Um Sol declinante com tons dourados, uns voos de passarinho à cata de insetos antes do sono nos galhos e a proximidade do Natal trazem-me a lembrança da menina Maria. As coisas que me ensinaram acerca do assunto, primeiramente no Catecismo do Padre Gomes e, posteriormente, nas sabatinas da Tia Mariinha, Adventista do Sétimo Dia, chegam-me, também, neste momento, por completo. E me vêm com indagações
JoséGuido Reni, S.XVII ▪ Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma.
que eu não fazia, naturalmente, nos meus dias de menino.
Que idade tinha a moça? Ela e José coabitavam quando da Anunciação? O que era a Nazaré daqueles tempos? Ele acreditou de pronto na virgindade daquela que lhe fora prometida? São questões que não ocorrem aos de pouca idade nem, tampouco, aos de pouca afeição à pesquisa e à leitura, todos igualados em suas ignorâncias inocentes, cândidas, e em cada fé cega.
O que agora me pergunto advém do desejo de confrontar interpretações: a da santa virginal para o catolicismo e a da jovem doce, terna, que viria a ter outros filhos além daquele encarregado, por desígnios divinos, de carregar consigo os pecados do mundo, como assim entendem, no campo da cristandade, os não católicos.
Mas há coincidências nas crenças de uns e outros. Por exemplo, José e Maria – ela com 16 anos, no máximo, e ele entre os 30 e os 40, possivelmente – não viviam juntos por ocasião do anúncio de Gabriel, o mensageiro. Obedeciam aos costumes judaicos e estavam na fase “erusin” do casamento
AnunciaçãoCostantino Zelli, S.XVI ▪ Museu Nacional de Varsóvia.
que, embora legalmente vinculativa, exigia o relacionamento em casas e camas separadas. Era período que durava de um a dois anos.
Gosto de pensar naquela Nazaré, hoje uma cidade vibrante no norte de Israel, mas, à época, uma aldeia pequena aninhada com menos de 600 habitantes entre as montanhas da Baixa Galileia. E, dos três horários específicos das orações diárias dos judeus, prefiro acreditar em que a Anunciação tenha ocorrido, mesmo, na Hora do Angelus, a do Sol dourado e em declínio, a dos voos das aves, a das flores abertas ao primeiro orvalho, a da paz, da meditação e do silêncio, tenhamos, ou não, os credos bíblicos advindos da leitura de Lucas.
O evangelizador narra o episódio da Anunciação no primeiro capítulo do seu livro. Fala da saudação de Gabriel à menina Maria então tratada como “bendita entre as mulheres”. Conta que o anjo a ela informou da concepção de um filho santo e que isso ocorreria sem conjunção carnal. O bebê, anunciava Gabriel, seria o filho do Altíssimo, senhor do trono de David e de um reino que não teria fim. Pelo mesmo anjo, a crer-se em Lucas, Maria soube que a prima Isabel, em sua velhice, concebera um filho. O coração puro da pequena Maria aceitou com fé e humildade aquilo que para ela Deus decidira:
O casamento de Maria e JoséCostantino Zelli, S.XVIII ▪ Museu de Arte de Tula, Rússia.
“Sou tua serva. Faça-se em mim segundo a tua vontade”.
José teve a confirmação desse milagre em sonho e nele acreditou. Antes, todavia, bom e honrado que era, dispôs-se, em segredo, a deixar Maria, posto que não desejava desonrá-la, publicamente. A gravidez, até então, significaria o adultério.
A crença cristã, especialmente nas tradições católica e ortodoxa, é a de que Maria permaneceu virgem mesmo após o parto e a de que José manteve o celibato, não consumando o casamento. Tia Mariinha e seus iguais não punham fé nisso. E que ninguém os condene. A fé de cada um de nós e nosso sagrado direito à livre expressão devem andar de mãos dadas sempre e sempre.
Zacarias, o marido de Isabel, um sacerdote decente e justo, também não acreditou, de imediato, no mesmo Gabriel quando este lhe antecipava a gravidez da mulher e o nascimento de João Batista. Resultado: ficou mudo, temporariamente, por duvidar do anjo.
O encontro de Gabriel com Zacarias e Isabel Francesco Guarino, S.XVII ▪ Col. particular.
Ponho-me no grupo numeroso dos que discordam do parto de Maria na data em que tem sido celebrado. Isso, por razões que se prendem a admissibilidades. César não escolheria o inverno – rigoroso, naquelas plagas – para o recenseamento a que poucos compareceriam dada a dificuldade dos deslocamentos. Não haveria pastores e ovelhas ao relento nem céu descoberto para a estrela-guia. Dá para acreditar no recenseamento em tempo seco e mais quente, nas hospedarias em razão disso superlotadas e, por consequência, no nascimento daquela criança numa manjedoura perante carneiros, jumentos e bois. Havia, além do mais, uma lição a ser repassada:
a do desprezo celestial aos ricos e poderosos. O rei dos reis não viria ao mundo, então, em trono de ouro.
De vez em quando, abro-me a todos os atos de fé. Meu coração de menino teima em crer naquilo que me ensinaram o Padre e a Tia adventista, cada qual a seu tempo e a seu modo.
Mas, neste exato momento, desejo que minha adoração sirva, prioritariamente, aos crepúsculos. O que agora celebro, portanto, é o instante da Anunciação, é o da radiação solar dourada, o do repouso do espírito, o da Natureza que nos envolve e acalenta.
Que se faça, neste dezembro, o Natal dos perus, da ceia farta e dos reencontros em todos os idiomas e recantos do planeta. E que haja fartura em escala planetária por todo o tempo. Num mundo em que mesmo as manjedouras estão proibidas aos mais pobres e desvalidos, estes meus votos pela paz e pela justiça social fazem-se, creio eu, extremamente necessários. Pensemos nisso, quando menos, a cada pôr do sol.