Você é uma pessoa agradável para sentar e conversar com amigos ou familiares? Que tipo de assunto você trás para mesa de lazer com quem...

Balé caótico

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Você é uma pessoa agradável para sentar e conversar com amigos ou familiares? Que tipo de assunto você trás para mesa de lazer com quem surgir em sua caminhada? Eu, por vezes tenho vontade de ouvir, ou falar amenidades, procuro tirar um sorriso do outro que apareceu naquele momento.

Há um relógio na parede da cozinha da minha avó que não funciona. Os ponteiros pararam às três e dezoito há tantos anos, que ninguém se lembra mais do motivo. Minha avó nunca quis consertá-lo. Dizia que, de certa forma,
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aquela hora congelada a tranquilizava. Enquanto o mundo lá fora girava num turbilhão de urgências, aquele canto da casa era eternamente três e dezoito. Um pequeno refúgio contra a tirania do tempo.

Quantas vezes, nós, os “funcionais”, vivemos com o relógio interno parado? Parados no ponteiro da ansiedade, que só aponta para o futuro ou muitas vezes somente para nosso umbigo, para as contas do mês, ou para a promessa de uma felicidade condicional. Por vezes estamos travados no ponteiro da nostalgia, que teima em voltar para um passado idealizado “como era bom naquela época”, “quando eu era mais jovem”, “aquilo sim que era vida”.

Vivemos nesse vai e vem, como se a vida fosse um intervalo entre dois pontos importantes, o momento em que efetivamente respiramos. Um lugar incômodo onde se fica de passagem, olhando para o relógio a cada cinco minutos, torcendo para que a hora da nossa vida real chegue logo.

O valor da vida vivida neste momento está no ato radical de parar, mas não é uma paralisia, é uma pausa consciente, é sentir o gato enrolado no sofá não como um móvel, mas como um ser quente e pulsante que ronrona de contentamento.
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É notar a textura da xícara de café entre as mãos, o vapor que sobe em espirais hipnóticas antes de desaparecer no ar. É ouvir, de verdade, a pergunta trivial de um filho e enxergar a curiosidade genuína por trás dela.

Não se trata de um hedonismo irresponsável, de ignorar as obrigações. Trata-se de não deixar que as obrigações sequestrem a sua capacidade de sentir. O pão que precisa ser comprado pode ser o mesmo pão cujo cheiro fresco invade a padaria e provoca uma memória afetiva de infância. O ônibus que está atrasado pode ser a oportunidade de se observar o balé caótico da cidade, os rostos, as histórias mudas que passam pela janela.

O valor da vida vivida agora é anti-espetacular. Não vai gerar likes nas redes sociais porque é intraduzível em pixels. É um patrimônio invisível, construído de micro momentos de presença: o sabor do primeiro gole de água quando se está com sede, o alívio de encostar a cabeça no travesseiro após um dia longo, o conforto de uma mão que aperta a sua sem motivo aparente.

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O relógio da minha avó está errado há décadas. Mas ele acerta, todos os dias, em algo crucial: a hora certa é sempre agora, é quando a vida está acontecendo. Não uma vida grandiosa e cinematográfica, mas a vida real, feita de coisas pequenas e quietas.

É no agora que residem todos os cheiros, os sabores, os amores e todas as pequenas coragens. Desperdiçá-lo em expectativas ou saudosismos é adiar a única coisa que verdadeiramente nos pertence: o instante presente. Pare, respire, olhe pela janela. O ponteiro do seu relógio interno não precisa marcar nada. Basta que ele esteja aqui.

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