“Eu quero ver erguer-se aquele Algarve moiro,
mole como um sultão, lânguido e fatalista,
aos campos do Amor roubando os frutos d’oiro,
p’ra na lenda os tecer, sensual e artista.”João Lúcio, “Alta Noite”, in id., p. 180
Para os homens do mediterrâneo que demandavam o Ocidente, a passagem pelas Colunas de Hércules* representava o início de um derradeiro percurso. Para cá desse ponto havia ainda alguns portos que valiam a viagem:
Cadiz, Faro, Silves e, para os que se aventuravam a subir o rio Arade, Mértola.
A história de Faro, no período islâmico, foi marcada por duas circunstâncias indeléveis. A primeira refere-se à invulgar riqueza do território, amplamente atestada por crónicas de proeminentes geógrafos da época, como Ahmad Ar-Razi, Muhammad Ibn ʿAbd al-Munʿim al-Himyari e Abu Abdullah Muhammad al-Idrisi, este último conhecido como “pai da geografia medieval”. A segunda está ligada à persistente presença da comunidade moçárabe (de musta’rib, “tornado árabe”), formada por indivíduos que, embora permanecessem cristãos, assimilavam a cultura e o pensamento islâmico, além de adotarem hábitos e práticas condenados pela Igreja. Essa continuidade reforça a ideia de um prolongamento civilizacional durante o domínio islâmico na região.
Faro, Portugal: cartão postal do início do século XX ▪ Fotos de Faro Antigo
No século IX e apesar da dependência desta região em relação a Sevilha, é uma família local, os Banu Bakr, a deter o seu controlo. Em finais do século, Ibn Bakr, um muladi* filho de Tahia e bisneto do cristão Zadulfo, tomou conta da cidade de Faro, fundando uma dinastia e apoderando-se do território
GD'Art
que compreendia ainda Silves e a costa ocidental.
A partir do século X, os historiadores árabes empregam o termo Shanta Mariyam Al-Garbi para designar a povoação mais importante desta zona. Entre 1026 e 1053 d.C., foi Muhammad Ibn Harun, oriundo dos Banu Harun, uma família também muladi, a controlar o território. Ao longo desse século, em vez do velho topónimo de Ossónoba, a cidade passou a ser conhecida por Shanta Mariyam Ibn Harun e depois por Santa Maria Ibn Harun.
Santa Maria era um porto de mar que deverá ter surgido da necessidade de se fortificar o porto que servia a cidade de Ossónoba. Presume-se que o facto de a povoação se chamar Santa Maria advém da significativa presença de moçárabes nos arrabaldes, o que explica a existência, na época, de uma imagem da Virgem Maria sobre as ameias das muralhas que davam para o mar.
Traçado urbano de Santa Maria de Faarom (Faro), nos séculos XIV e XV ▪ Fonte: Evolução Urbana e Património (Rui Paula e Frederico Paula),
Câmara Municipal de Faro, 1993, via Fotos de Faro Antigo
Entre os casos extraordinários de Shanta Maria e registados pelo historiador árabe Al-Himyari, conta-se o curioso de uma fonte que, quando as pessoas se aproximavam dela deixava de jorrar água e quando se afastavam voltava a brotar (supõe-se hoje poder tratar-se da fonte dos “Olhos de Água”, praia piscatória nos arredores de Albufeira). Também se narra, no período compreendido entre 1165-1174, do fenómeno de um menino que aos cinco anos de idade apresentava já o corpo coberto de pelos e todos os indícios de virilidade masculina adulta.
Catedral de Faro, erguida no século XIII sobre as fundações de uma antiga mesquita árabe. ▪ Cartão postal da década de 1960.
Cidade de grande beleza, situada numa ponta que avança pelo Atlântico, possuía muralhas banhadas pelo mar na maré cheia, uma mesquita principal e uma imponente igreja cristã, com colunas tão largas que, segundo a lenda, um homem não conseguia abraçá-las, e que seriam feitas de prata. Era administrada por um qadi (juiz erudito nomeado para interpretar as leis, origem do termo “alcaide” em castelhano), protegida por soldados, bem abastecida e rica em produtos da terra e do mar, o que fazia da região uma das mais densamente povoadas do gharb al-andalus. Santa Maria erguia-se esplendorosa a leste de Lisboa e a oeste de Córdova, a 28 milhas de Silves. Era a primeira das praças fortes que compunham a defesa de Pamplona, construída de forma sólida sobre um maciço que dominava o rio Aragão por cerca de 3 milhas. Segundo Al-Bakri, outro autor árabe, explorava-se ali um estanho de qualidade tão elevada que rivalizava com a prata.
De Santa Maria era ainda originário Abu’l-Hajja Yussuf Ibn Sulayman Al-‘Alam Ash-Shantamari (morto em 1084 d.C./ 476 d.H.), famoso pelo seu “Comentário dos Seis Diwans”, obra que abarca os principais poetas da época pré-islâmica.
Em 1137, Ossónoba acaba reduzida a ruínas às mãos do emir Tashufin, filho do sultão da Ifriqiya, ‘Ali Ibn Tashufin, mentor do édito que mandava desterrar para África milhares de moçárabes. Durante o domínio almoada (de muuahhidun, isto é, “aqueles que proclamam a unidade de Deus”) só são mencionados os nomes de Santa Maria de Farun e de Tavira, e não mais se fala de Ossónoba.
Azulejo histórico em Faro, Portugal, representando a outorga do foral aos mouros forros por D. Afonso III, em 1269, marco da integração cultural e social após a Reconquista. ▪ Fonte: Wikimedia
Os restos desta antiga cidade foram-se desmantelando e, depois da reconquista cristã do Algarve, a mão do homem foi-se conjugando com a ação do tempo para quase fazer desaparecer as memórias daquela cidade, que foi capital do Algarve e sede de um bispado.
Porta da Vila, em Faro: entrada medieval do antigo núcleo urbano, erguida durante a ocupação árabe e preservada após a reconquista cristã.Museu sem Fonteiras
Hoje não são muitos, lamentavelmente, os vestígios identificáveis da Faro islâmica. As destruições causadas pela fúria dos elementos e completadas pela mão do homem, não permitem mais que leituras topográficas de um ou outro bosquejo. Assinala-se a localização da alcáçova e da mesquita (substituída, após a reconquista, pela catedral) e regista-se, com natural destaque, pela sua excepcionalidade, a Porta da Vila, um monumental arco ultrapassado, construído entre finais do século IX e meados do século XI, que integra atualmente a estrutura setecentista de uma das mais antigas e faustosas construções da época islâmica existentes em Portugal. As aduelas que compõem o arco, alternando diferentes cromaturas, aproximam-se dos modelos clássicos andaluzes e têm paralelo com o idêntico princípio posto em prática na Grande Mesquita de Córdoba.
Admite-se que, para além do traçado das muralhas, a parte da rede viária da cidade velha respeite o traçado do período medieval, aguardando-se que o tempo, através das intervenções arqueológicas levadas a cabo pelo homem moderno, ponha a descoberto mais dados relevantes para a história de Santa Maria do Gharb.