Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades. (Luís Vaz de Camões)
Neste mês, a Feira do Livro acontece em Lisboa com grande intensidade, reafirmando o que já sabemos: cultura não é passatempo — é identidade. E, por uma feliz coincidência, ou destino marcado nas estrelas de um céu atlântico, este mesmo período assinalou o 10 de junho: dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
Celebrar Camões é mais que recordar um nome ou uma obra. É compreender que ele vive. Sim, vive. No rumor das ondas que bateram na caravela de Vasco da Gama, no fado que ecoa das vielas de Alfama, no cheiro de sardinha e manjerico dos Santos
Poeta Júlia Pereira Acervo da autora
Populares. Vive sobretudo naquilo que Portugal tem de mais valioso: a palavra. E é na palavra que resiste a alma.
Entre as muitas vozes que se levantaram nestes dias de exaltação da cultura, uma destacou-se com força e doçura: a poeta Júlia Pereira. Em Lisboa, onde cada esquina tem memória, Júlia não recita apenas Camões — ela convoca-o. Com uma presença angelical, voz segura e uma paixão que trespassa a pele, ela transforma os versos de Os Lusíadas em matéria viva. É Camões que fala por ela, ou talvez seja ela quem fala por Camões.
Júlia não é apenas presença em eventos — é símbolo. Quando sobe ao palco, diante de escritores, editores, leitores e curiosos, o tempo dobra-se. As suas palavras misturam-se ás do passado e criam um presente onde a cultura não é ornamento, mas sim chão firme. É por isso que a sua atuação é tão imprescindível: ela representa o lado resistente e generoso de um Portugal que não se rende ao esquecimento.
Rose Pereira
A língua portuguesa é o fio condutor dessa memória partilhada. É através dela que os povos se reconhecem, que as histórias ganham corpo, que os sentimentos atravessam oceanos. Mas também é através dela que se trava uma silenciosa batalha. Ainda há quem deseje aprisionar o idioma, cristalizá-lo, impedir que ele respire os novos tempos. Há quem resista às expressões vindas do outro lado do Atlântico, aos sons que ecoam de África, às palavras reinventadas por comunidades que fizeram da língua portuguesa o seu abrigo.
Ignoram, porventura, que a língua é um organismo vivo, que se molda aos ventos da História. Querem uma língua pura, sem contaminações, esquecendo-se de que a própria origem do português é mestiça, feita do latim e de tantas vozes que vieram com o tempo — mouras, galegas, africanas, tropicais. O idioma que Camões escreveu já não é o mesmo que usamos hoje. E ainda bem.
Na sua atuação, Júlia Pereira também representa isso: o poder de uma língua que se transforma, sem perder a sua alma. Ao recitar Camões, ela mostra como o clássico pode ser moderno, como os Lusíadas podem conversar com os desafios de agora — a migração, a mestiçagem, a multiplicidade. E ao misturar palavras, sons e interpretações, ela reafirma o valor da diversidade linguística dentro da própria língua portuguesa.
Nas comemorações do Dia de Portugal, em Lagos, a presidente da Comissão Organizadora do 10 de junho de 2025, a escritora Lídia Jorge, lembrou-nos com lucidez que “Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo”. E, de forma reveladora, acrescentou:
“Os Lusíadas expressa corajosas verdades dirigidas ao rosto dos poderes que elogia”. O seu discurso traçou um paralelo entre o tempo do poeta e o nosso, apontando para um “novo tempo, que está a acontecer à escala global”.
Escritora portuguesa Lídia Jorge Acervo da autora
Não se trata apenas de uma mudança política ou econômica — é cultural, identitária, linguística. E ainda reforçou essa ideia: “O povo português é descendente do escravo e do senhor que o escravizou.” Uma verdade desconfortável para alguns, mas profundamente necessária. Portugal é mestiço, é plural, e essa consciência é essencial para compreender quem somos — e para aonde vamos. E a língua portuguesa, espelho desse percurso, carrega em si essa memória de encontros e confrontos. Por isso, aceitar as transformações da língua, as expressões que chegam dos trópicos, dos arquipélagos, das margens e das diásporas, não é uma ameaça à identidade nacional — é, antes, um reconhecimento da sua verdadeira essência. Como afirmou o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa: “Recriar Portugal e, no fundo, ler os Lusíadas. Recordar o passado, mas apostar no futuro.”
95ª Feira do Livro de Lisboa / Rose Pereira autografa livro Estava escrito, de sua autoria Acervo da autora
A aposta no futuro passa, inevitavelmente, pela aceitação da transformação. Pela compreensão de que falar português hoje é também falar com sotaques, com gírias, com palavras novas e antigos sentidos. É reconhecer que Angola, Brasil, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste são também berços da língua — e que essa língua se ergue, canta e chora em cada um desses lugares de forma única e igualmente legítima.
Camões não morreu. Porque há sempre quem o recite, quem o viva, quem o sinta. E enquanto houver uma poeta como Júlia Pereira, de voz acesa e alma inteira, Camões continuará a caminhar pelas ruas de Lisboa, a sorrir entre os livros da Feira, a acolher as novas vozes da língua que ajudou a eternizar. A língua é viva — e por isso, o poeta também o é.
Viver em terras lusitanas é como caminhar por um livro antigo cujas páginas, ao serem tocadas pelo vento, sussurram histórias que nos pertencem — mesmo antes de as conhecermos.
E um grito sem voz foi se infiltrando pela cidade, lento e implacável. Os indivíduos se esvaziavam do que lhes definia — celulares mortos nas mãos, automóveis inúteis, trabalho suspenso no vácuo, cartões sem valor, uma pressa que já não levava a lugar algum. E, numa prece sufocada, percebeu-se sem conexão, sem condução, sem dinheiro... sem vida.
A casa era azul da cor do céu, serena e acolhedora como um abraço.
Pelas paredes, voavam andorinhas de louça colorida, cada uma carregando nas asas as memórias que minha avó nunca deixava morrer... Verdes, amarelas, vermelhas — as cores que ainda dançam na minha lembrança.
Deixei minha amada terra Brasil, e cá estou, pouco mais de um ano, em solo lusitano. Tive razões para a mudança – como alguns amigos sabem. E residir aqui, milhares de quilómetros de distância, me veio logo a cabeça as nossas semelhanças com o belo País, e claro, poder assim manter um “gostinho de casa”, a começar pelo idioma.