Prometeu encontra-se cravado a ferros em uma escarpa da Cítia, sofrendo a punição ordenada por Zeus e executada por Hefestos, sob a supervisão de Poder e de Violência, duas divindades do séquito de Zeus, filhas de Estiges (Hesíodo, Teogonia, v. 385 e 400-401).
Ao anunciar que ministraria um curso sobre o romance Os miseráveis, de Victor Hugo (iniciei-o, desde o dia 16 de agosto passado), com aulas aos sábados, no horário das 09h às 12h, no auditório Celso Furtado da Academia Paraibana de Letras, muitas pessoas demonstraram interesse em fazer a inscrição. Algumas outras perguntaram se o curso não teria uma opção on-line. Respondi que a filmagem e a transmissão do curso, para um dos canais da web, exigiriam recursos de que a nossa Academia não dispõe.
O poeta grego Teócrito (310-250 a. C.) fez um poema, cujos versos representam graficamente uma flauta; o latino Virgílio (70-19 a. C.), seu seguidor, mostrou o pastor Córidon ardendo de amores pelo belo Alexis, idealizando vê-lo, em sua companhia, imitar o deus Pã, cantando as suas canções (mecum una in siluis imitabere Pana canendo, II, v. 31); Pã, o primeiro a unir com cera vários caniços (Pan primus calamos cera coniungere pluris/ instituit, II, v. 32-33). Já o poeta Ovídio (43 a. C. – 17/18 d. C.)
Pã aborda Siringe na margem do lagoJF Troy, 1720 ▪ Museu de Arte de Cleveland
nos legou a origem da flauta, na narrativa de Mercúrio a Argos (Metamorfoses, I, v. 682-712), quando o vigilante da desventurada Io pergunta ao deus como fora inventado o instrumento: Pã, apaixonado pela beleza da náiade Siringe (Σῦριγξ), não contava com a sua transformação em junco, operada pelas hamadríades, que a tinham como irmã. Em sua perseguição, Pã agarra o mais novo cálamo do rio Ládon, pensando ter agarrado a ninfa. De seu suspiro, que vibrou dentro do caniço, originou-se um frágil som, semelhando um lamento. O deus, então, juntou vários cálamos de tamanhos diferentes e uniu-os com cera, concedendo ao instrumento musical recém-inventado o nome da ninfa: Siringe. Estava inventada a flauta: a grácil avena, de Virgílio; a frauta ruda, de Camões.
Pã toca sua flauta, feita de cálamos unidos com cera (siringe) ▪ GD'Art
Ao pé do divino monte Hélicon, o pastor é tornado poeta, conforme nos narra Hesíodo (Teogonia, v. 22-34). As Musas, habitantes daquela região, sopraram na boca dos pastores e inspiraram a poesia; substituíram o cajado pelo ramo virente de um loureiro e concederam-lhe o dom do conhecimento, assim como elas, do passado, do presente e do futuro. Ao som da flauta, juntaram-se as palavras, nascendo o poeta, sob os auspícios das divindades – Pã, pela flauta; a inspiração, pelas Musas; a poesia do vate, o poeta-profeta, pelo ramo do loureiro de Apolo. O poeta, como sempre, indo mais além, juntou o poema ao bailado, criando as belíssimas circunvoluções do Coro da tragédia grega.
Competição musical entre Apolo e PãA. Janssens ▪ Galeria Nacional da Eslovênia
A relação entre música e poesia, ambas em essência na natureza, remonta aos tempos imemoriais. Os instrumentos musicais que os seres míticos inventaram e puseram à disposição do pastor são a transformação do natural, recriando, num processo de mímesis, a música para o contentamento dos homens, na hora em que dela precisassem, como alimento do espírito, não do estômago.
Em breve itinerário, vimos como o poema nasce de uma relação indissociável com a música, o que nos autoriza a reafirmar que ele foi feito para os ouvidos, não para os olhos. Como este grandioso evento, o VIII Festival Internacional de Música de Câmara PPGM-UFPB, cuja abertura tenho a honra de realizar, decidiu, sob a coordenação do Professor Doutor Felipe Aquino, homenagear o poeta Augusto dos Anjos, epitetando-o Um Festival para Augusto, considero a mais feliz das associações, tendo em vista a riqueza musical, rítmica e harmônica que existe nos versos deste que é, não apenas o maior dos poetas paraibanos, mas um dos maiores da Língua Portuguesa. Assim, é com grande satisfação que vemos neste momento de homenagem ao poeta do Eu, a reconstrução do que se perdeu com o tempo: em lugar da poesia lida na solidão de um espaço qualquer, a poesia para ser escutada melodiosamente, para muitos ouvidos, não só o do poeta.
O que me dizem, por exemplo, da estrofe inicial do poema Noite de um Visionário (v. 1-4), que nos põe, num crescendo magistral, lado a lado com o silêncio, com o lento modular da música que segue e finaliza com o tutti de uma orquestra sinfônica, no despertar da harmonia do seu conjunto?
Número cento e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola.
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liquefeita.
Ou a beleza da plasticidade da rima, na estrofe 14 de Monólogo de uma Sombra (v. 79-84), em que, na descrição do corpo em decomposição, vê-se a sinuosidade do verme necrófago, em movimento, reivindicando a parte que lhe cabe na “bacteriologia inventariante”?
É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.
Vou um pouco mais longe e imagino, neste instante, ver e ouvir o artista musical procurando expressar esse movimento visual e sibilação da rima em “esse”, na sonoridade de seu instrumento.
'Engenho Pau d'Arco', em Sapé, na Zona da Mata do estado da Paraíba ▪ Fonte: IPHAN
Este é o poeta Augusto dos Anjos. Como todo grande artista, buscando a criação, que o gratifica, para não se sentir um deslocado diante da “aspereza orográfica do mundo!” (Monólogo de uma Sombra, estrofe 26, v. 156). É o poeta nascido no bucólico engenho Pau d'Arco, há poucos quilômetros de nossa João Pessoa, que nesta cidade morou por dois anos, entre 1908 e 1910, quando ainda se chamava, não menos bucolicamente, Parahyba; poeta que, apesar do entorno acanhado, não se desligou do mundo sempre em profundas transformações, políticas, sociais, científicas, espirituais – Marx, Darwin, Kardec, Haeckel, Freud e “a passagem dos séculos”, esse “cavalo de eletricidade”, que tanto assombrava o mundo (Poema Negro, estrofe 2, v. 1 e 3)...
Augusto dos Anjos é daquela raríssima casta de poetas que encanta o homem erudito e o homem popular, por todos os aspectos de sua poesia: do vocabulário único à musicalidade de seus versos; da criação de uma atmosfera da mais sombria degradação à busca do renascimento espiritual; pelo lirismo de tensão e pelo lirismo da ternura,
Augusto dos Anjos (1884—1914), professor e poeta paraibano.
como se pode ver nos sonetos ao pai, um tríptico-síntese da sua criação literária.
Diante de tantas transformações finisseculares, afetando o comportamento de todos, Augusto dos Anjos poderia ter escolhido o caminho da rebeldia, ciente da degradação que saltava aos olhos. Preferiu, no entanto, acreditar que se a revolução científica, operada por Darwin, com a teoria da evolução da espécie, que ele, Augusto, através da leitura de Ernst Haeckel, transfigurou belissimamente em pura poesia, expunha a vida como uma luta constante e nos jogava na cara a degradação da matéria e, por extensão, da sociedade, a evolução revelava também que a vida não para, que suas transformações constantes nos oferecem a imortalidade. Se essa continuidade acontece com a matéria bruta, não poderia ser diferente com a alma, com o espírito (Os Doentes, estrofes 105-110, v. 415-438):
Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos,
Descompondo-se desde os alicerces!
A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstrato que não morre
Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
Parecia também desagregar-se!
Os pródromos de um tétano medonho
Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,
Eu sentia nascer-me n’alma, entanto,
O começo magnífico de um sonho!
Entre as formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!
O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna
O vagido de uma outra Humanidade!
E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie Humana!
A degradação que nos encaminha para a morte, essa “alfândega, onde toda a vida orgânica/Há de pagar um dia o último imposto!” (Os Doentes, estrofe 30, parte III, v. 117-118), são os passos necessários para uma nova vida. Em lugar da transformação, portanto, pelo ativismo político, preferiu o poeta a transformação pela poesia, com a consciência de que a matéria é só um estágio no desenvolvimento da alma, sendo a degradação o passo decisivo, a “célula inicial de um Cosmos novo!”, para a gestação, que traz “O vagido de uma outra Humanidade.”
Pã na Floresta ▪ GD'Art
Poeta da morte? Nunca! Poeta da vida, porque a vida não para. É a lei do Universo. Lei cósmica que promove o equilíbrio do espírito, pois se “a carne é que é humana! A alma é divina” (Gemidos de Arte, estrofe 9, parte I, v. 33). Nessa compreensão, Jesus “Resume/A espiritualidade da matéria” (Poema Negro, estrofe 16, v. 93-94). Augusto dos Anjos poeta-vate, poeta-profeta, cuja Sombra, “pairando acima dos mundanos tetos” (Monólogo de uma Sombra, estrofe 3, v. 13), “abraçada com a própria eternidade”, sempre esteve e sempre haverá de estar aqui (Debaixo do Tamarindo, v. 13-14).
A Mirabeau Dias, que não só detém a informação, transforma-a em conhecimento e tem os documentos que a comprovam.
No artigo “Onde está o número 17?”, publicado há dois anos, no Ambiente de Leitura Carlos Romero, aventamos a possibilidade de o poeta Augusto dos Anjos ter morado em uma das casas após o prédio do antigo Colégio Pio XII. Foi um erro ocasionado por má compreensão nossa do que está contido na sua carta à mãe, datada de 16 de julho de 1908, comunicando-lhe o novo endereço, para onde ele, o irmão Aprígio e o tio Alfredo, irmão de sua mãe, mudaram-se, de modo repentino,
“Aquilo que é acrescentado ou suprimido sem que se produza qualquer consequência apreensível não é parte do todo”.
É o que afirma Aristóteles, na Poética (1451a), quando propõe uma definição mais completa da mímesis, como uma ação singular que forma um todo. A partir daí, compreende-se que o criador – poeta ou prosador –, não tem qualquer compromisso com o fato ocorrido, mas com o que poderia ter ocorrido, de acordo com a verossimilhança e a necessidade (1451a).
Sempre afirmo que a crônica, quando sai das páginas dos jornais e se transforma em livro, modifica a percepção que se tinha de sua leitura anterior. No jornal, a crônica, por mais que não o deseje o cronista, está colada à efemeridade das folhas, que noticiam os acontecimentos diários. Ao passar para o livro, a crônica ganha um perfil de perenidade. O jornal, passada a
Victor Hugo é um dos maiores escritores da humanidade. Além de romancista, poeta, dramaturgo, crítico, homem político – fazendo Política, com “P” maiúsculo – ele era um pensador, construindo, ao longo de sua obra, frases que são verdadeiras sentenças, incluídas, sem a menor hesitação, na categoria dos aforismos.
O Canto XXIX do Inferno nos mostra Dante e Virgílio saindo do Nono Bolsão e adentrando o décimo e último recanto do Oitavo Círculo, o mais complexo de todos os demais percorridos pelos dois poetas. Eles deixam os condenados por semear a discórdia e se encontram com os falsários, mais precisamente, os punidos pela prática de alquimia.
A primeira parte de Os Miseráveis chama-se Fantine; o Livro Primeiro da primeira parte intitula-se Um justo (Un juste), cujo objetivo é fazer um perfil de Charles-François-Bienvenu Myriel, bispo de Digne, aclamado pela população como Monseigneur Bienvenu (Victor Hugo tem um modo especial de estruturar os seus romances: divide-os em partes; cada parte em livros, e cada livro em capítulos).
Hefestos, constrangido, prende Prometeu; Poder vigia implacavelmente o trabalho; Violência apenas acompanha o desenrolar dos fatos, sem proferir palavras ou realizar qualquer ação; Prometeu, acorrentado, lamenta o seu destino trágico. Eis o que poderia ser uma síntese do Prólogo de Prometeu acorrentado, tragédia de Ésquilo.
Parte do que aqui escrevo foi um sonho que tive, mas sabendo do alcance do seu saber e da sua compreensão, posso confessar que foi um desdobramento, tal a materialidade tátil do que vivi. Eu saía de um edifício, quando fui chamado, do outro lado da rua, pelo meu irmão Arturo Gouveia, um grande conhecedor de Augusto dos Anjos, para ir até o lugar em que ele se encontrava. Ali chegando, encontrei-o acompanhado do nosso querido William Costa e de uma outra pessoa, cujo nome não lembrei, e ainda não lembro. Arturo me perguntava se eu iria participar da edição mista de Augusto dos Anjos, compreendendo,
O que esperar de uma conversa de cavalheiros, cultos, nível superior, limpos, bem vestidos, todos eficientes nas funções que desempenham, reunidos numa sala de uma mansão de estilo clássico, decorada com motivos clássicos, num ambiente em que imperam a assepsia e a cordialidade, com um mínimo de discórdia que, muito civilizada, jamais chega ao nível da desarmonia destemperada? Trata-se de uma encontro com bolinhos, café, enroladinhos de salmão, conhaque, definida como um segundo café da manhã, reunindo homens que comungam uma mesma ideia, como se pertencessem a uma confraria qualquer.
A palavra do dia é moderação. Na música Positivismo, o grande Noel Rosa constrói uma belíssima e inusitada metáfora, como um conselho à amada que despreza o seu amante e o deixa:
MM\
Vai, orgulhosa, querida
Mas aceita esta lição:
No câmbio incerto da vida
A libra sempre é o coração.
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Os poetas, os verdadeiros, aqueles oriundos e constituídos da melhor cepa, podem tudo, e a metáfora da libra como o fiel da balança, aliada à outra que trata a instabilidade natural da vida como “câmbio incerto da vida” é simplesmente genial. Não esqueçamos que durante muito tempo e ainda em vigor na Inglaterra, Reino Unido e Grã-Bretanha, a libra é simultaneamente uma medida de peso e um valor monetário. Assim, o poeta dá uma pequena lição na instabilidade da amada, advertindo que o equilíbrio e maior valor que podemos ter reside no amor
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e, no caso, na sua representação metonímica, o coração.
De Noel, passamos para o latim no seu sintetismo, dizendo muito com poucas palavras – in medio virtus. Embora a expressão latina queira dizer apenas o que ali se encontra, que o meio, o equilíbrio, a moderação é onde se encontra a virtude do ser humano, há os que distorcem o significado entendendo a sentença como uma definição de mediocridade, como se a mediania não fosse um perfil geral, como se a expressão significasse apenas a inferioridade. Todos somos medianos. Acima disso, os gênios.
A mediania nos ensina a viver e dar outros voos de vez em quando, mas sempre voltando para pôr os pés na terra, onde está a nossa segurança. Mediania é um outro nome para a moderação que todos devemos ter, o que poderíamos também chamar de sobriedade.
Vamos para a língua grega, com a sua precisão no emprego dos seus termos. Para o homem grego, desde os tempos arcaicos, o que equivale dizer tempos homéricos, o diafragma era a sede do saber, do raciocínio, da reflexão.
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Ainda não se conhecia a fisiologia do cérebro, para lhe atribuir a capacidade do pensamento. O cérebro era apenas o que estava dentro da cabeça, o encéfalo (ἐγκέφαλος). Toda atividade nobre de amadurecimento espiritual, no sentido de exercitar-se para a moderação, para a continência, estava atribuída ao diafragma. E há uma explicação lógica para isto. O diafragma é um grande músculo peitoral, cobrindo todo o esterno, que movimenta a respiração. Quando aprendemos a respirar, passamos a moderar os nossos impulsos, afastando-nos de tomar medidas das quais iríamos, certamente, nos arrepender. Não é à toa que, quando alguém está tendo um ataque de pânico ou de ansiedade, pede-se que ela respire dentro de um saco de papel, de modo a poder controlar-se.
A palavra diafragma, em grego, é frén (φρῆν), cuja raiz se encontra em um dos mais caros termos para Platão. O termo também é caro no âmbito da tragédia grega, para o entendimento do erro transcendental que o homem comete, cavando sob os próprios pés um grande abismo, do qual, dificilmente,
A moderação é exercício diário, que nos dá mais tempo para a reflexão, para que nos dobremos sobre o nosso pensamento, antes de pronunciá-lo.
ele conseguirá escapar, não por culpa dos outros, mas das suas carentes de reflexão: sōfrosyne (σωφροσύνη). Em suma, quando nos falta a reflexão necessária, para agirmos com moderação, pagamos pelos nossos erros, e não adianta culpar os outros.
Ao que parece, de uns anos para cá, esquecemos de cultivar a moderação, sendo o destempero a nota corrente, com as pessoas se exaltando e fazendo de qualquer atitude do outro um motivo para um digladiar-se sem fim.
GD'Art
Finalizemos com a toga romana. Otávio César Augusto, cultor dos velhos costumes, tomados como bons e como modelo de moralidade, os mores maiorum, reintroduziu durante o seu governo, longo governo de 58 anos (44 a. C. – 14 d. C.), o uso da toga entre os patrícios, de um modo geral. O objetivo? O exercício diário da moderação, que começa através da diminuição da gesticulação. Como a toga exige a ocupação de um dos braços, além de ser uma vestimenta que limita os movimentos expansivos, os chamados gestos largos e efusivos tendiam a diminuir.
A moderação, portanto, é exercício diário, que nos dá, pelo cerceamento da efusividade e da impulsividade, mais tempo para a reflexão, para que nos dobremos sobre o nosso pensamento, antes de pronunciá-lo. Não esqueçamos que uma das imagens caras a Homero é uma referência a “proferir palavras aladas” (ἔπεα πτερόεντα προσηύδα, Ilíada, Canto IV, verso 284). Paralelamente, havia a expressão “palavra que transpõe a barreira dos dentes” (ποῖόν σε ἔπος φύγεν ἔρκος ὀδόντων, Odisseia, Canto I, verso 64). Se as palavras aladas podem ser boas, quando ditadas pela sōfrosyne, elas serão danosas, quando irrefletidas, porque depois que transpõem a barreira dos dentes, tendem a destruir o equilíbrio, a moderação, a reflexão, que habitam a mediania e fazem o mundo avançar.
Poetas, candidatos a poeta, amantes da poesia – leiam Gonçalves Dias e Manuel Bandeira! Sim, deixem de lado os poetas atuais, deixem seus coevos repousar! Deixe-os, por um bom tempo, em banho-maria ou em estado de suspensão! Larguem tudo, vão ao poeta de “Ainda uma vez – Adeus!”! Deliciem-se com o poeta de “Sonho de uma terça-feira gorda”!
Já escrevi sobre o hiperbibasmo, um dos artifícios frequentes na construção da poesia de Augusto dos Anjos, que consiste no deslocamento do acento tônico da palavra, ora transformando um proparoxítono em paroxítono (diástole); ora, um paroxítono em proparoxítono (sístole). Darei os dois exemplos aqui, apenas para fundamentar o meu argumento de que esse procedimento não tem nada de novo.
Gramático, crítico, filólogo, poeta, Musaios viveu em Alexandria, no Egito, entre os séculos V-VI, tendo sido contemporâneo de Nonnos de Panópolis e de Colutos. É por meio de um poema seu que o mito, envolvendo amantes desventurados, persistiu na tradição clássica. À maneira de Homero – metro, dialeto, vocabulário –, Musaios compôs Hero e Leandro (Paris, Les Belles Lettres, 2003), a história dos dois amantes trágicos separados pelo Helesponto,
Punido por Thêmis, a Justiça divina, por haver, entre outros delitos, aprisionado Thânatos, a Morte, Sísifo é castigado a rolar uma rocha, montanha acima, na tentativa de encaixá-la ao cume. Conseguido o intento, ele estaria livre. No entanto, a pedra sempre escapa da sua mão e ele tem de retornar ao sopé, para tentar, mais uma vez, realizar a façanha.
O título é uma das frases impactantes do diário de Esther “Etty” Hillesum (Diário: 1941-1943; tradução de Maria Leonor Raven-Gomes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, p. 86), jovem judia neerlandesa, que morreu, antes dos trintas anos, em Auschwitz.
A partir dos questionamentos suscitados pelo amigo Germano Romero, tomamos a decisão de esclarecer, mais uma vez, a nossa posição a respeito da espiritualidade em Augusto dos Anjos, em cuja poesia podemos constatar alguns procedimentos semelhantes aos encontrados no Espiritismo.
No Evangelho de João, Maria Madalena vai visitar o túmulo de Jesus e o encontra vazio. Quando Jesus se aproxima dela, supondo ela ser um jardineiro, pergunta-lhe onde ele teria colocado o corpo do rabi. Quando ela consegue reconhecer Jesus, na pessoa do suposto jardineiro, ela sente-se impelida a tocá-lo. Surge daí a frase que intitula este texto – “Noli me tangere” (João, 20,16) –, que corresponde ao original grego “μή μου ἅπτου”.