Foi na margem direita do Sena que descobri uma Paris mais autêntica e mais generosa. Uma gente simpática e calorosa. Os pequenos museus do 9º distrito, a casa ateliê que abriga a pintura de Gustave Moreau e o Museu da Vida Romântica faziam parte de meus passeios a pé pelo bairro. As ruas próximas, como Germain Pilon, onde mora um amigo, e a Rue des Abbesses, no 18º Arrondissement são vias cheias de vida, de pequeno comércio que se alongam até o sopé de Montmartre. Costumava subir as escadarias de
Place du Tertre, no alto da colina de Montmartre.
Montmartre e descer até o outro lado da colina. Ia até o bistrô Chez le Négociant para tomar o beaujolais nouveau dos vinhedos de Montmartre e comer a morcela recheada com sangue de porco, purê de maçã e nozes.
De início, percebia a cidade com sua austeridade, seu povo disciplinado, irritadiço, preconceituoso, com dificuldade de lidar com estrangeiros. Porém, aos poucos fui descobrindo outro viés, outros seres mais afeitos à interlocução e mais respeitosos com o diferente. Levei alguns anos costurando em mim uma cultura diferente da nossa, tornando-me outra, mais afeita aos seus costumes formais, para então me sentir parte do meio no qual vivia. O francês é direto, costuma dizer o que não lhe agrada sem papas na língua. O importante é respeitar os hábitos do lugar, compreender que as diferenças existem de país para país. O mundo é esse caleidoscópio de hábitos e costumes.
ESQ: Place de la Concorde, endereço do escritório da Revista Manchete nos anos 1970 ▪ DIR: Rosa Freire d'Aguiar, Paris, 1970s, e o Maxim's ▪ Imagens: Wikimedia + @rosafreiredaguiar
Conheci a jornalista Rosa Freire d’Aguiar quando fui trabalhar na sucursal da revista Manchete, na Place de la Concorde, e nos tornamos grandes amigas, amizade que dura até hoje. Como trabalhávamos num local onde tudo era o que havia de mais luxuoso e caro, para almoçar recorríamos a um self-service que havia no subsolo do Grand-Palais. Também íamos ao bar do restaurante Le Royal, ao lado do icônico MAXIM’S na Rue Royale, pois ficavam literalmente ao lado do escritório da Manchete. Ao final do expediente, eu e Rosa, às vezes, saíamos da Manchete direto para o Via Brasil, uma casa de shows, música e restaurante de culinária brasileira instalada na Torre Montparnasse. Certa ocasião, vi Sartre e Simone de Beauvoir jantando no restaurante.
Jean-Paul Sartre (1905—1980) e Simone de Beauvoir (1908—1986), em Paris, na década de 1970.
Minhas duas irmãs fizeram doutorado em Paris, quando eu já morava no Rio. Voltei muitas vezes à cidade. Fazia mais de dez anos que eu não voltava à cidade, até o ano passado. Então, já não encontrei a Paris que vivi.
ESQ: Rue des Abbesses e escadarias de Montmartre. ▪ DIR: As três irmãs celebrando a vida em um bistrô em Paris. ▪ Imagens: Wikimedia + Acervo LMN
O encontro com meus amigos foi o que deu sentido à minha viagem. Depois de tantos anos sem nos vermos, o reencontro em uma exposição de Massimo (ele é artista plástico), com a leitura dos poemas de Ângelo e a presença de Renato e de Lilian, foi um momento de celebração. Emendamos conversas como se não as tivéssemos interrompido por anos. Convidaram-me para jantar em suas casas. Queriam me pôr a par dos amigos que já tinham partido (Odile, Nicole). Dias antes, tinha sido a vez de Bernard.
Renato e Ângelo conversam às margens do rio Sena. ▪ Imagem: Acervo LMN.
A amizade é o que há de mais delicado nas relações humanas. Há alegria e plenitude num reencontro. Há também a cota da tristeza que temos de pagar, quando as perdas nos surpreendem.
A vida é essa intensidade.
Renato e a autora, entre os bouquinistes instalados às margens do Sena. ▪ Imagem: Acervo LMN.
Hoje me vêm essas lembranças revestidas de uma pintura em tons esmaecidos e uma imensa ternura pelo tempo que passa e pela vida vivida. Nós não permanecemos. A casa em Meaux, sim. O apartamento da Rue Saint-Georges ainda está lá. A praça Saint-Placide, as pedras da fonte e a igreja Saint-Sulpice atravessam os séculos.
Se o ser humano não permanece, ao menos seus sonhos transfigurados em pedra permanecem.