"Para se ter uma cidade é preciso estar longe dela." A comarca das pedras , Hildeberto Barbosa Filho . De repente, uma ...

Flashes de minha vida em Paris (parte 1)

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"Para se ter uma cidade é preciso estar longe dela."
A comarca das pedras, Hildeberto Barbosa Filho.

De repente, uma vontade de escrever um pequeno roteiro sentimental dessa cidade já meio desaparecida. Relembrar certos lugares repaginados com um novo rosto, nos quais já não há vestígios da minha vida ali. Pois nos lugares ficam impressos gestos dos amigos, modos de viver e modos de ser. O sumiço de livrarias e de um café que frequentava. O vestuário do francês, antes tão singular, passou a assumir o padrão dos demais lugares do mundo. Até os hábitos alimentares hoje são outros. Tamanhas transformações me trouxeram pasmo e desencanto.

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Paris, 1970s: (1) Bouquinistes nas margens do Sena ▪ (2) Panthéon ▪ (3) Boulevard Saint-Michel ▪ Imagens: vintag.:.es
A Paris que vivi é como uma fotografia perdida no tempo, arquivada em minha memória, que também aos poucos começa a esmaecer. Via a cidade e tentava recompor com as cores desbotadas de minhas lembranças românticas e fora de moda, pracinhas, ruas, cafés, livrarias, restaurantes, brasseries, bar à vin, bistrôs, igrejas, pequenos museus. Talvez seja esse o preço por viver mais, testemunhar as transformações que apagam nossos rastros, nossas histórias de vida, embora reconheça que muitas mudanças sejam um avanço inegável de melhoria de vida. Novos hábitos denotam a morte de alguns valores e inauguram outra tendência comportamental.
As ruas de Paris nos anos 70.
O fenômeno da era digital já implantou nas relações humanas modificações significativas. Hoje é possível resolver quase tudo à distância via zoom, computador, celular. Até os afetos são tecidos via tecnologia.

Nos anos 1970 o telefone ainda era raro e a qualidade das ligações de longa distância era ruim. Cartas e cartões postais demoravam a chegar e eram precedidos por um elã da espera. A espera e o silêncio plenos de sentido. Fui me valendo de papéis guardados. Postais, cartas escritas à mão e me perco na beleza de uma grafia da letra de um amigo. Foi examinando essa forma de comunicação do século passado que tive a ideia de colagens, algumas vezes tomei a letra como imagem. Enchi cadernos com esse material do passado, dei-lhes visibilidade, um espaço físico com colagem, desenhos, aquarelas e pequenos textos. Imagens borradas do passado nas mensagens de cartões, e alguns textos que eu escrevia como pinturas da alma e vibrações do corpo. O que somos senão nossas lembranças?

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Com Sherry (DIR), em Meaux, França.
Quando morava em Paris trabalhei na empresa Engeroute, onde conheci Sherry, uma jovem americana que também trabalhava lá. Era um escritório de engenharia — na rue Rouelle no 15º distrito —, que já não existe. Nós nos ocupávamos da correspondência de nossos países de origem. Ela era casada com um francês e logo fizemos uma amizade que duraria muitos anos. Eles moravam no Marais, rue de Montmorency, na margem direita do Sena. O Marais, naqueles anos, não era o bairro descolado e chique de hoje. Mas, sempre foi um lugar charmoso, com mansões dos séculos XVII e XVIII, muitos cafés e bistrôs, além de pequenas lojas com vitrines em que os objetos pareciam alçados à aura de obras de arte. Muitas vezes eu me detinha diante delas com a mesma postura que tinha diante de uma pintura. Observava silenciosa, arrebatada pela beleza. Nessa época, os principais museus do bairro eram: a casa de Victor Hugo, na Place de Voges, e o Museu Carnavalet, que conta a história de Paris. Hoje, o Marais também abriga a obra de Picasso no belo Hotel Salé do século XVII. Mas nos anos 1970 Picasso ainda vivia. E o Beaubourg/Centre Pompidou era, nessa época, um grande canteiro de obras.

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Place des Vosges, Paris, 1970s
Era no amplo apartamento de Sherry e Bernard que tínhamos o hábito de nos reunir nos finais de tarde ao sair do trabalho. Fazíamos longos passeios a pé pelas ruas do bairro, ou íamos até o Quartier Latin. Bernard falava várias línguas, trabalhava como tradutor na Unesco. Ele tinha prazer em acolher os estrangeiros, curioso para conhecer outras culturas. Em seu círculo de amigos havia italianos, americanos, brasileiros, espanhóis, hispano-americanos, que também se tornaram nossos amigos.

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Com os amigos, Paris, 1970s
Foi através deles que me integrei melhor à cultura francesa. A casa da família em Meaux, cidade a 25 minutos de Paris, foi palco de muitos encontros. Eles reuniam todo o grupo em fins de semana prolongados. Quando não íamos de carro, tomávamos o trem na Gare de l’Est. Ele ia nos buscar na estação. Era uma bela casa com jardim onde fazíamos as refeições em dias ensolarados. A cada vez, um de nós cozinhava para o grupo, como um grande festim. Era lá que muitas festas eram realizadas, como a do casamento dos italianos Renato e Lilian. Íamos lá com muita frequência por sua proximidade de Paris.

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No jardim da casa de Sherry e Bernard, em Meaux, 1970s

Durante o dia, os americanos jogavam frisbee, enquanto outros se entretiam jogando xadrez ou andando de bicicleta pelos arredores. Havia também passeios de barco pelo rio Marne, um afluente do Sena. As pessoas iam e vinham. Aportavam em horas diferentes de maneira que havia um constante movimento de chegadas e partidas, e isso criava uma atmosfera de liberdade e alegria. Éramos uma trupe de jovens.

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Nossa trupe (ESQ ⇀ DIR): Massimo, Renato, Sherry, Humberto Espínola (com o braço no corrimão), Anick e eu (de verde), 1970s.
Tínhamos todos entre 20 e 25 anos. Jean-Michel, o fotógrafo, e Barreto — com quem eu era casada na época — estavam sempre de câmera em punho, registrando tudo. Gerard, irmão caçula de Bernard, gostava do esporte a vela. A irmã, Odile, estudante de direito, costumava recitar poesia em voz alta com seu humor galhofeiro. O chileno Rodrigo, curioso da história do Século XVIII, foi quem me despertou para ler sobre essa época da França. John, filho de americana com russo, impressionava pela beleza. Ele se casou com uma espanhola e vive hoje em Madrid. Certa vez, viajamos até o Marrocos para encontrá-lo em Tânger, onde sua mãe era vice-consulesa.

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Atravessando o Estreito de Gibraltar, rumo a Tânger, no Marrocos, 1970s.

Além de Bernard e Sherry, me liguei muito aos italianos Lilian e Renato, Mássimo, Nicole e Ângelo. Eles são os meus vinte anos. Todos eles são como descontinuidades que me fragmentam e, paradoxalmente, me constroem, fazendo-me ser outra: tenho um quê emprestado de Odile, um trejeito de Rodrigo chileno, um olhar atento de Bernard que gostava da ourivesaria das palavras. Todos eles me imprimiram qualidades, me moldaram jeitos, como um escultor molda seu mármore. Também eu, como Andy Warhol, tenho as cápsulas do tempo.
EM BREVE: a segunda parte de Flashes de minha vida em Paris.

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  1. JOSE MARIO ESPINOLA20/9/25 22:56

    Ah, Paris, toujours Paris... Humberto, meu irmão, nos conta muitas histórias dessa época vivida com vocês, Lucinha.
    Com a sua crônica, tão bem escrita, com muito carinho, se percebe, fiz uma deliciosa viagem.
    Até essa década, Paris era realmente uma festa. Que pena que isso acabou
    Parabens, Lucinha! Aguardo ansioso a continuação!

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  2. Tempo bom, quando a gente ainda sonhava!

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