Um trecho da obra A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, descreve a condição vital de Macabéa, uma datilógrafa nordestina que vive no Rio de Janeiro:
“Ela não percebia nada de delicado. Tudo nela era pobre e áspero. Não sabia que estava vivendo. Talvez porque viver, para ela, fosse um hábito.
Era incapaz de se enfeitar por dentro.
(...)
A moça não sabia que a vida é feita de delicadezas. Não desconfiava sequer de que existem assuntos sutis, porque o seu cotidiano brutal a impedia de pensar.”
Marcélia Cartaxo Imdb
Macabéa vive sem suspeitar da complexidade do mundo por causa de sua rotina de aspereza e brutalidade, numa existência reduzida ao instinto de sobrevivência. Clarice, porém, pressente nela uma espécie de santidade inconsciente, uma pureza que brota da dor.
A moça que não enxergava sutilezas, que não tinha consciência da vida, paradoxalmente, vivia em estado de inocência radical, como se sua ignorância fosse uma forma de graça.
Classic Literature
Quando o ser humano é esmagado pela dor, pela humilhação ou pela injustiça sem encontrar um sentido espiritual para o que vive, torna-se refém da própria ferida e tende a reproduzir o mal que recebeu. É o que acontece, por exemplo, com Raskólnikov, que comete um crime evocando uma “justiça superior”, mas, na verdade, sendo movido por um ressentimento profundo contra a miséria e a desigualdade que o cercam.
Quem sofre sem esperança e sem fé corre o risco de se tornar cruel, não por natureza, mas porque o sofrimento não elaborado se transforma em revolta, ódio e desespero. Por isso, a transcendência do sofrimento, através da compreensão, da compaixão e da humildade, é o único caminho para quebrar esse ciclo.
Aleksandr Kosnichyov
Em Ivan, o Imbecil, escrito por Tolstói em 1886, o personagem Ivan é chamado de “imbecil” porque é simples, inocente, não se aproveita de ninguém e vive em comunhão com a natureza e com Deus. Ivan sofre, mas não devolve seu sofrimento ao mundo. Ele é humilhado, enganado e explorado, mas responde sempre com bondade e silêncio. Em vez de transformar a dor em ódio, transforma-a em serenidade, não permitindo que o mal o contamine.
Tal qual Macabéa, o Ivan de Tolstói rompe o ciclo da crueldade. Sofre, mas não faz sofrer.
Sébastien Bloesch
O sofrimento, por si só, não purifica ninguém. A dor que nos faz transcender é aquela metabolizada pela consciência de que devemos ser estações terminais do mal.
A natureza dá o exemplo: o sândalo perfuma o machado que o fere, e a cana-de-açúcar, mesmo depois de passar por grandes apertos, produz o açúcar que adoça a vida, em vez de amargá-la ainda mais.
Sofrer sem devolver a dor, transformar o que nos fere em algo que conforta, é fazer do próprio coração um refúgio de paz para quem passa por nós.
A treva vira luz quando optamos por abençoar, e não amaldiçoar, mesmo em meio à escuridão.























