Ao longo de mais de uma década trabalhando na Fundação Casa de José Américo, venho ampliando minha admiração pelo patrono. Na adolescê...

Bastidores de José Américo de Almeida: ''ele queria adotar uma cobra''

Ao longo de mais de uma década trabalhando na Fundação Casa de José Américo, venho ampliando minha admiração pelo patrono. Na adolescência, sabia apenas que era um renomado escritor regionalista, autor da destacada obra A Bagaceira; um político polivalente... Enfim, informações panorâmicas. Longe de imaginar que, um dia, diariamente, iria pisar no mesmo chão. Agora, no convívio diário com o mundo “americista”, acrescento minha admiração pelo seu caráter humanista.

Antônio David Diniz
Certo dia, num catálogo de exposição do meu amigo repórter-fotográfico Antônio David, encontrei uma frase que me chamou a atenção: “Ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não veem” (JAA). Gostei da frase. Depois, li outras, mas a minha preferida é: “O que tem de acontecer tem muita força”. Esta é muito forte, profética, impactante. E assim observei que José Américo era “o homem das frases interessantes”, revelando sua sensibilidade.

Já na Fundação, conheci sua então secretária, Lourdinha Luna, e houve simpatia mútua. Tivemos muitas conversas rápidas, porém informativas. Existia a ideia de entrevistá-la, mas sempre adiada em razão do tempo, até que ela partiu. Nesse ínterim, o colega e amigo jornalista Gilson Souto Maior me procurou para intermediar uma entrevista com Lourdinha. Eu os acompanhei na gravação e lhe dei umas dicas inéditas para abordá-la, a exemplo da cobra que surgiu no pomar e que José Américo queria adotar. A seguir vieram os detalhes da visitante — de provável moradora a dispensada.

Lourdinha Luna Acervo da autora
— Lourdinha, que história é essa da cobra? — indaga Gilson. — Doutor José Américo era louco por animal. Ninguém tocava em animal algum: gato, cachorro... Animais perdidos tinham que ficar para se alimentar. Ele era muito humano. Um dia, quando cheguei, ele, feliz, disse que tinha uma novidade para mim.

— O que é, doutor? — Chegou uma cobra no pomar e eu vou conservar.

— Não dá, não pode. Eu tenho pavor de cobra.
— Mas a cobra é linda!
— Pode ser uma miss.
— Mas ela fica lá no cantinho dela.
— Não tem problema, o senhor fique à vontade, faça uma opção: ou eu, ou ela.

Sabe o que ele disse?: — A cobra não escreve à máquina. Quer dizer, foi a única vantagem que tive sobre a cobra.

A entrevista de Gilson com Lourdinha, há uns dez anos, rendeu três blocos para o programa Memórias.Doc, da TV Assembleia. Na ocasião, ele era assessor de Comunicação Social da AL e diretor da TV AL. A entrevista também está publicada no YouTube. Desde já, agradeço a sua permissão, Gilson, para transcrever alguns trechos aqui.

Gilson Souto A União
Outro fato, questionado por Gilson, foi sobre o livro A Paraíba e Seus Problemas (1924), que Lourdinha classificou como “a maior obra de Sociologia do Nordeste”. Revelou que José Américo já defendia a transposição, desde que oriunda do Rio Tocantins, por ser mais profundo e por temer a falta de chuvas no Nordeste, já que o rio São Francisco não suportaria a demanda.

Lourdinha classificou José Américo como um homem seco e, ao mesmo tempo, sentimental. Considerava-o um homem público exemplar em todas as funções que ocupou, nos planos federal e estadual, deixando sua marca:

“Não se encantava muito pelo Legislativo; administrar era o sonho dele. Recebia convites para atuar em grandes escritórios de advocacia, mas recusou todos. Seu sonho era criar escolas superiores para filho de pobre ter futuro, tanto que, antes da UFPB (fundada por ele), só se formava filho de rico.”
Lourdinha Luna Acervo da autora
Ela revelou ainda que, durante sua campanha, José Américo realizou um comício na frente da Catedral; faltou energia e ele prosseguiu falando. Emocionou-se porque o povo acendeu os isqueiros, ao que ele disse:

— Quem tem Nossa Senhora das Neves na retaguarda e o povo à frente, nada tem a temer.

A sensibilidade de José Américo

Cada dia descubro algo que revela o quão sensível José Américo realmente era, nas atitudes do dia a dia. Não é em vão que, do ponto de vista literário, era versátil: escritor, cronista, poeta...

Uma das histórias marcantes sobre ele, que ouvi nos bastidores e foi confirmada por Lourdinha Luna, é a seguinte: os garotos da vizinhança pulavam o muro da casa
GD'Art
para colher as frutas do pomar. José Américo teria proibido a entrada clandestina e prometeu disponibilizar os produtos próximo ao portão de entrada. Cumpriu a promessa, encheu bacias com as frutas, pôs-nas no portão de entrada e observou que não vieram mais buscar. Certo dia, teve a oportunidade de perguntar aos meninos por que não haviam consumido. A resposta foi que perderam o interesse, porque o bom era buscar a fruta no pé. Isto é, o famoso suspense da “fruta roubada”.

O passarinho que salvou a árvore

Outro fato marcante, que revela a sensibilidade de José Américo, é que ele mesmo plantava todas as frutas do pomar e conhecia detalhes e características de cada planta, inclusive a função das medicinais. Porém, ficou impaciente porque uma árvore não dava frutos e resolveu arrancá-la. Foi então informado de que havia um ninho de passarinho. Imediatamente mandou suspender a ação e se inspirou para escrever um poema. Eis:

A Árvore da Ciência

Plantei a fruta-pão no meu pomar Vê-la depois crescer foi uma luta Por que tanto trabalho sem gostar Desse pão e, muito menos, dessa fruta? Uns sete anos puxados já se vão Sem que essa triste dê o recado, Sem botar nem a fruta nem o pão, Apesar do cuidado dispensado. Ia cortá-la, mas parei no meio No galho mais oculto havia um ninho Não deu aquilo que eu estava cheio, Mas deu-me de presente um passarinho. (José Américo de Almeida)
Henrique Pinto

Obras raras e camas separadas

Durante o tour da entrevista, ao passar pela biblioteca, Lourdinha informou que ali era o gabinete de leitura e de trabalho e que havia muitas obras raras, mas que foram doadas para as faculdades de Filosofia e de Letras, além da família ter levado algumas obras.

Um dos aspectos que mais chama atenção dos visitantes é que a cama de casal foi substituída por duas camas de solteiro. Ela informou que Dona Alice padecia de problemas ósseos, tipo osteoporose, e que, como José Américo tinha o hábito de levantar-se muito à noite para tomar notas de suas inspirações, não queria incomodá-la.

Quarto de José Américo e e Dona Alice FCJA
Ainda no quarto, Gilson chamou atenção para o guarda-roupa, com suas roupas bem arrumadas, e ela falou que José Américo era muito vaidoso. Disse ainda que não tinha palavras para definir Dona Alice, tão grande era sua atuação: “Nunca vi uma primeira-dama igual. Socorria pessoas na seca, viveu a seca viajando, socorrendo...”

Um mausoléu no pomar

Certo final de tarde, como costumava dar uma voltinha no pomar após o expediente, Lourdinha pediu permissão para chegar mais tarde no dia seguinte, porque iria ao cemitério.

— O que você vai fazer no cemitério? Seu pessoal já morreu faz tanto tempo. — Eu preciso ir. Quer ir também para ver onde irei ficar?

José Américo aceitou o convite. Ao retornarem, ela perguntou onde ele gostaria de ficar. Ele respondeu que “se a família não precisasse vender a casa, eu ficaria aqui” (apontou o local no pomar).

Lourdinha Luna Acervo da autora
— Mas eu tenho que ir para o Rio, porque Alice está lá. — Eu falei: não seja por isso, eu trago ela para cá. — Você traz mesmo?

O fato é que Lourdinha cumpriu a promessa. O mausoléu foi erguido no local indicado. Trata-se de um monumento de arquitetura indiana, do qual se destaca, da base triangular, um obelisco com escultura em bronze da face do escritor José Américo. O espelho d’água simboliza a luta de José Américo contra a seca, retratada em sua vida e em suas obras. Lá estão os restos mortais do casal.





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