A carteira do trabalho é de março de 1954, quando o ministro Goulart propõe ao governo 100% de aumento ao salário mínimo. Eu traduzia telegrama no jornal O Norte e ganhava o mínimo, sem carteira, como revisor. Ganhava pouco, bem aquém do necessário, mas com leitura e intuição suficientes para invejar o texto enxuto, sem excrescência nem conectivos importados via radiotelegrafia.
Em entrevista para as “Memórias” de A União, Rubens Nóbrega, 22 anos depois de mim, também festeja a mesma experiência. Ler copiando nos atém muito mais ao significado ou valor de cada palavra ou construção, parecendo impregnar-se mais seguramente em nossa experiência cognitiva. Para o antigo tradutor, quando o lead chegou às nossas redações já nos encontrou meio desasnados pelas agências internacionais de notícia, que falseavam no conteúdo, mas nos iniciava na concisão e na forma.
Vivi desde fins do último julho, a partir das Olimpíadas, deslembrado da condição de idoso a não ser quando, a pé, ia à padaria ou à farmácia nas duas esquinas mais próximas. Apesar da pequena distância, os tropeços das calçadas arrastavam-me à dura realidade de uma cidade sem espírito público ainda que a crônica lírica chegue a consagrá-la como cordial. Cidade cordial, assim refletida em sua historiografia e no espírito representado por Coriolano, Celso Mariz, Carlos Romero, Crispim, Martinho Moreira Franco, seguidos sem hiato pela nova ou jovem crônica dos dias de hoje. Foi preciso que a Prefeitura, em gestão ainda recente, nivelasse no cimento toda a Beira-Rio e toda a Epitácio para advertir ou lembrar um espaço como direito ou prerrogativa humana.
A cachaça é tão antiga quanto o descobrimento do nosso país, mas foi sempre sonegada da crônica historiográfica como se tivesse chegado no matulão dos degredados.
Nesta véspera de aniversário da cidade, palmas primeiro para o fotógrafo Leonardo Ariel ao flagrar dois jovens restauradores em passarada com os pelicanos do Cruzeiro num banho de restauração e simbolismo que pela primeira vez me surpreende nestes 73 anos de vida pessoense. A foto, um flagrante antológico tanto pela surpresa da arte quanto pelo significado, saiu publicada na 1ª página da nossa A União da última sexta-feira (2).
“É quase ininteligível que uma nação com o desenvolvimento dos Estados Unidos fosse entregue à direção de um ser tão inadequado quanto Donald Trump. E esteja ameaçada de repetir o desatino. Guardadas as proporções, o Brasil de Bolsonaro, a Venezuela de Maduro, a Argentina de Milei, apesar de tudo, não justificam tamanho desprezo do destino”.
É como reencontro o jornalismo de Jânio de Freitas, estranhamente despachado da Folha de S. Paulo onde alimentou consciências quarenta e mais anos seguidos. O parágrafo que abre este registro chega-me por conta de Paulo Emmanuel, um jovem da terceira geração de seus fiéis leitores que o resgata de publicação nova não sei se impressa ou virtual. Tão fiel quanto o nosso Frutuoso Chaves, outro cultor de carteirinha de Jânio.
Não resisti ao apelo de quem pôs em livro o Café Alvear, o ponto de encontro perdido, aderindo a esta cidade ainda no tempo em que todas as pessoas se conheciam e fui ver, com o sol brando, o Ponto de Cem Réis em obra na nova versão de Cícero Lucena.
Veio a insônia, talvez o receio de me entregar aos fundões da noite, e acendi a luz da varanda como a procurar companhia. Num cantinho ao lado da cadeira vegeta uma pilha de livros à espera de leitura. Entre eles — os demais que não se queixem — o Ulysses da professora Bernardina da Silveira, já que não fui adiante, por mais que se exigisse de um leitor de romances, o de James Joyce na tradução do grande Houaiss.
Para os da minha geração, a tendência mesmo é nos deixarem sem nada. Ainda me banho de poder usar o pronome num plural acanhado graças à sobrevivência de uns pouco iguais na idade ou de contemporâneos aproximados, uns reclamando menos, outros mais, todos, porém, sem graça, no prejuízo dos seus mais enraizados costumes, devoções e lazeres.
Existem duas ladeiras escarpadas desaguando para a Rua da Areia das quais nunca me senti livre: a Feliciano Coelho e a Peregrino de Carvalho, que exigiam o máximo de nosso fôlego para se chegar ao cume que era a Rua Nova com o belo portal de sua biblioteca universal e, do outro lado, à Rua Direita, o sonho do meu primeiro emprego, base e mirante ansioso de quase tudo a que pude chegar na vida.
Quase não alcanço o final da subida da Rua da República, rua traçada por B. Rohan e cenário da melhor crônica que nos legou Luiz Ferreira, um cultor eciano da escrita que dirigiu A União na fase de instalação no Distrito. Não lembro o título e só o narrador a recontaria, se é que não fosse um conto dos russos. Perdeu-se na efemeridade do jornal. Foi ele um lavrador bem-sucedido da literatura a retalho deixada por rigor perfeccionista fora do livro. O que não foi nem tem sido diferente com Martinho Moreira Franco, que tanto nos alertava para cada gol de placa de Ferreira, comportando-se, ele também, com a mesma desconfiança do seu talento e, no final de contas, da aceitação do seu grande número de leitores, sobretudo dos colegas de ofício.
O xerém que nos foi servido em crônica de alguns dias pelo joffiliano Thomas Bruno, ele ressaboreando um café ainda sob o quente aroma de sua infância, deu água na boca de um outro menino remoto, aborrecido do internato no Pio XI, que se agregou à casa de um tio, em Campina Grande, isto há pouco menos de oitenta anos. A casa ficava no Alto do Seixo ou dos Seixos que, com o tempo, deve ter perdido esse nome.
O busto do presidente Camilo de Holanda, no final das Trincheiras, foi arrancado do pedestal. Não soube pelo rádio, não li no jornal e menos ainda nas redes sociais. Faz isto uns cinco anos. Notei de relance ao passar pelos restos mortais de um dos postais que anunciavam a quem viesse do sul “a cidade mais vegetal do que urbana” assim estampada pelo paisagista mais fiel das nossas letras. Desrespeitei a norma e estacionei na calçada oposta para verificar de perto, à luz dos meus olhos e ao roçar dos meus dedos, a impotência das instituições do patrimônio cultural e histórico para defender-se e defendê-lo do desajuste extremado entre o quinhão que tem por que zelar e a massa bruta (porque nunca foi tratada) que não sabe o que vai comer no dia seguinte.
Andei relendo, esta semana, o negro Lima Barreto, não o do romance, o do belo e poético romance de Policarpo Quaresma. Mas o da crônica, o que vai no bonde, desce no café e traz à luz, tantos janeiros depois, as vozes anônimas das ruas que ficaram soterradas no Bota Abaixo de Pereira Passos, na Revolta da Vacina, no passeio guarnecido de destroyer, pela Baía da Guanabara, do nosso Presidente Epitácio. Que ostentação de força e de poder!
Um livro de referência a grandes escritores, que se espragata do alto da estante aberto em página dedicada a Elias Canetti, foi o que lucrei trepado em perseguição a uma aranha avistada da rede a se enfiar por entre os dorsos. O livro não foi o que lhe deu consagração, o Auto de fé, do qual, numa leitura precária, ainda pude guardar a terrível impressão que lhe causaram as multidões enraivecidas, mordidas de nazifascismo nas ruas da Viena de 1935. Dele não consigo me livrar de uma sentença que anotei com força de praga: “Tudo o que foi esquecido brada por socorro nos sonhos”.
Era no trabalho que melhor nos irmanávamos. Emulações à parte, naturais, legítimas, se não se rendiam não chegavam a comprometer o companheirismo. Terminavam recônditas.
Hildeberto Barbosa Filho ressalta numa Letra Lúdica dos meus guardados a falta que vem fazendo a crônica assinada por Martinho Moreira Franco, em sua maioria fadada a se manter viva em livro. Quantas delas nos revisitam por si mesmas, associadas a alguma emoção do instante presente. Foram muitos os momentos bem-sucedidos de sua especial subjetividade.
“Como tantos outros, não coligiu seu texto publicado nos jornais num volume que permitisse relê-los, ao sabor do critério da vontade e da estesia que a arrumação de suas palavras na frase despertava no leitor.”
— lamenta, às custas de seu exemplo, estendendo aos outros o amor que nutre pelo labor literário.
Martinho ironizava-se se dizendo cronista de variedades, carona que pegou na qualificação de intenção elogiosa como uma confrade amiga o tratara num registro qualquer.
E que variedades! Lembrei-me, já agora, por ser final do abril de Augusto e pela insistência como o telefone forçou-me a sair da rede só para ouvir um “desculpe, foi engano” - lembrei-me de crônica fora do estilo de Moreira a tirar partido da “ultrajante invenção do telefone”, nevrose que ele não deixou exclusiva do poeta do EU. Pena que essa crônica tenha se ido com ele.
Também Crispim se queixava da intervenção do telefone nos momentos mais inoportunos, cortando frases ou ideias em formação, como se escrever para ele fosse um prazer de portas bem fechadas. Andava de caderneta e lápis para o surto das ideias.
Quanto a Martinho, devo lembrar que foi sempre comedido em sua própria avaliação. Até mesmo em vazar seus autores e leituras, salvo as de cinema ou autores que migraram do jornal antes do livro e que fizeram o que ele não fez, buscar homizio mais seguro. Mas ninguém se deixasse levar por essa parcimônia. Percorrera o melhor da literatura brasileira e muita coisa estrangeira quase sempre atraído pela versão cinematográfica como Hemingway, só para citar o de sua maior nota, O velho e o mar.
Quando existiam aqui três jornais impressos, gastava a manhã inteira a saber dos outros, sobretudo da cidade, mais para conferir suas andanças, seus reparos, que para saber novidades. Lia por nós todos, e como sabia que muitos não liam ou liam por cima, era ele que fazia o telefone nos acordar para a notícia que suscitasse solidariedade ou nos deixasse numa boa. Lia por nós todos e para todos nós. Nas suas mãos o telefone deixava para trás a má fama de invenção ultrajante.
Nesse amor firme e justo pelas letras dos outros, Hildeberto não esquece seu antigo colega de colégio, Arlindo Almeida,
“de quem li, no dia a dia dos jornais impressos páginas de indiscutível valor a transbordar da fugacidade do tempo e da circunstância, detentora daquele olhar especial que só o autêntico jornalista possui.”
— conclui depois de ressaltar o pendor de Arlindo para as temáticas literária e filosófica, revelado desde o aluno do Colégio da Prata, em Campina Grande. Não cuidou de si, como reclama seu fiel colega de classe escolar, mas deve-se à dedicação de Arlindo, morto precocemente, a coleta possível das crônicas de outro que se consagra como belo exemplar humano, Nathanael Alves, mas que subestimou o belo acervo de páginas escritas em tom de apólogo dirigido a um mundo muito mais carente de amor que a do autor do seu livro de cabeceira, o jesuíta Teilhard de Chardin.
Uma das minhas antigas quizilas com a crítica literária sempre foi a de não encontrar o cronista Genolino Amado entre os elencados nas antologias brasileiras do gênero. O cronista que chegava a nossas páginas para adoçar as noites compridas do revisor, mesmo já iniciado nas “Sombras que Sofrem” de Humberto de Campos, da biblioteca de Alagoa Nova. (Ia dizendo bibliotequinha de Alagoa Nova - que injustiça, que grossa ingratidão!)
Ideal seria que fosse dado a todos sangrar seu substrato lírico, independente de idade ou de estações da vida. Foi o que senti aos primeiros tons da lira amorosa de José Nunes, deixando-se entrar em recaída numa idade em que já nos cansam outros labores.
Nesta idade de releituras, trago às mãos uma obra de Balzac e vem-me à lembrança o esforço da antiga editora Globo, de Porto Alegre, para editar a versão brasileira da “Comédia Humana”.