maciel Pinheiro, a Sorveteria Canadá, o Café Alvear, o Cassino da Lagoa, a Churrascaria Bambu, entre tantos outros — e suas personagens inesquecíveis.
Entre os retratados estão tipos populares como o tribuno Mocidade, o “senador” David José dos Reis, Macaxeira, Apolônio, Marlene, Venelipe, Lula Fodinha, Manezinho e Mestre Alfredo; e também os grandes vultos da vida intelectual e artística, como o poeta Augusto dos Anjos e o cineasta Walfredo Rodriguez; e até celebridades nacionais, como o Rei Pelé.
Walfredo Rodriguez
Mocidade
O estilo que Biu Ramos empregou na obra é simples, direto e carregado de humor e afetividade. Mais do que registrar o pitoresco, o autor buscou captar a essência e a verdade humana por trás de cada personagem, transformando-os em “heróis de anônimas batalhas”. Assim, Arca de Sonhos se constitui num registro importante para a memória coletiva da cidade, em paralelo com a historiografia oficial: enquanto esta se debruça sobre os grandes feitos, a crônica preserva os gestos cotidianos, os ambientes, os hábitos e os personagens que deram vida ao passado pessoense.
Arca de Sonhos é, portanto, um convite a embarcar em uma viagem nostálgica e poética na João Pessoa de outrora, guiada pela sensibilidade de um cronista que foi, ao mesmo tempo, observador atento e participante apaixonado desse universo.
Naquele ano de 1985, a Paraíba fazia 400 anos de fundação. E, para comemorar a data, o governo de Wilson Braga — a quem Biu fazia ferrenha oposição na páginas do Correio da Paraíba — resolveu promover uma série de ações: a construção de um obelisco,
Medalha comemorativa (frente e verso) do IV Centenário do Estado da Fudação da Paraíba. Casa da Moeda do Brasil.
projetado pela arquiteta Jussara Dantas; a criação do Museu de 30, que reuniria objetos e documentos das diversas correntes da Revolução; além da recuperação de monumentos históricos e de equipamentos culturais. Após dois anos de preparação, porém, nada saiu do papel — com exceção de um Concurso Literário, dividido em várias categorias, entre elas ficção, poesia, ensaios sobre João Pessoa e reflexões sobre a realidade paraibana.
Biu, então, resolveu inscrever os originais Arca de Sonhos na categoria “Tema Livre sobre a Cidade de João Pessoa”, sob pseudônimo. Contudo, a obra não mereceu sequer menção honrosa por parte da comissão julgadora, formada por notáveis intelectuais.
No dia cinco de agosto de 1985, data da festa, Biu publicou, no Correio, o texto Pobrezinho do IV Centenário, no qual desfiou um rosário de críticas à comissão organizadora e ao governo Braga. O Concurso Literário foi o alvo principal das críticas. Para ele, o certame “de nome pomposo”, conseguiu a proeza inédita de “desagradar a gregos e troianos, isto é, a vencidos e a vencedores”.
Biu Ramos (1938—2018), jornalista e escritor paraibano. ▪ Foto Felipe Gesteira, via Jornal da Paraíba
As críticas recaíram, sobretudo, sobre o suposto descumprimento do regulamento por parte da comissão julgadora, como prazos não respeitados e pareceres atrasados. Biu também condenou a composição irregular das comissões julgadoras. A de Poesia, por exemplo, tinha quatro membros, quando o regimento previa apenas três. Biu ironizou: “Será que poesia é tão difícil assim de julgar? Achamos que não. Até Bilar [sic.], o príncipe dos poetas brasileiros, dizia que bastava saber ouvir e entender estrelas”.
GD'Art
Outro descontentamento de Biu foi com a escolha de membros “alienígenas” — para usar uma palavra que ele gostava muito —, como Átila Almeida, de Campina Grande, e Veríssimo de Melo, do Rio Grande do Norte.
“Na comissão que julgou o ‘Tema Livre da Cidade de João Pessoa’ meteram um campinense de Bodocongó, de nome Átila Almeida, de quem estou ouvindo falar pela primeira vez, e que deve entender tanto das coisas de João Pessoa, de seus mitos e heróis, quanto eu entendo de energia nuclear ou da Teoria da Relatividade.
O mesmo aconteceu com a comissão que julgou os concorrentes no gênero ‘A Realidade Paraibana’. Nela foi incluído um norte-rio-grandense, um papa-jerimum famoso que atende pelo sonoro nome de Veríssimo de Melo. Onde é que já se viu? Quem entende das coisas da Paraíba, da nossa realidade cultural e histórica, de nossos tipos, de nosso folclore, são os que aqui fincaram raízes e daqui nunca arredaram o pé. São os Gonzaga Rodrigues, os Vanildo Brito, os Waldemar Duarte, os Martinho Moreira Franco, Eduardo Martins, os Humberto Nóbrega, os Wilson Seixas e por assim afora. Mas foram buscar medalhões de outras plagas que acredito terem estado na Paraíba pela primeira vez”.
Mas o vexame maior, o “non plus ultra dos absurdos deste melancólico concurso”, nas palavras de Biu, foi uma classificação completamente sem lógica na categoria “Realidade Paraibana”, que concedeu um segundo lugar sem classificar nenhum trabalho em primeiro:
“Como é possível entender ou explicar. Minha avó já ensinava que pode haver primeiro sem segundo, mas jamais haverá segundo sem primeiro. Como eu poderia ser o segundo filho da minha mãe se não
Sérgio Porto (1923—1968) — mais conhecido pelo pseudônimo Stanislaw Ponte Preta —, cronista, escritor, radialista e jornalista carioca.
tivesse nascido outro rebento antes. O primogênito, como diz o vulgo?
⏤ Eu sou o segundo filho de minha mãe.
⏤ E o primeiro?
⏤ Não existe.
Foi, sem dúvida, um autêntico festival de besteiras que faria as delícias de Stanislaw Ponte Preta. [...].
Finalmente vem o desfecho apoteótico: nesta mesma modalidade foram classificados dois trabalhos em terceiro. Isto mesmo: duas classificações em terceiro lugar e nenhuma em primeiro”.
Biu finalizou o texto lamentando:
“Ai de ti, minha Paraíba amada, que continuas adormecida às margens do Sanhauá e resistes em não despertar. Choro por ti, Paraíba minha, nas lamentações do teu IV Centenário”.
1997: Encontro de ex-diretores da Rádio Tabajara, nos 60 anos da emissora. ESQ ⇀ DIR: Carlos Roberto de Oliveira, Paulo Santos, Gilson Souto Maior, Biu Ramos, Petrônio Souto, Linduarte Noronha, Antônio Barreto e Manuel Raposo. ▪ Acervo: Petrônio Souto.
Sucesso de público e crítica
O jornalista Nonato Guedes, amigo pessoal de Biu, acompanhou de perto o processo de lançamento de Arca de Sonhos, e o frisson que o livro causou no meio cultural do Estado em outubro de 1985. Nonato testemunhou:
Nonato Guedes, jornalista
Quando, enfim, apôs sua assinatura no livro e fez seu lançamento público, deu-se o estouro. O livro foi sucesso de público e de crítica, também. A intelectualidade paraibana rendia-se ao debutante de um clube até então fechado de talentos. “Biu” Ramos prosseguiu infatigável na sua escalada. Quanto aos premiados pelo Concurso do IV Centenário, até hoje ninguém sabe ou lembra quais foram.
Biu Ramos tendo em mãos um exemplar de Arca de Sonhos ou Mocidade e Outros Heróis. À sua direita, o jornalista Nonato Guedes e, à sua esquerda, o então deputado federal Tarcísio Burity. 1980s. Fonte: Fernando Moura.
Em 2015, por ocasião dos 30 anos de lançamento de Arca de Sonhos, Biu Ramos concedeu uma entrevista especial para seu genro, o jornalista William Costa, na edição de agosto do suplemento Correio das Artes. Biu relembrou o lançamento,
Correio das Artes, agosto/2015. Suplemento do Jornal A União. Editor: William Costa. Arte da capa: Domingos Sávio.
que aconteceu no Hotel Tropicana, na Rua das Trincheiras, Centro da Capital. Segundo ele, a rua ficou “pequena” diante da imensa fila de carros que se formou, estendendo-se do Pavilhão do Chá até o prédio da antiga Escola Industrial, em Jaguaribe.
⏤ A repercussão foi enorme. Foi o livro mais comentado, na Paraíba, até hoje, seja de escritor paraibano ou de fora ⏤ garantiu o autor.
Ainda segundo Biu, o livro alcançou maior sucesso porque, na Paraíba, não existia crítica literária:
A crítica literária daqui sempre foi muito capenga. Os críticos literários eram Virginius da Gama e Melo e, eventualmente, Carlos Romero. Eram poucos os que se dedicavam a esse ofício. Porque não tinha literatura, também. Os escritores eram aqueles ‘medalhões’ que se faziam de santos e não queriam acesso à grande massa.
Uma cidade que não existe mais
Passados 40 anos da publicação de Arca de Sonhos, muita coisa mudou na cena urbana da capital. João Pessoa deixou de ser uma cidade provinciana, centrada nas imediações do Ponto de Cem Réis, para se espraiar em todas as direções. Surgiram novos bairros trazendo consigo novos polos de comércio e serviços. Enquanto os casarões do Centro se encontram em ruínas, abandonados, nas áreas nobres erguem-se, a cada dia, arranha-céus que desafiam as alturas.
A vida boêmia, antes concentrada na Sorveteria Canadá, na Churrascaria Bambu, no Cassino da Lagoa, nos bares populares, migrou para os barzinhos da orla, e a sociabilidade se deslocou para os shoppings, restaurantes, casas de show e espaços privados.
As figuras populares retratadas por Biu praticamente desapareceram — ou será que somos nós que não prestamos mais atenção? A cidade se tornou mais anônima, impessoal; fria, talvez. A João Pessoa pequena, tacanha, marcada pela oralidade, pela memória e pelo anedotário popular, deu lugar a uma cidade cuja identidade está em constante transformação.
João Pessoa, 1950s: Bondes elétricos trafegam no Ponto de Cem Réis (Praça Vidal de Negreiros).
Arca de Sonhos é, portanto, o testemunho de uma cidade que não existe mais. E justamente por isso a obra precisa ser redescoberta, sob pena de nos distanciarmos ainda mais das nossas raízes — de sermos uma “arca” à deriva, sem norte, sem bússola, sem leme, sem capitão, solapada pelas ondas e agitada pelos ventos.