Do alto, enxergamos a fortaleza em estrela; mais parece uma sentinela de geometria austera.
Pedra sobre pedra foi erguida, a princípio para nos defender contra aqueles que desejavam nos conquistar, vindos do além-mar. Porém, quando parecia não ter mais serventia para lutar, transformou-se em um local agradável para passear e em histórias para recordar. As relíquias ali existentes precisam ser guardadas, protegidas daqueles que porventura delas queiram se apropriar. Os soldados, militares e guardas se revezam para cumprir essa missão e não deixar que as recordações se destruam.
Celyn Kang
Soldado raso, simples e modesto no viver.
Quando escalado para o grupo da noite, sentia falta do reboliço das tardes que os visitantes faziam. A tristeza e o desânimo lhe achegavam, junto com as histórias que sua mãe contava. Rompendo as cortinas do silêncio, para os companheiros começava o debulhar sobre os distantes tempos de liberdade e fartura que sua mãe pôde experimentar quando criança, em seu amoroso lar.
Sobre a parte triste e revoltante dos distantes tempos, ele não podia calar. Usava-a como arma para lutar e, para muitos como ele, para mudar o destino. Alguns já sabiam como se deu o trágico momento que seus ancestrais passaram, mas ouvir não os cansava.
“Na aldeia, sem seus habitantes esperarem, chegaram estrangeiros armados e traiçoeiros. Fizeram mulheres, homens e crianças prisioneiros. Levaram todos, como bichos de carga, para seus navios. Lá no porão, amontoados, acorrentados, com pouca água e comida, iniciaram uma longa travessia. Alguns não aguentaram tamanha judiação. Os mais velhos, detentores de sabedoria, para os jovens repetiam: ‘Sabemos que isso nunca praticamos, nem com um cão raivoso. Aguentem firme; ainda conseguiremos nossa liberdade.’”
Celyn Kang
Terminava sua contação com lágrimas escorrendo do seu coração.
Ela, pele alva como quem nunca recebeu do sol uma carícia, olhar de oceano. Ainda no ventre da mãe, a um nobre de quinze anos foi prometida; teve escrito por outros, no livro da sua vida, um destino tirano que deveria cumprir.
Celyn Kang
As histórias sobre Lisboa, terra de seus ancestrais, construíram nela sonhos de liberdade. Neles se via nas ruas da linda cidade a passear, um bom livro numa cafeteria a folhear e, num pequeno palco, um fado a cantar. Na troca de mundos, a alma se expandia, anseio em doce agonia.
O universo conspirou para que o encontro dos dois ocorresse.
Foi no pátio interno, onde o sol beija o chão, onde pedras soltas contam a erosão, com arcadas brancas, elegantes e sóbrias. Onde a grama, resiliente e tenaz, feito tapete, cobre as feridas que o tempo produz, acolhendo a brisa de um tempo desfeito e sombras de outrora.
Ele, o sentinela.
Ela servia de guia para os tios visitantes conhecerem a Fortaleza de Santa Catarina.
Celyn Kang
Vigilante, para que ninguém se sentasse nas relíquias, mergulhou, sem licença pedir, naqueles olhos azuis, que mais pareciam o céu em dias de verão. Ela paralisou diante dele. Indiferentes a todos, apaixonaram-se naquele primeiro olhar.
Seus corações palpitantes estremeceram e derrubaram a muralha das diferenças. Ali, naquele instante, suas almas se viram iguais. Brotou na fortaleza um amor tão imorredouro e, ao mesmo tempo, fugaz como flor na floresta que a ventania traz.
Canhões apontavam o futuro incerto; sombras lembravam que o perigo espreitava. Rumores se espalham, qual bruma do mar: um simples soldado aponta o proibido amar.
Descoberta cruel. Tomado por fúria desmedida e com honra manchada, o capitão, de alma ferida, ordena o castigo. No pátio central, para servir de exemplo, foi açoitado o subalterno infiel.
Celyn Kang
Sertão distante, seu novo lugar; mas deixa uma flor antes do trem embarcar, no ponto secreto, um último adeus — símbolo singelo, entregue aos céus.
Seus indesejados quinze anos chegaram, com eles o cruento casamento. Realizado em grande cerimônia, toda a vila presenciou o ato: prisão dourada, início de uma vida de aparências, alma gelada.
Da janela de sua gaiola, olha a fortaleza ao longe, a chamar, lembrando o amado, sob sol a queimar.
Os anos se dobram, a pedra resiste, guardando a história que ainda persiste. Em noites enluaradas, dizem que o vento traz sussurros de seus corações, em busca da sonhada paz.
Um amor gravado, não em papel ou tela, mas na alma daquele altar da velha cidadela.
Na sombra das muralhas, eterno a vibrar, a história dos dois amantes ecoa.























