Lembrei de uma colega professora que perdera a filha. Uma senhora madura, sempre triste e desacompanhada num canto da sala dos professor...

A dor do outro

Lembrei de uma colega professora que perdera a filha.

Uma senhora madura, sempre triste e desacompanhada num canto da sala dos professores. Um dia, num intervalo entre aulas, aproximei-me e ela me relatou a história, chorando muito.

A filha, uma jovem e promissora executiva, sofrera um acidente a caminho de uma reunião numa outra cidade.

Ela se queixou que, como estava sempre triste e chorosa, ninguém mais queria a sua companhia. Nas suas piores crises de choro em casa, seu lugar de direito para fazer isso, ouvia a vizinha gritar alto: “eu não aguento mais o choro dessa mulher!”

Kathe Kollwitz
Tentei ajudá-la como pude.

Falei da minha sincera esperança na eternidade da vida. Repassei-lhe livros que tinha e tentei ouvir a sua tristeza e lamento o melhor que pude.

Fiz isso sem interesse de promover nenhuma religião ou doutrina, apenas por solidariedade e porque meu coração também se condoía com aquela ferida emocional insuportável.

Na época, aquilo me fez refletir como a nossa sociedade é egoísta e mesquinha: exige uma felicidade de comercial e não concede o direito do sofrimento a ninguém.

A memória emergiu por conta de outra situação, vivenciada recentemente pela monitora de uma das disciplinas que leciono.

A garota, extremamente responsável e competente, “sumiu” por algum tempo e os alunos que a procuraram me disseram que ela havia alegado “problemas pessoais”.

Entrei em contato, preocupado, oferecendo ajuda.

Kathe Kollwitz
Acabei por descobrir que ela perdera o pai, de infarto. O homem tinha apenas 40 anos. O choque foi tão grande que o seu sistema imunológico colapsou e ela teve de ficar internada por duas semanas.

Fiquei penalizado. Impactado. Solidarizei-me com a perda e me despedi.

Numa época de escassa solidariedade, na qual a dor dos outros é sentida por poucos e evitada pela maioria, que persegue a tutaméia de uma felicidade cosmética e onipresente, reflito em como a “empatia” seria útil se fosse mais do que uma palavra desgastada do vocabulário atual. Usada em campanhas publicitárias, em cultos religiosos e em treinamentos empresariais, a empatia é um dos “flatus vocis” contemporâneos que mais refletem uma expressão esvaziada de sentido pelo seu uso constante e total ausência de aplicação.

Famílias inteiras habitam as calçadas próximas aos sinais sem que isso cause qualquer incômodo ou indignação verdadeira. A mendicância prolifera. Os mais atingidos pela miséria soltam os seus filhos pelas ruas para que sobrevivam dos nacos oferecidos por pobres menos depauperados ou por uma classe média que se acha bondosa por dar esmolas. Envolver-se verdadeiramente com a dor dessas pessoas seria procurar as causas do problema, para que ele cesse hoje e não mais se repita no futuro.

Kathe Kollwitz
Mas a dor do outro raramente rompe a barreira da frieza e do cinismo que sempre se satisfaz como respostas do tipo: “é o ´karma´” e “é isso mesmo”.

E o choro segue solitário, os corpos ao relento e as barrigas vazias.

A vida ensina. Cedo ou tarde, cada um descobre que também é o outro e que, no sofrimento, sempre espera ser tratado com atenção e cuidado, numa esperança tantas vezes vã...

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