Técnica machadiana e controle das percepções nas Big Techs É um verdadeiro lugar comum da crítica machadiana considerar que o quadro...

Entre a gaiola e o algoritmo

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Técnica machadiana e controle das percepções nas Big Techs


É um verdadeiro lugar comum da crítica machadiana considerar que o quadro literário legado por Machado de Assis espelha a paisagem das relações humanas por meio de uma técnica artística cuja análise não se restringe a uma abordagem local ou regional – é dizer, o microcosmo carioca de suas experiências. Pelo contrário, os traços de nosso maior escritor compõem figuras e enredos a partir dos quais
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Machado de Assis (1839—1908)
é perfeitamente possível desenhar os dramas da vivência coletiva sob um ângulo dito universal.

Segundo o romancista maranhense Josué Montello, "sem deixar o seu mundo", Machado "alcança o universal pelo regional", pois "seus personagens refletem o ser humano, na sua variedade e nas suas emoções", tudo isso “sem perder a singularidade que os impõe à nossa atenção e à nossa memória”, revelando, enfim, tendências gerais nas pegadas das quais estão impressos caracteres comuns a todos nós (Josué Montello. Memórias póstumas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 177).

Também Astrojildo Pereira, depois de ressaltar o "sentido humano e filosófico" da obra machadiana, é da opinião de que "Machado de Assis é o mais universal dos nossos escritores"; aliás, acrescenta o autor que semelhante predicado é fruto de estratégia literária encampada pelo Bruxo do Cosme Velho, o qual, tratando "profundamente o homem brasileiro" em meio às suas "manifestações normais, cotidianas, correntes", cuidou, assim, de tracejar aspectos do comportamento humano que não se limitam a marcos fronteiriços. (Astrojildo Pereira. Machado de Assis: Ensaios e Apontamentos Avulsos. São Paulo: Boitempo; Brasília: Fundação Astrogildo Pereira, 2022, p. 34).

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Junto a tal perspectiva, Lúcia Miguel Pereira esclarece donde deriva esta faceta técnica do autor de Dom Casmurro. Escreve a ensaísta que, em meio à pulsante atmosfera carioca, à maneira do clínico que busca diagnóstico, Machado procurou "os conflitos psicológicos" e "os dramas da vida interior" de seus contemporâneos, alcançando notável êxito nesse esforço analítico, um esforço que, para além da beleza estética de seu escrito, fez ver em cores vibrantes que "o homem de todas as latitudes revela uma grande identidade" ao viver no perímetro das situações e descrições psicológicas operadas pelo Bruxo fluminense. (Lúcia Miguel Pereira. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1998, p. 293).

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Ressurreição, primeiro romance de Machado de Assis, publicado originalmente em 1872.
Temos para nós que uma performance técnico-literária voltada ao retrato de situações existenciais, sentimentos pulsantes das peças individuais em jogo e conflitos intersubjetivos, essa literatura, estávamos a dizer, muito embora ancorada em aspectos domésticos, é capaz, sim, de refletir a sociedade e, por meio desse reflexo, expor as individualidades em traços que não as prendem a recortes territoriais bem definidos. Assim sendo, esses traços, imbuídos de análises psicológicas e oferecidos à base de tramas que magnetizam a atenção, põem à mostra a coletividade como esta mesma é organicamente estruturada, vale dizer, sob roupagem uniformizadora.

Para firmarmos o que fica dito numa ilustração, sejamos levados a considerar um hipotético "estúdio literário" em cujas narrativas ficcionais figurem molduras fáticas tingidas de personagens que, embora ligados a realidades particulares de reduzidos sítios, transbordem aspectos e concreções de sentimentos universais como a ambição e o ciúme, sendo razoável compreender, por fim, que a violência desses sentimentos explode em ordem a exibir a humanidade como se essa estivesse a representar uma produção em grande escala de produtos direcionados ao consumo.

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Igualmente presta bom testemunho do que se vem de dizer o conto "Ideias de Canário", cujo enredo pretende ilustrar que a percepção dos homens sobre as ocorrências do mundo-da-vida está forte e inexoravelmente aferrada à perspectiva ou ângulo de visão a partir do qual os olhos colhem o espetáculo encenado nos palcos da existência.

Com efeito, o criador de Brás Cubas introduz no referido conto um curioso canário que, rente às diversas perspectivas dos sucessivos postos de observação nos quais é inserido, discorre – fiel às variações observadas –
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sobre a compreensão que mantém acerca da atmosfera circundante.

Assim, confinado inicialmente aos estritos limites de uma casa de velharias e indagado sobre a concepção que ostenta a respeito do mundo, o canário delineia uma tímida dimensão compreensiva, equivalente, afinal, à reduzida ambiência em que vive.

Em prosseguimento, deslocado e inserido em novo posto, aumentadas as janelas pelas quais observa a sequência da vida, o canário, mais uma vez interpelado, reage de modo a expor uma leitura de maior abrangência em torno do estado de coisas que o cobre.

Aqui chegados, interessa descobrirmos possível coincidência que estabelece ligação entre o protagonista desse conto e a realidade das imponentes Big Techs. Avançando em tal sentido, ao final restará bem demonstrado que a literatura machadiana, indiferente à conformação de linhas territoriais e a salvo do correr das páginas do calendário, é suscetível de ser projetada como fotografia dos tipos e situações que compõem a diversificada vivência humana.

De fato, o poderio instrumental e a ubiquidade que caracterizam as Big Techs detêm – e controlam – a integralidade de perfis que acionam tais plataformas de relacionamentos intersubjetivos;
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uma vez enredados pelo "canto da sereia" e algoritmos dessas forças, tais perfis acabam, à semelhança do canário, submetidos a um horizonte de conteúdo intencionalmente limitado, um horizonte programado à geração de uma verdadeira gaiola artificial de experiências e percepções, uma gaiola, afinal, onde os estímulos e sentidos são forjados sob medida para conter o voo e domesticar a imaginação.

Insistindo em boa ilustração, poderíamos dizer que a ação das Big Techs opera uma espécie de "fecha-te-sésamo" moderno por meio de que seus destinatários permanecem reclusos em caverna escura e governados por forças imperceptíveis, forças estas que, tal qual o larápio que assedia vítima indefesa, agem com cálculo e sub-repticiamente.

É tempo de concluirmos, e vamos fazê-lo prontamente. Seduzidos que estamos por anseios de conexão e liberdade, é natural que nos coloquemos sob o governo — ou sob a mão forte — das referidas forças imperceptíveis, donde resulta a perda de uma lógica natural de vigilância e apuramento intelectual; donde se evidencia, enfim, a importância e a atualidade da óptica machadiana que, por meio deste conto, nos impõe gestos reflexivos voltados ao desvendamento dos mecanismos eletrônicos que atualmente nos cercam.

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