“Tomei o seu nome por guia e inspiração no momento de minha eleição para Bispo de Roma (...) Pelo exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral vivida com alegria e autenticidade”.
A casa sucumbia entre as sombras do arvoredo frondoso. Verde escuro e úmido envolvia coisas e viventes, num silêncio de igreja abandonada. Só não era proibido respirar.
A sala de aula era em Campina Grande, a frente mais avançada para um menino de sítio em seu contato inicial com o mundo. Seu primeiro grande contato com a vida surpreendente da grande cidade. Cidade que não chegava a 100 mil habitantes, mas eixo do mundo ou da terra na avaliação de quem saía de entre serras, como está no meu livro “Um sítio que anda comigo”. Eixo da terra nada imaginário da geografia FTD adotada em todo o Brasil de 1945 e do qual Campina se apropriava para atrair o mundo a redor de si.
Mercê de Deus ou da Senhora da Conceição, de imagem herdada de uma das remotas casas do Padre Ibiapina, ainda não fui eximido do exercício medido, pró-consciente da aplicação da palavra na construção da escrita. Desde que me entendi neste jogo tento ver no assentamento da palavra o que sentia o menino de parcos brinquedos a assistir à assentada de cada tijolo na obra de pedreiro de mestre Elesbão. A cada assentamento o alisado da colher e a recorrência ao prumo do nivelamento. No final, a parede vermelha sem reboco, um tijolo amarrado no outro numa composição que só anos depois, muito depois, pude associar, mesmo através de reproduções de banca de revista, à fase cubista de Mondrian.
O tempo tem seus descompassos no calendário da memória. Em 1951, logo que cheguei a João Pessoa, desci a escadaria de A União, onde subira levado por uma carta de apresentação, e lá embaixo, ao rés da calçada e dos resultados da carta, dou com os olhos no conjunto monumental erguido ao presidente João Pessoa.
Não houve golpe mais drástico no viço do meu artesanato do que terem exonerado o papel linha d’água da impressão dos meus escritos. Por conta de amores velhos com A União, um dos raros jornais deste país fiéis ao papel de impressão, ainda continuo no ambiente pelo qual fui gamado ou pelo que de melhor se escreveu e imprimiu na literatura do mundo.
Nesse calorão do nosso meio—dia, saí de uma sala fria, gelada, do Tribunal de Justiça, para, sufocado, sentir a falta imediata, no edifício vizinho da OAB, do gabinete do antigo presidente da Associação dos Procuradores, Assis Camelo, onde íamos respirar, anos atrás, o clima conterrâneo de Alagoa Nova. Com o ar refrigerado no mesmo grau, o calor da estima fazia a diferença.
Mas dou com o olhar numa casa de alpendre ao lado, de porta e janelas fechadas e que de repente se alegra, atraente, de jovens rostos, e que rostos, à janela. Era a casa de Lúcia Braga, que ela descreve de um modo, em suas memórias, e o antigo revisor de A União que eu fui via de outro em suas idas e vindas a caminho de casa, em Jaguaribe.
Rua da Palmeira (atual Rodrigues de Aquino) ▪️ J. Pessoa GSView
Li ou ouvi dizer que a vida começa a ter real encanto a partir do instante em que se constitui em memória. Os instantes felizes só chegam a ser felizes muito tempo depois. Vejamos o que dona Lúcia escreveu já exilada da militância política com o marido Wilson Braga:
“Eu já era mocinha de 15 anos e estava com Tereza e as Menezes debruçada numa das janelas da Palmeira, 73, quando três moços vestidos a caráter, com violão e guitarra aos ombros e usando sombreiros tipicamente mexicanos param na calçada e nos cumprimentam, galanteadores:
— Que belas muchachas! Por Diós!
Agradecemos as palavras gentis e indagamos curiosas: “Quem são vocês?”
— Somos artistas, El Trio los Panchos, e vamos hacer uma presentación em la Rádio Tabajara – disseram os três numa só voz. E acrescentaram:
— Poderemos cantar para Usteds?
— Gostaremos muito – respondemos vibrando.
E foi assim que assistimos a Los Panchos numa pré—estréia sui generis.”
Lúcia Braga Câmara dos Deputados (PB)
A Rádio Tabajara dava para a janela dessas meninas, a janela da casa da Rua da Palmeira. Exercia verdadeiro fascínio na vida de Lúcia e das amigas entre crianças e adolescentes. Palco nacional, não raro internacional, com gente como Los Panchos, Agustín Lara, do outro lado da calçada das meninas. Orlando Silva, Galhardo, Silvio Caldas, nem se fala.
Quando não era isso, era a guerra. A Tabajara retransmitindo os horrores da Europa que a BBC despejava estalando por entre o filó amarelado do mostrador do rádio. Lúcia e as meninas ouvindo, vendo tudo da escada da rádio, onde sentavam para brincar, esperar os tipos passarem na calçada, como o jovem sempre empertigado Humberto Lucena ou, a algumas milhas dali, fantasmas, Hitler, Churchill, as suas tropas, seus bombardeios e as nuvens negras que a narrativa mesclava de fagulhas e de jorros de fogo.
Prédio da Rádio Tabajara demolido em 1984, no governo Wilson Braga (PB) Mano Ramalho
Vem o marido, governador, e põe abaixo o castelo que a mulher reconstrói nas memórias, todo um mundo supervalorizado pela saudade e pela fama que o tempo foi deixando sentar, moldar, como um pó benéfico além do tempo.
Tempos felizes, diz Lúcia, depois de primeira—dama, deputada, protagonista de uma obra social que é apenas um dos capítulos.
Sofro de memória curta para certas coisas. Inclusive, para livros inteiros, muitos deles desbravados na hora, de forma ardente, e, mais à frente, esquecidos, ainda que me deixem algum rescaldo de nebulosa procedência. Quantas achegas às lições da vida são colhidas remota ou presentemente de alguma leitura!
Há pequeníssimas coisas que dispensam autoria mas que terminam trazendo do borralho de nossas vaidades a parte que temos com elas. São autorias que não vão além do autor e que justificam aquelas memórias saudadas por Flávio Sátiro em ensaio circunstancial como “a história por dentro”, ou seja, o depoimento narrado sem pretensões historiográficas, como quem abraça ou acarinha um álbum nem sempre fotográfico de instantes incrivelmente memoráveis, que nunca nos largam e que os de fora jamais se darão pela significação deles. Os que nos alimentam para a vida toda, mesmo repousados ou colados lá no fundo da consciência e por um nada sobem à tona.
Hoje o jornal A UNIÃO chega aos 132 anos impresso em papel, 80 dos quais coçando nos meus dedos, acendendo lembranças, atraindo-me quase a vida toda para o que tem se passado fora de mim e em mim se revertendo continuamente.
Somos de 1933, todos do mesmo ano: Juarez Farias, Evaldo Gonçalves de Queiroz e o autor duma crônica a cada dia mais solitária.
Ainda somos. Não houve jura nem promessa, mas “somos” - o plural do verbo assim mesmo no presente – só partindo o fio de continuidade quando os três deixarem de existir.
Vem a ideia de ser dado, antecipadamente, à “ponte do futuro” o nome de Augusto dos Anjos. Seria uma forma de responder ao Brasil de hoje àquela pergunta antiga de Gilberto Freyre a Zé Lins do Rego, bestificados diante da estátua imensa, na Praça do Bispo, a um general da nossa primeira República: “Quem é esse?“ – e diante da resposta: “E por Augusto dos Anjos o que vocês fizeram?”.
Sem formar ostensivamente no bloco dos saudosistas e, seja como for, respeitando-os, Cícero Lucena, o piranhense que pela quarta vez administra a terceira mais antiga capital do Brasil, não parece estranho a esta (para nós riquíssima) peculiaridade histórica de João Pessoa.
Roço o dedo à procura do telefone de João Batista Simões, nesta passagem de ano e, sem que possa me queixar, surge Gil Messias no site de Romero inconformado com o tempo que levamos para vencer uma avenida de légua das muitas que dão nome à nova cidade litorânea sem atinar com o que lhe devemos e mesmo quem foi.
Indicam-me a farmácia de manipulação “que fica defronte o jornal O Norte”. Indicação de três dias atrás. Como gostei! Reparei na menina que me falou assim e não a vi com idade para fazer de um jornal fechado há mais de quinze anos um ponto de referência. Menina recepcionista se muito nos seus 18 aninhos.
Será pelo nome de João Pessoa que a fome ainda campeia às margens das nossas cidades? Por mais que se invista (e como se tem investido!) fica difícil encontrar lógica nessa impertinência para mudar o nome da nossa capital ou abolir o que lhe foi dado, não pelo colonizador, menos ainda pelo poderes oficiais, mas pela pressão voluntária de um plenário que extravasou das portas do Teatro Santa Roza para a maioria das praças e ajuntamentos públicos acompanhados por todo o país.
Atraído por aforismo de Gide, saído da sombra para o Memorial que é página deste jornal, já me achava fechando a escrita à luz do do poente, quando vem o pior: a tevê anuncia a morte de Dalton Trevisan. Ele de sua Curitiba, província literária isolada até então dos cânones, tornada epicentro do mais novo modo de contar. O conto clássico já havia encurtado fora das nossas matrizes, aqui e ali com Tchekhov, Katherine Mansfield, William Saroyan, para falar do que sei. Mas não havia chegado ao conto-síntese, “beirando o patético e o grotesco, a face oculta de um ser humano que sempre procura mostrar o que na realidade não é”, como flagra Afrânio Coutinho.
Não me lembrava mais desse título dado por Luiz Hugo Guimarães à sua experiência de encarcerado do regime de 1964 na ilha de Fernando de Noronha. Publicado há 36 anos, reencontrado por acaso entre meus livros injustamente fora da estante, por alguma razão me dá as caras.