Cilgin ficou imaginando se não havia acontecido algo semelhante agora. E, naquela manhã, precisamente naquela manhã, que poderia ser u...

Era domingo numa segunda-feira...

insana lucidez helder moura solidao
Cilgin ficou imaginando se não havia acontecido algo semelhante agora. E, naquela manhã, precisamente naquela manhã, que poderia ser uma quarta-feira, chovia, enquanto os últimos dias tinham sido de sol. Quarta-feira? Ora, os dias já não eram mais os dias, desde que acordou domingo numa segunda-feira. Poderia ter acontecido uma catástrofe semelhante à do ano de 536. Afinal, o que poderia explicar a ausência de gente no mundo?

Ou poderia ter sido uma invasão alienígena. O cinema com seu mercado de catástrofes faz com que acreditemos na possibilidade. Uma invasão de seres,
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Renata Meneses
necessariamente, violentos, raivosos, famélicos, tipo o Alien, de Ridley Scott. Vieram só para exterminar a humanidade, por alguma razão. Sabe-se lá. Mas, porque teria restado apenas ele, o sujeito melancólico, dado a sonhos e pesadelos, igualmente, catastróficos? Ele, o escolhido. Pelo menos nas redondezas. Quem sabe, não haveria outros em locais distantes. Ou escondidos. Ou em outra dimensão, com a física do improvável, a quântica e suas possibilidades fantasmas, onde a lógica não conseguiu explicar.

E, pela primeira vez, pensou como tendo sido escolhido para sobreviver, era muito mais um castigo e um penar, do que tinha sido para os demais sacrificados pela fúria da carnificina alienígena. Morrer, afinal, só traz dor naqueles momentos derradeiros. Num instante, tudo acaba. Inclusive, qualquer possibilidade de sofrer. Sim, porque, para Cilgin, morrer era realmente o fim. Nada haveria além. Até entendia quem pensava na possibilidade de uma vida após a morte, mas ele, ele tinha imensa dificuldade de acreditar.

À tarde, cismou de ir até uma agência bancária. Se estava tudo tão disponível, então certamente haveria de encontrar dinheiro. E, realmente, a agência, como tudo ao redor,
Celyn Kang
estava deserta, e ele pode entrar sem problemas, dirigir-se aos caixas, onde encontrou maços de dinheiro, tão perfeitamente engomados. Montes deles. Pegou o quanto pôde e saiu exultante da agência. Até começar a sentir certo incômodo: aquilo era roubo!

Mas, roubar de quem, se não havia ninguém por ali? De quem é, afinal, o dinheiro que está nos bancos? Dos banqueiros ou das pessoas que depositam nos bancos? Haveria banqueiros sem pessoas para confiar seu dinheiro nos bancos? Caminhava digerindo esses pensamentos, quando se deu conta: pra que dinheiro, se tudo que preciso basta pegar e levar? Sim, de fato.

Mas, após algum tempo, decidiu levar o dinheiro assim mesmo, vai que de repente as pessoas voltam ao mundo, e ele terá feito uma poupança. Roubo? Sim, mas haverá roubo se não existe quem reclame o objeto do roubo? Roubo pressupõe um que rouba, outro que perde. Não parecia ser o caso.

* Excerto do livro de Hélder Moura, 'A insana lucidez do ser', publicado recentemente (Editora Ideia), disponível na 👉🏽 Livraria do Luiz.

"Gosto do modo como Hélder busca equilibrar o psicanalítico com o ontológico, associando a crise do ser (cuja defecção, segundo Kristeva, é uma marca do quadro depressivo) aos fantasmas a que o sentimento de culpa dá forma." (Chico Viana)


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