Há postes acesos, luz amarela se esvaindo pelo chão das ruas recônditas. Gente sobrada da sociedade dos abastados, as mochilas nos recantos, fumaças em tiras flutuantes e se evolando pelas rachaduras das marquises. Naquele conglomerado de esquecimento, são marcados pelas rugas da pobreza em seus rostos com expressão de choro e de dor. Sobre as calçadas esburacadas procuram se esconder na noite.
Os amigos e colegas vão se encantando, vivos ou não. Outro dia, na passarela do calçadão da Duque de Caxias, deparei-me com um deles. Não vou revelar o nome. Questão ética. Fazia parte de um grupinho que se reunia por ali, puxando do Ponto Cem Réis para a Praça João Pessoa. Conversa vesperal a discutir os sinais da vida. Ele se disse afugentado pelos anos, temia revelar o tanto estava anotado na caderneta. “Já não sou criança” – a idade escondida, disfarçada, escamoteada, envergonhada de se expor.
Via-o, em pijama, percorrendo a sala da casa estilo frontão e ligada às outras, ao lado da Catedral, onde morava. Magro, nariz aquilino, ele sobrava na vestimenta íntima e doméstica que usava. Era-me um enigma. Moço estudioso, entregue ao saber, vasculhando as páginas recheadas de conhecimentos. Jamais teria a ousadia em aproximar-me do parapeito da janela sempre aberta, a fim de conversar com ele. Era eu estudante no Ginásio “Lins de Vasconcelos”, do saudoso professor Manoel Neri, que morreu há alguns anos, bem velhinho, nos noventas e que, pela última vez, vi atravessando a movimentada Avenida Epitácio Pessoa, a desafiar carros ligeiros e obstáculos de calçadas desniveladas.
Estava ali, rosa desfolhada. Cuidava de suas ausências, entre o quartinho e o terraço, gestos e sons guturais. A custo se deitava na rede armada. Ali, estendia as recordações, no remanso de um passado variado em família, amigas de juventude, passeios, enfim, enquanto lúcida podia movimentar-se, ao trajeto da vida longa. Viu surgirem os cabelos brancos, a pele se tornando rugosa, o corpo
combalido e as rendas da flacidez nos braços. O calendário dos anos a trouxera através de nove décadas e meia. O máximo que fazia era folhear revistas, repassando figuras, que se tornavam embaçadas, gelatinosas em seu pouco ver. Aos domingos, cuidada pela funcionária, lhe era posto um vestido meio esgarçado na gola e gotas de perfume, após o sacrifício de um banho que lhe atiçavam as dores do reumatismo. Sentada na cadeira de balanço fingia esperar visitas da família. Repassava os rostos distantes. Fazia-os próximos como que a delirar. Chamava pelos nomes que não lhe davam respostas. Ela via os familiares em derredor. Somente ela.
Nem se pense em preconceito: mas o personagem é pesadão em quilos. Não consegue passar por uma lanchonete sem que a invada. Muitas vezes (e a escutei comentando com amiga íntima) fica esperando que a fritura chie e lhe venha ao prato com o pastel enorme (tipo família) e de um gelado refrigerante.
Fui colega de Joaquim Lins, no curso ginasial, Colégio “Lins de Vasconcelos” conduzido pelo Prof. Manoel Nery. Quinca era gordo, bigode tímido, cara arredondada, primo do famoso escritor paraibano José Lins do Rego. Um orgulho secreto do colega que não fazia alarido do parentesco com o autor de “Fogo Morto”. Este tido e havido pelo intelectual maranhense Josué Montello como o melhor romance da geração de 30.
Escolheu por mundo as imediações da cidade mordiscada, em desalento, ornada de incompreensíveis pichações. Desmandos de noites, escritos intraduzíveis lavrando as paredes dos casarões ao abandono. Por ali dominavam as tribos daqueles que se entregavam a vícios e desmantelos, a procurarem fantásticas aventuras. Mas se propunha a uma missão: fazer-se com eles, numa tentativa em recuperar vidas em desalinho. Torturas de quem se achava escolhido à redenção de jovens, adultos, enfim, gente tragada por nuvens espessas.
Alugou uma casa, ele mesmo preparava as refeições, disposto em fé e destemor. Iria, pensava, interpretar o mistério das inscrições nas almas das pessoas decepadas que optaram por aquele viver. A maioria jovens, uma lástima. Motocas envenenadas estacionavam próximas a um galpão. Formava-se a conspiração. Os moradores dos becos e sobrados se achegavam aos motoqueiros. Cantavam músicas, tocavam guitarras. Refugiavam para a reunião acontecida semanalmente.
Ele observava o alvoroço de uma juventude anestesiada por práticas estranhas, falando uma linguagem adversa. Escutava a algazarra, as danças, o espírito de resistência a regras pré-concebidas, a aversão a normas vigentes na aldeia de adultos maduros, velhos. Como tomaria alento para familiarizar-se com eles ainda verdes? Olhava-se a si mesmo e se aceitava já avançado no tempo.
Uma noite, aproximou-se. Foi chamado de coroa. Começou a compor a roda. Uns bebiam, outros tragavam. Tomou com eles uma dose de cerveja. Ganhou-lhes a simpatia. Foi notando que era uma fuga deles aos ditames férreos de uma educação que lhes exigia cumprimento de ordens, obediência subserviente, e se refugiavam naquele espaço privado, sem intromissão de ditadores de comportamentos arcaicos. Todos tinham as pichações nos corações inquietos.
Perguntou se eles acreditavam em Deus. Silenciaram. Uns esboçaram um riso sarcástico. O homem abriu uma carteira e se identificou como padre. Entreolharam-se surpresos. Abriu o coração e o sorriso para eles. Muitos vieram abraçar o sacerdote. Muitos deixaram de frequentar aquele mundo. Para sempre. Franco milagre.
A rua onde a rapaziada ia em busca de caçar borboleta ficava no centro. As casas se equilibravam em desalinho, roupas estendidas nos varais, principalmente lençóis encardidos, tomando sol forte ou a fresca do dia seco.
Praticava halterofilismo. Era neto de um campeão de luta livre. Sangue puro. Vencendo as discórdias da família que o queria numa rinha de paz, insistia em levantar a taça, qual galo de briga criado pelo tio, a fim de fortalecer o moral da raça. Eram pobres, humilhados, embora honestos.
A vida de Bastião não era um poço, mas uma cascata. Sonhava com tudo e em galgar posições restritas a quem já chegara ao topo da pirâmide social. Nunca se acostumou com o miserê em que se criara.
Era gordo. Nem tão balofo como se pode imaginar. Mas sobrado em banha. Pelo que soubesse, encantado com a cozinha. Empilhara algumas caçarolas de alumínio, outras de barro paradas no chão batido. Logo após terminar a construção da média barraca de madeira agarrada ao muro exterior da fábrica de refrigerantes, veio nos pedir água e começar a amizade conosco.
Quanto relógio de pulso ou mais antigos, de parede, abrira com percepção cirúrgica! Com o socorro do monóculo ia desvendando com um estilete as entranhas do aparelho de marcar o tempo. Puxava pedacinhos minúsculos, quase invisíveis a olho nu e encontrava o defeito que impedia o bom desempenho do relógio. Sorria feliz. Às vezes, um simples ajuste ou uma pilha vazando, algo simples até o colapso fatal da máquina. “Só outro, meu caro!” O dono quedou tristonho: um presente de aniversário que comemorava cinquenta anos...
Trabalhei com Dr. Lucas Suassuna, irmão do imenso escritor Ariano Suassuna, na Assessoria Jurídica da Universidade Federal da Paraíba (departamento extinto, há tempo). Ele nos considerava colegas, no mesmo nível dele, nosso chefe. E nós, eu, Luiz Graciano Cabral, de saudosa memória, éramos aprendizes, recém- saídos do forno do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais (era o nome oficial e pomposo do Curso de Direito da velha Faculdade, cujo prédio histórico ficava na Praça João Pessoa). Dr. Lucas era um homem simples, sem se deixar coroar por petulância de cargo e outras medíocres miudezas.
Não me venham confundir o papagaio com o “Urubu Malandro” composto por Pixinguinha. O choro do mestre é obra prima. Pixinguinha, como sabem, faleceu, em estado de graça, ao participar de um batismo. O Brasil lamentou, chorou a perda do grande compositor e músico.
Absolutamente normal: aquele desconhecido passa levando o cachorro de estimação e um periquito ao passeio matinal. O cachorro pequerrucho tem o hábito de cheirar o chão, instintivamente, à procura de uma pista. O periquito pousado ao ombro, dormitando, ao balanço das passadas do condutor. Este se mostra feliz em proporcionar aos bichinhos de estimação o sol morno, trajeto pela pracinha.
A última vez que me deparei com Monsenhor Pedro Anísio foi na Igreja de Lourdes, ali nas Trincheiras. Velhinho, abençoando no vazio, na tarde quente, os diversos recintos. Balbuciava orações, traçando o sinal da cruz como que a exorcizar. Exorcizar o invisível. O crucifixo grande, Jesus paralisado na imagem de sofrimento: contemplando a pintura ensanguentada, em cada detalhe, silencioso, ele talvez estivesse em exercício penitencial; dobrava o corpo combalido, os joelhos atravancados pela artrose,
Havia o cabide e nele, quais morcegos, as roupas esfarrapadas dependuradas. O relógio marcava o embranquecer da vida em cabeleiras mal penteadas do casal que perambulava, sem ter o que fazer, pelos recantos da moradia pobre. Casaram-se todos os moleques que tiveram, levaram suas vidas para terras distantes, deixando uma vacuidade. Somente um rádio de pilhas tocava: cantigas de viola, nas tardes que se iam amolecendo até tudo puxar uma escuridão que estendia seu corpo pelo pequeno sítio onde habitavam.
Havia um concerto naquela mulher miudinha. Ela dava aos fregueses de seu trabalho artesanal sorriso quase constante. A risonha meio-idosa, simplicidade das flores de prado, trabalhava a criação de universo de arames retorcidos, panelas pintadas, toalhas de mesa bordadas.
Cruzando a 1817, pela parte de cima, colega e amigo de pré-adolescência, eu o vi: quase não reconheci de tão fustigado pela magreza. Será ele mesmo? Fui ligeiro conferir. Era. Veio alargado em abraço. Portava desagradável surpresa. Baixei os olhos aflitos sobre a calçada, após escutar dele a notícia devastadora. Estava canceroso.